Ainda sobre a famigerada Lista Suja do trabalho escravo

 08/01/2007

Por Rodolfo Tavares* 

Durante o breve recesso do final do ano, consegui reservar um tempo para colocar em dia a leitura de livros e matérias sobre temas relacionados à Comissão Nacional do Trabalho e Previdência Social da CNA-Brasil, que tenho o privilégio e a honra de presidir.

Dentre variada literatura examinada, minha atenção voltou-se, especialmente, para o livro “Trabalho Escravo Contemporâneo – O desafio de Superar a Negação”, editado pela Editora LTR em parceria com a Anamatra.

O momento da leitura coincidiu com a diplomação do Presidente da República para o segundo mandato e a discussão sobre a destravamento da economia, desburocratização, segurança jurídica dos investimentos e definição de marcos regulatórios.

Como pretendo fazer alguns comentários sobre o livro citado acima, é preciso esclarecer que o farei na condição de produtor rural que se dedica a contribuir para o aperfeiçoamento das Relações do Trabalho no campo e, destacar o respeito que tenho por todos os coordenadores e colaboradores da obra, com os quais convivo nos fóruns que tratam do tema, especialmente o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) e a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).

Para manifestar tais comentários, sublinho do livro os seguintes trechos:

“A Escravidão não abolida”

Patrícia Audi – Págs 74/88

O Heróico Grupo Móvel, formado por Fiscais do Trabalho, Policiais Federais e Procuradores do Trabalho, coordenado pela própria Secretaria de Inspeção em Brasília, passou a atuar de maneira independente, atendendo às denúncias da CPT vindas de todos os lugares, principalmente do Sul do Pará, Norte de Mato Grosso, Maranhão, Tocantins e Bahia.

– As multas aplicadas pelo Ministério do Trabalho pelas infrações trabalhistas cometidas eram insignificativas, não havia o devido processo penal, não havia nenhum outro tipo de sanção pecuniária representativa e para o empresário infrator.

– Os quase vinte mil trabalhadores resgatados ao longo dos últimos onze anos pelo Heróico Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego foram encontrados em condições subumanas de sobrevivência, em situações da mais absoluta degradação do trabalho e sem o seu direito de ir e vir preservado.

– Durante anos, principalmente na década de 70, houve um grande incentivo oficial para a ocupação da Amazônia. Sem um plano de desenvolvimento sustentável e sem a presença do Estado naquela gigantesca Região.

– Ao longo dos 11 anos de existência da Fiscalização, dentre as 4.859.863 (quatro milhões, oitocentas e cinqüenta em nove mil, oitocentas e sessenta e três) propriedades rurais informadas pela Confederação Nacional da Agricultura em junho de 2006, foram flagradas utilizando-se da exploração criminosa dos trabalhadores em condições análogas as de escravo, segundo informações da Secretaria de Inspeção do Trabalho, 1.526 (hum mil, quinhentos e vinte e seis fazendas, que representam 0,03 (três centésimos percentuais) do total de fazendas brasileiras.

Apesar de todas essas destacadas medidas de repressão ao crime, ainda identificamos alguns sérios entraves para o fim da impunidade. Citamos por exemplo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade apresentada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) que questiona a legalidade de um dos principais avanços nessa luta pela abolição definitiva da escravidão em nosso país, a Lista Suja. O que mais surpreende a todos os demais integrantes do CONATRAE, muito mais do que o questionamento legal da ação, é a posição ideológica e contraditória da Confederação diante de um tema incontestavelmente condenável no cenário nacional e internacional.

“Breve estudo sobre o cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo (Lista Suja): aspectos processuais e materiais”

João Humberto Cesário – Págs 166/185

– Movimentando a esteira da sua implementação, foi editada pelo Ministro do Trabalho a Portaria nº 1234/2003, atualmente sobreposta pela sua congênere de nº 540/2004, para criar o cadastro em Estudo, no qual o nome do infrator é incluído após decisão administrativa final exarada em procedimento de fiscalização, garantida a ampla defesa, com posterior comunicação do fato às mais diversas entidades estatais, visando à tomada das providências administrativas cabíveis, nas suas respectivas esferas de atuação.

– Também não se mostra adequada ao caso, a alegação de que a ausência de perseguição criminal instaurada ou de sentença penal condenatória transitada em julgado teria o condão de conduzir à presunção de inocência dos produtores autuados, nos termos no artigo 5º, LVII, da CRFB, a dizer que “ninguém será considerado culpado até o trânsito de sentença penal condenatória”. Ocorre que o mencionado dispositivo, quando estudado na sua literalidade, notoriamente se limita à seara penal, sendo que no caso em tela, como já exaustivamente visto, discute-se a responsabilidade dos agentes na área administrativa.

– As portarias não malferem o princípio constitucional da presunção de inocência, que no caso merece ser analisado em cotejo com a presunção também constitucional de legalidade e acerto dos atos administrativos, de modo a não se tornar uma panacéia capaz de eximir infratores de suas responsabilidades.

Obs cópia literal dos textos
os grifos são nossos
Nesta altura, é fundamental a resposta à se
guinte pergunta: Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, constitui prática de crime capitulado no código penal?

A resposta é sim.
Desta forma, como não pretendo através da dialética ou da polêmica mudar a opinião de ninguém, muito menos esgrimir teses jurídicas ou filosóficas, e sim, compartilhar o sentimento de intranqüilidade e preocupação de toda a classe produtora com a segurança jurídica, diante de um tema tão relevante que é a dignidade do trabalho como princípio fundamental das nações civilizadas. Permito-me, transcrever dois textos, para que sirvam a razão de cada um.

1- Declaração Universal dos Direitos Humanos
ONU – 1948
Artigo 5º – Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes
Artigo 7º – Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo 8º – Toda a pessoa tem direito a recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes contra os atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei.

Artigo 10º – Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja eqüitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial, que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.

Artigo 11º – Toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.

Artigo 12º – Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicilio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a proteção da lei.

Artigo 17º – Toda a pessoa, individual ou coletiva, tem direito à propriedade. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.

Artigo 28º – Toda a pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efetivos os direitos e as liberdades enunciadas na presente Declaração.

2- História Como História da Liberdade (Benedetto Croce) Pág 321
Mesmo quando a violência surge para se pôr ao lado da justiça, ela não aumenta, mas perturba e diminui o efeito da justiça, despertando contra ela o sentimento ferido de humanidade. Esta é a razão das lágrimas, do afeto e da admiração pelos personagens, que em si não merecem grande estima moral, cuja ferocidade revolucionária os mandou para a guilhotina. É também a razão pela qual políticos prudentes recomendam-nos para não “nos fazermos de mártires”.

Concluo com as seguintes considerações:

    • A CNA-Brasil inspira-se na solidariedade social, na livre iniciativa, no direito de propriedade, na economia de mercado e nos interesses do país.
    • A CNA-Brasil repudia todas as formas de servidão humana e da cidadania.
    • A CNA-Brasil defende o Estado Democrático de Direito.

Assim, não admitimos o julgamento de produtores rurais ou quem quer que seja, por heróis ou heroínas, companheiros ou companheiras, quando agentes do Estado deduzam contra cidadãos acusação da prática de crime.

Não admitimos que a presunção de legalidade dos atos administrativos se sobreponha ao direito ao devido processo legal em toda sua amplitude e dimensão.

Aguardamos com serenidade a manifestação do Supremo Tribunal Federal sobre a legalidade do ato administrativo que criou a “Lista Suja”, sem contudo deixar de trabalhar intensamente para o crescente aprimoramento das relações de trabalho no campo e da legislação que trata da matéria, com relevo para o contrato de trabalho de curta duração.

* Rodolfo Tavares é presidente da Comissão Nacional das Relações de Trabalho e Previdência da CNA.

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