Entrevista: Frei Xavier Plassat

 08/02/2007

Beatriz Gredilha

"Abra o olho, para ninguém virar escravo!". O lema da Campanha Nacional de Combate ao Trabalho Escravo faz um alerta para a tendência à naturalização do trabalho degradante entre as próprias vítimas e visa chamar a atenção dos públicos mais vulneráveis para essa prática. Em entrevista, Frei Xavier Plassat, coordenador da campanha nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) contra o trabalho escravo, fala sobre os principais objetivos e resultados do movimento; sobre a influência do agronegócio; e faz análise sobre a atual situação do trabalho degradante no Brasil. "Essa luta não pode parar até a total erradicação do trabalho escravo. E exige o empenho de todos", diz.

Ibase – Em que estágio está o trabalho escravo no Brasil? Há algum avanço em relação ao passado?

Frei Xavier Plassat – A escravidão por dívida permanece flagelando os grupos mais vulneráveis da população rural brasileira. O perfil das vítimas é de trabalhadores rurais sem-terra, na faixa de 17 a 50 anos, freqüentemente indocumentados e analfabetos. Pela estrita necessidade de sustentar suas famílias, são coagidos a buscar uma saída na migração temporária e no aliciamento, aceitando ou indo atrás de qualquer empreitada. O perfil dos escravistas modernos é de pecuaristas e fazendeiros do agronegócio que usam e abusam de uma pseudo-terceirização, por meio dos chamados "gatos", para impor uma superexploração e até cativeiro, em condições degradantes difíceis de se imaginar em pleno século XXI. Em 11 anos, foram libertados mais de 20 mil escravos explorados no desmatamento da Amazônia, na produção de carvão vegetal para a siderurgia ou nas lavouras do moderno agronegócio. Cerca de 250 casos são noticiados por ano, envolvendo 8 mil trabalhadores, de um total anual estimado entre 25 mil e 40 mil. Dos mais de 600 proprietários rurais já flagrados desde 1995, nenhum foi para cadeia a não ser de forma temporária, nenhum teve a propriedade confiscada e muitos reincidiram.

Ibase – A adoção do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, em 2003, teve resultados?

Frei Xavier Plassat – Sim. Resultou em avanços importantes na fiscalização e na punição, bem como na divulgação desta realidade por meio de campanhas educativas e de iniciativas de mobilização social. No entanto, esses esforços – iniciados em 1995 e ampliados em 2003 – não alcançaram os resultados prometidos. O primeiro motivo é que várias das medidas não foram implementadas. A aprovação do projeto de emenda à Constituição, que prevê, em benefício da reforma agrária, o confisco das terras de escravistas, está atolado até hoje no Congresso, por determinação da bancada ruralista e anuência do governo; o Supremo Tribunal Federal, até o final de 2006, mantinha sem definição a crucial questão da competência para julgar o crime de "trabalho análogo ao de escravo" – se cabe à Justiça Federal ou à Justiça comum. Essa persistente indefinição tem garantido a impunidade de quem comete o crime.

O mesmo STF até hoje protela a confirmação do princípio constitucional da desapropriação de imóveis rurais que descumprem sua função social trabalhista ou ambiental. E mais: a paralisia da reforma agrária e a crescente submissão do governo às exigências do agronegócio tornaram-se sérios obstáculos à geração de empregos decentes no campo, dificultando a emergência de uma agricultura camponesa forte, empenhada na segurança alimentar do país, no respeito aos recursos naturais, na inclusão social e na dignidade do trabalho. É tempo de questionar, com força, o modelo de crescimento imposto ao país, a base de monocultivos para exportação. Economicamente questionável, este modelo que o governo pretende agora ‘acelerar' tem sido concentrador, excludente, predador, além de escravizador.

Ibase – Quais os estados que mais sofrem com esse tipo de violência?

Frei Xavier Plassat – Depende do critério escolhido: há número de denúncias de trabalho escravo identificadas, número das que são fiscalizadas, número de trabalhadores que constam nas denúncias e a dos que chegam a ser libertados. Uma amostra está na lista suja publicada pelo governo a cada semestre desde o final de 2003.

Ibase – Como funciona a lista suja?

Frei Xavier Plassat – A lista suja é limitada, mas com carimbo oficial dos escravistas contemporâneos. Vale lembrar que, dos mais de 600 proprietários já flagrados no Brasil com escravos de 1995 para cá, somente 230 já transitaram alguma vez pela lista suja, devido às condições que levam à inclusão nesse cadastro: além de ter sido flagrado, é preciso ter esgotado todas as vias de recurso administrativas em relação à fiscalização realizada.

Ibase – Como vê a posição do governo em relação ao agronegócio?

Frei Xavier Plassat – O peso do setor do agronegócio exportador na definição da política deste governo é desmedido. Considerado setor salvador da pátria, tudo vale e a ele tudo é permitido. A opção do governo foi por este modelo de desenvolvimento 'exógeno', de enorme custo social e ambiental.

Ibase – E para uma verdadeira erradicação do trabalho escravo, há uma mobilização relevante por parte do governo?

Frei Xavier Plassat – Não parece ser considerado como havia sido definido na época do lançamento do Plano. Por exemplo, somente alguns setores do governo, sem influência decisiva, têm torcido a favor da PEC 438: o ministro do Desenvolvimento Agrário, o ministro do Trabalho e o ministro secretário especial de Direitos Humanos. Só esses, em diversas ocasiões, se manifestaram explicitamente sobre o assunto.

Além da atuação fiscalizadora do Ministério do Trabalho, essencial, embora aquém do necessário, convém citar o empenho do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que elaborou em 2005 um plano específico de combate ao trabalho escravo; o forte engajamento do Ministério Público do Trabalho e de setores da Justiça do Trabalho, hoje responsáveis pela penalização dos infratores por meio, particularmente, das indenizações por danos morais.

Dos outros setores do Estado, ouvimos o silêncio. Nem a chacina de Unaí, que acaba de completar três anos de impunidade, e a comoção que provocou conseguiram mudar o quadro. Na época, foi preciso cobrar do governo que incorporasse a matéria da PEC 438 na pauta da sessão extraordinária. Espontaneamente, a idéia não lhe havia ocorrido.

Apesar de todas as gestões realizadas para desengavetar o assunto, a PEC ficou atolada até hoje no Congresso. Pena que preocupações imed
iatistas ligadas à sustentação política tenham prevalecido sobre as opções fundamentais que se esperava deste governo. Pena que tantos congressistas tenham até hoje permanecido tão insensíveis a essa questão. Ou mesmo façam questão de não ver. Sem falar daqueles que têm culpa no cartório da escravidão moderna.

Ibase – O ano de eleições, de alguma forma, acelerou as ações contra o trabalho escravo?

Frei Xavier Plassat – Não. Os fatores de evolução observados nesse último ano não foram especialmente ligados à proximidade das eleições. Estas podem até ter criado um clima de expectativa prejudicial a avanços mais consistentes. A PEC continuou mais parada que nunca no Congresso, a reforma agrária não mudou de cara, o STF continuou protelando decisões essenciais. Tivemos mais avanços a partir da percepção dos riscos comercial e financeiro que começaram a se configurar de forma mais evidente a partir do final de 2005. Com novo surto de febre aftosa no Brasil, várias informações e denúncias passaram a circular nos países do norte, sugerindo claramente medidas de retaliação nos mercados consumidores contra produtos oriundos de desmatamento, condições sanitárias duvidosas e trabalho escravo.

Foi neste contexto, por exemplo, que vimos a Amaggi anunciar, em dezembro de 2006, que assinaria o Pacto Nacional contra a Escravidão proposto pelo Instituto Ethos e pela Organização Internacional do Trabalho, a partir do estudo da cadeia produtiva do trabalho escravo realizado pela ONG Repórter Brasil.

O governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, até então dizia que nunca encontrara escravidão no MT. Poucos meses depois, o mesmo Blairo Maggi, dessa vez intimado pelo governo federal, após episódio de tiroteio promovido pela Polícia Militar do estado contra integrantes do Grupo Móvel em ato de fiscalização, recebera em Cuiabá a reunião da Conatrae e, com a maior naturalidade, comprometeu-se a apresentar um Plano Estadual de Combate ao Trabalho Escravo no MT, um plano que até hoje não saiu.

Em circunstâncias distintas, mas provavelmente em decorrência da mesma análise de riscos, o Tocantins, outro pretendente ao título de ‘estado do agronegócio', aceitou sediar em Palmas a última reunião da Conatrae em setembro passado, comprometendo-se a elaborar até o final do ano seu plano estadual, em estreita colaboração com as organizações da sociedade civil. Falta ainda aprovar oficialmente o projeto já apresentado. A repetida divulgação do vergonhoso lugar ocupado pelo Tocantins no ranking nacional dos estados escravagistas (2° lugar) deve ter contribuído para criar o clima necessário para essa inesperada mudança de atitude no estado.

Ibase – Como funciona a Campanha Nacional de Combate ao Trabalho Escravo?

Frei Xavier Plassat – São três os alicerces que mantêm vivo o sistema da escravidão moderna: a miséria, a ganância e a impunidade. Miséria de milhares de famílias sem acesso à terra para trabalhar e produzir seu sustento, sem acesso à educação mínima ou à saúde. A maioria é de migrantes arrancados da sua terra natal, do Nordeste (Maranhão, Piauí e Ceará). Muitos são trabalhadores rurais condenados à miséria nas periferias de nossas cidades, depois de terem sido expulsos do campo nas últimas décadas. Ganância de um punhado de criadores que concentram terras, especuladores de terra enriquecidos pela grilagem e devastação da floresta; plantadores de soja ou de cana em terras que já foram de posseiros antigos, desalojados pelo lucro ou a violência brutal. Portanto, qualquer esforço para combater o trabalho escravo deve encarar esses três alicerces.

Ibase – Qual a meta da iniciativa?

Frei Xavier Plassat – O objetivo geral da nossa campanha é o amplo trabalho de prevenção, que passa pela divulgação na opinião pública nacional, regional, local e também internacional; a sensibilização dos públicos mais vulneráveis, popularizando os direitos existentes e combatendo a tendência à ‘naturalização' do trabalho degradante entre as próprias vítimas; o incentivo à organização coletiva e à cobrança de direitos; e a capacitação de agentes do movimento social, formadores de opinião e educadores em geral para dar efeito multiplicador a nossas iniciativas necessariamente limitadas.

Também estão incluídas as articulações das lutas do campo em favor da reforma agrária e da construção de um modelo de agricultura camponesa sustentável, como forma de se contrapor ao avanço cego do modelo excludente e predador do agronegócio nas formas como se apresenta no Brasil. E a cobrança incansável da ação repressiva do Poder Executivo, da ação punitiva do Poder Judiciário e do aprimoramento da legislação vigente (votação pelo Congresso da PEC 438, dispondo sobre o confisco das terras de escravistas e a reforma da lei sobre trabalho rural 5.889).

Ibase – Como funciona o atendimento às vítimas?

Frei Xavier Plassat – Na prática, as 12 equipes da CPT diretamente envolvidas neste combate – no Pará, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão, Piauí, Goiás, Bahia e Rio de Janeiro – têm como prioridade as vítimas. São elas que nos procuram, geralmente, fugindo de fazendas ou carvoarias, precisando inclusive de amparo e proteção. Lavramos suas declarações e encaminhamos ao Ministério do Trabalho para fiscalização. Elaboramos materiais didáticos e preventivos e multiplicamos as ações educativas voltadas para os públicos mais expostos: sem-terra, acampados, desempregados dos bairros periféricos etc.

Trabalhamos a ampliação do leque de entidades assumindo essa campanha, buscando parcerias, construindo espaços para construção e monitoramento de políticas públicas estaduais voltadas para a questão. Em âmbito nacional, participamos, na qualidade de observador, da Conatrae e colaboramos com os vários parceiros integrantes dessa comissão em iniciativas de divulgação e formação.

Ibase – Há alguma articulação internacional?

Frei Xavier Plassat – Em âmbito internacional, monitoramos a execução do Termo de Acordo Amistoso celebrado entre a Organização dos Estados Americanos e o Estado brasileiro, e o andamento de outros casos que apresentamos à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em outubro passado, provocamos em Washington um debate sobre o combate ao trabalho escravo no Brasil, nessa mesma Comissão Interamericana, na presença de representantes do governo brasileiro. Na oportunidade, apresentamos um curto vídeo bastante questionador, realizado por nossas equipes, ‘Aprisionados por promessas', em breve disponível no site.

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