Temos recebido inúmeras mensagens, via Internet, acerca das atuais pretensões do governo federal de retomar o projeto da transposição do rio São Francisco. Já nos manifestamos contrários, por várias vezes, a esse tipo de iniciativa, condicionando essa possibilidade à realização de um exaustivo processo de discussão sobre a realidade do ambiente natural por onde corre o Velho Chico. Não é para menos.
O Nordeste brasileiro, há cerca de dois anos, passou pela mais séria crise energética de sua história, motivada, principalmente, pela insuficiência volumétrica do rio São Francisco – sua principal fonte geradora de energia – o que, na ocasião, obrigou o governo federal a acionar o Plano B, decretando feriados, para não acontecer o pior: os desligamentos programados de energia, os quais, na linguagem popular, receberam a carinhosa denominação de apagões. O povo nordestino não pode, em hipótese alguma, apresentar-se desmemoriado com relação a esse fato. Para nós, esse é um exemplo claro, que exprime a real incapacidade do rio em atender aos diversos usos que se pretende dar às suas águas.
Por outro lado, se traçarmos um paralelo entre o que já aconteceu no setor elétrico nordestino e o ocorrido, recentemente, em Nova York (pois é, acreditem: os americanos também passaram por um desligamento, dessa feita não programado), iremos observar que, pelo menos nesses assuntos, temos algo em comum. No auge da nossa crise energética, culpou-se o governo federal pela falta de investimentos no setor, o que motivou, entre outras ações, a decisão de se criarem, às pressas, alternativas de acesso à energia que possibilitassem a continuidade do nosso desenvolvimento.
Como a Chesf já havia explorado praticamente todo o potencial gerador do rio São Francisco, e a linha de transmissão existente, ligando Tucuruí (rio Tocantins) ao Nordeste, só permitia repassar cerca de 1.300 MW médios para a região, optou-se pela ampliação da rede de transmissão de energia, dessa feita com mais uma linha de 500 quilovolts, ligando Tucuruí-Marabá-Açailândia-Imperatriz-Presidente Dutra, totalizando 924 km, estando esta em operação desde março deste ano.
Além dessa linha, foi programada outra, de 500 quilovolts, ligando Tucuruí-Marabá-Açailândia, totalizando 464 km, com previsão de ser energizada em dezembro de 2004. Ainda associada ao sistema de interligação de Tucuruí, programou-se nova linha de transmissão, de 500 quilovolts, ligando Teresina-Sobral-Fortaleza, com 540 km de extensão, estando esta em fase de licitação pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). Para que todos esses investimentos obtenham sucesso, fez-se necessária a ampliação do sistema gerador de Tucuruí, o qual passará dos atuais 4.000 MW de capacidade instalada para 8.000 MW, em 2006.
Além da região Norte, o Sudeste também dará a sua parcela de contribuição ao Nordeste, através de uma linha de transmissão ligando a hidrelétrica de Serra da Mesa (rio Tocantins) aos municípios de Rio das Éguas-Bom Jesus da Lapa-Ibicoara-Governador Mangabeira (esse último localizado no Recôncavo baiano), de 500 quilovolts e 1.050 km de extensão. Essa linha disponibilizará para o Nordeste cerca de 900 MW. O trecho Serra da Mesa-Ibicoara já está energizado desde fevereiro deste ano, faltando apenas o trecho Ibicoara-Governador Mangabeiras, o qual se encontra em fase de construção. É importante notar que boa parte das alternativas aqui citadas está em fase de construção ou em licitação de obras, portanto sem resolver ainda um eventual problema de falta de energia que venha a acontecer na região.
Além de todo esse aparato de linhas de transmissão “salvadoras”, o governo federal partiu também para a construção de uma rede de termelétricas a gás natural espalhadas pelo país, em princípio com uma previsão de 49 unidades, atualmente contingenciadas pela metade, com vistas a auxiliar no aporte energético. Em caso de emergência, outra bateria de termelétricas, dessa feita sobre barcaças e movidas a diesel, poderá entrar em ação. Essas medidas, inclusive, já estão onerando em cerca de 2% a conta de energia elétrica dos usuários nordestinos (seguro apagão), penalizados que foram antes mesmo da existência do problema.
Fizemos esse relato para mostrar o quanto estão sendo semelhantes os problemas dos americanos, nesse particular, aos que vêm ocorrendo no Nordeste brasileiro. Na revista Veja de 20 de agosto de 2003, em reportagem sobre o apagão ocorrido em Nova York, que atingiu cerca de 50 milhões de pessoas e, inclusive, parte do Canadá, foi mencionada a necessidade de se modernizar o sistema de transmissão dos Estados Unidos, que necessitaria de 56 bilhões de dólares em investimentos, dos quais apenas 35 bilhões haviam sido efetivamente alocados. Anunciou-se, também, um plano emergencial para a construção de mais 1.900 usinas geradoras (a maioria termelétricas), em um prazo de 20 anos.
Em que pese a magnitude dos números apresentados na reportagem, resta-nos refletir, e com preocupação, sobre o fato de uma superpotência, mesmo com as facilidades financeiras existentes, ter apresentado problemas iguais aos dos países do Terceiro Mundo, não conseguindo evitar um apagão de grande monta. De resto, fica a seguinte pergunta: considerando o apagão em Nova York, será que as ações postas em prática pelo governo brasileiro de iniciar a lenta expansão das linhas de transmissão de energia para o Nordeste, concomitantemente com a nova proposta de transposição do rio São Francisco, com importantes subtrações volumétricas do rio, não iriam facilitar ainda mais a ocorrência de novos apagões na região?
Nesse sentido, voltamos a reivindicar uma ampla discussão sobre essa temática, nos aspectos atinentes aos múltiplos usos das águas do São Francisco, bem como a necessidade de se proceder à tão esperada revitalização de sua bacia. Não se entenda essa reivindicação como um apelo, mas sim como a exigência de toda uma região.
João Suassuna, engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, é considerado um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.