Recife – Recentemente, o vice-presidente da República, José Alencar, veio ao Nordeste para a retomada das negociações em torno do projeto de transposição das águas do São Francisco. O projeto, que visa atender às necessidades hídricas das populações, é já bastante conhecido de todos os nordestinos, pois é uma cópia fiel das iniciativas do governo anterior. Apenas veio com algumas novidades: a revitalização da bacia do rio, através do desassoreamento de sua calha e da reposição das matas ciliares destruídas, além do tratamento de esgotos em cerca de 500 municípios e da transposição de águas do Tocantins para o aumento da vazão do São Francisco. Para todas essas ações, o governo Lula estima um custo total da ordem de US$ 6,5 bilhões, ou R$ 20 bilhões, cifra bem superior aos US$ 2,7 bilhões do projeto do seu antecessor.
Na nossa ótica, esses valores de certa forma assustam, tendo em vista a existência de outros programas de igual importância para o governo federal que ainda não foram deslanchados, ou que avançaram de maneira insatisfatória, a exemplo do Fome Zero, os quais certamente irão demandar iguais aportes de recursos. Haverá dinheiro para tudo que se pretende?
Para nós que estamos envolvidos com essas questões há bastante tempo, existem dois equívocos muito evidentes quando o assunto é transposição do São Francisco: um deles é de ordem ambiental e o outro de viabilidade econômica.
Com vistas a tentar elucidar esses equívocos, reportamo-nos ao ano de 2001, quando fomos procurados por um dos diretores da Rede Globo Nordeste, do Recife, para subsidiar, com informações, a edição de uma matéria sobre recursos hídricos do Nordeste. Essa matéria despertara a atenção da referida emissora por já se vislumbrar, para aquele ano, o colapso hídrico em boa parte da região, o que realmente veio a acontecer, resultando disso a mais séria crise energética de nossa história, com os desagradáveis desdobramentos vividos por toda a população.
Ao fornecer as informações à Globo, tivemos a preocupação de mostrar que a água existe com relativa abundância em todos os estados do Nordeste e que não iria faltar, uma vez planejado o seu uso. Mencionamos a riqueza hídrica existente no subsolo do sedimentário piauiense, no vale do rio Gurguéia, notadamente no município de Cristino Castro, onde poços jorram 24 horas por dia, aparentemente com enorme desperdício, pois não se sabe ao certo o destino que é dado a essa água que brota inesgotavelmente à superfície. Mostramos a importância das grandes represas para o abastecimento das populações, inclusive a necessidade de se interligarem suas bacias hidrográficas, com vistas a possibilitar o abastecimento de áreas carentes com águas oriundas das represas que apresentem melhores condições de uso, trabalho que vem sendo muito bem conduzido no Estado do Ceará. Fizemos um relato do potencial volumétrico existente nos aqüíferos localizados no sedimentário de todos os Estados nordestinos e das dificuldades em se obter água nas regiões de geologia cristalina, devido às baixas vazões das fontes existentes na rocha fraturada e ao alto teor de sais de suas águas. Tudo isso foi levado ao ar e é preciso que seja realmente divulgado e compreendido por todos aqueles que têm o poder de decisão nas mãos.
Pelo modo como a transposição vem sendo conduzida por nossas autoridades, percebe-se a grande desinformação que existe acerca das questões hídricas do Nordeste, o que poderá resultar em enormes prejuízos econômicos.
Nesse sentido, cremos que já é chegada a hora de começarmos a fazer um exercício de viabilidade econômica no abastecimento das populações nordestinas com as águas existentes em cada um dos Estados, sejam elas de superfície, sejam de subsolo, tomando-se sempre como parâmetro os custos da proposta transpositória do Velho Chico ora divulgada pelo governo. Temos que encontrar meios de esclarecer os seguintes itens:
1) Quanto custa abastecer as populações sedentas do sudeste do Piauí, região semi-árida e de geologia cristalina, com as águas jorrantes oriundas do sedimentário do vale do Gurguéia, naquele mesmo Estado;
2) quais os resultados já alcançados pelo programa de interligação de bacias do Estado do Ceará, idealizado para satisfazer o abastecimento de sua população mais carente no Semi-árido;
3) qual o custo do abastecimento das populações da região do Seridó norte-rio-grandense com águas oriundas da represa Armando Ribeiro Gonçalves, o segundo maior reservatório do Nordeste;
4) qual o custo do abastecimento de todo o sertão paraibano com águas oriundas das represas Coremas/Mãe d’água, as maiores do Estado da Paraíba;
5) quais as possibilidades de ampliação da adução do aqüífero sedimentário do Jatobá, para o abastecimento de boa parte do sertão pernambucano e;
6) qual a situação, hoje, do Programa Federal denominado 1 milhão de cisternas?
A esse respeito, em conversa com Manoel Dantas Vilar Filho, – o Manelito, conhecido engenheiro sanitarista paraibano, ex-presidente da Companhia de Águas e Esgotos da Paraíba (Cagepa) no governo de João Agripino na década de 70 e, atualmente, pecuarista no município de Taperoá (PB) – foi-nos informado que recalques de água das represas Coremas e Mãe d’água para o maciço do Jabre, no município de Teixeira, considerado o ponto mais elevado do Nordeste, possibilitariam a distribuição da água, por gravidade, para todo o sertão paraibano. Essa iniciativa, juntamente com a construção de duas represas no rio Mamanguape e com todo o potencial hídrico existente no sedimentário do litoral paraibano, resolveria, por um longo período, os problemas de abastecimento de todo o Estado da Paraíba. Nesse sentido, uma articulação com esse engenheiro para o esclarecimento de dúvidas poderá ser concretizada por telefone, através do número: (83) 463-2213.
Precisamos reconhecer o esforço do governador de Pernambuco Jarbas Vasconcelos, que vem buscando utilizar primeiro o potencial hídrico existente no Estado para fins de abastecimento, seja na exploração do sedimentário do Jatobá, atendendo às populações dos municípios de Sertânia, Arcoverde e Cruzeiro do Nordeste, entre outros, seja na adução de represas, a exemplo de Pirapama Quiriméi e Tiúma, na zona da mata; de Belo Jardim, Poço da Cruz e Jucazinho, no agreste, e de Chapéu, Entremontes e Serrinha, no sertão pernambucano. Aliás, ao se referir à transposição do São Francisco no Jornal Nacional do dia 03/10, o governador ponderou sobre as prioridades do seu governo em explo
rar primeiro as águas disponíveis nos aqüíferos do seu Estado.
Após as respostas a cada um dos itens formulados anteriormente, é provável que se chegue a parâmetros de viabilidade técnica e econômica de uso das águas em cada um dos Estados nordestinos, isso quando comparados aos custos do processo transpositório do São Francisco. Diante das prioridades que já foram dadas ao rio, parece-nos que revitalizar a sua bacia é uma ação importante e necessária, mas a transposição de suas águas, para o abastecimento das populações, poderá ficar para mais adiante, após a exploração cuidadosa dos mananciais existentes na região.
Ao nos depararmos com questões como essas, lembramos de um fato que ocorreu na Rússia dos tempos dos czares. Conta-se que a construção de uma estrada ligando duas localidades em região montanhosa da Rússia, portanto de topografia extremamente acidentada, gerou certa insatisfação na equipe de engenheiros responsáveis pela obra. A insatisfação era devida às dificuldades existentes para viabilizar uma obra que fatalmente teria que vencer um relevo intransponível. Solicitada uma audiência ao czar para os devidos esclarecimentos do fato, este, munido de um mapa, uma régua e um lápis, pôs a régua sobre as duas localidades, traçou uma linha ligando-as e em seguida decretou: “na construção da estrada tem que se obedecer a esse trajeto”. Essa solução gerou um grande constrangimento nos engenheiros, pois sabiam eles dos problemas que enfrentariam caso houvesse uma ligeira inflexão da linha originalmente traçada pelo czar. A estrada foi construída da forma como ele planejara. Quem viver e for lá, verá.
Sem querermos comparar o Brasil de Lula com a Rússia dos czares, ficamos a imaginar a transposição de águas do São Francisco, vencendo-se um relevo de 160 m, para essas águas chegarem ao Rio Grande do Norte, percorrendo uma distância de aproximadamente 500 km, com todas as conseqüências advindas da ação das intempéries e obstáculos da natureza nesse trajeto e, ainda por cima, com o rio sendo enriquecido com águas de um rio pertencente a outra bacia hidrográfica, cujo divisor de águas, para ser vencido, se assemelha topograficamente à região da Rússia vencida, a duras penas, pelos engenheiros do czar. Sabedores da viabilidade da represa Armando Ribeiro Gonçalves, sozinha, abastecer toda a população norte-rio-grandense nos próximos 20 anos, vislumbramos a existência de algo czarista no processo transpositório do rio para aquele Estado.
Finalmente, entendemos que diante desse cenário o momento é mais para reflexão e uso das águas existentes nos Estados, do que propriamente de execução da obra transpositória do rio São Francisco. Voltamos a insistir na necessidade de se envolverem, para a discussão dessas questões, o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco e a Agência Nacional das Águas (ANA), instituições que foram criadas para atuar com esses propósitos, dando-lhes meios para agir de forma independente e autônoma em todo esse processo.
João Suassuna , engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, é considerado um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.