Trabalho escravo sem punição

 01/05/2007

Karla Correia e Fernando Exman

BRASÍLIA. A impunidade ainda é a principal mancha da política de combate ao trabalho escravo no país, apesar do crescimento das operações de repressão realizadas pelo governo. Desde 2001, o Ministério do Trabalho conseguiu libertar 21.296 trabalhadores encontrados em condições análogas à escravidão, e o número de operações em propriedades aumentou quase dez vezes no período. Como resultado, o Brasil é considerado hoje pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) referência mundial no combate ao problema.

Apesar do reconhecimento internacional, o país tem um longo caminho a percorrer. Motivo: até agora não há sequer um proprietário de terra condenado e preso pela prática. Segundo autoridades públicas e especialistas, a responsabilidade pela impunidade é, sobretudo, do Poder Judiciário, que levou 11 anos para decidir qual das suas esferas tem competência para julgar os acusados de recorrerem ao trabalho escravo.

Só em novembro do ano passado o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os processos penais sobre o tema têm de ser julgados pela Justiça Federal. A demora de mais de uma década trouxe prejuízos para a política de erradicação do trabalho escravo, reconhece Erlan José Peixoto do Prado, Procurador do Trabalho. Teria inviabilizado quaisquer condenações.

– Fatos do passado recente podem prescrever. Existe o risco da impunidade – diz o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), José Nilton Pandelot. – Mas temos certeza que a partir de agora a Justiça Federal julgará todas as condutas contra o artigo 149 do Código Penal.

Multas e restrições comerciais
Os empregadores que mantêm trabalho escravo são punidos pelo Ministério do Trabalho com o pagamento de multas e indenizações aos trabalhadores libertados e com a inclusão de suas empresas na chamada lista suja da pasta, que hoje conta com 162 nomes de fazendeiros e propriedades flagradas em ações conjuntas do ministério e Polícia Federal. Existem sanções para quem faz parte dessa lista.

O Ministério da Integração Nacional veta a concessão de financiamento dos fundos constitucionais de desenvolvimento aos denunciados pela prática ilegal. O Banco do Brasil nega empréstimos e alguns setores da economia, como siderúrgico, recusam-se a comprar insumos, como carvão vegetal, de fornecedores que façam parte da relação.

Até a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que no ano passado atribuiu à Justiça Federal a competência para julgar processos relacionados ao trabalho escravo, não havia muito mais o que fazer, diz o Procurador do Trabalho Erlan José Peixoto do Prado, membro da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho. Devido à demora do Judiciário, declara o procurador, até hoje não houve nenhuma condenação definitiva de proprietários acusados pela prática.

Para Peixoto, a tendência agora é a Justiça avançar nos processos resultantes de denúncia do Ministério Público. Os resultados, no entanto, devem demorar para aparecer.

– Será mais fácil e mais rápida a tramitação de processos condenando a prática, mas existe mais de uma centena de denúncias aguardando julgamento – diz o procurador.

O presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), José Newton Pandelot, manifesta outras duas preocupações. Para Pandelot, o Executivo precisa investir mais no combate à escravidão, e o Ministério do Trabalho deve convocar os fiscais já concursados e que aguardam a convocação do governo para começar a trabalhar, a fim de não interromper o fluxo das operações.

– Já fiz o alerta ao ministro Carlos Lupi (Trabalho) do perigo de enfraquecimento da fiscalização. A transição do comando do ministério não pode descontinuar a atuação dos fiscais.

O trabalho escravo está concentrado no campo, mais precisamente nas fronteiras de desmatamento na Amazônia e no cerrado de Mato Grosso. Os Estados do Pará, Maranhão, Mato Grosso e Tocantins lideram o ranking da prática. Cerca de 80% dos trabalhadores libertados pelas ações do Ministério do Trabalho vêm de áreas de desmatamento para a formação de pasto. Outros 10% se originam de lavouras de soja e algodão.

– O crime da escravidão está ligado aos crimes ambientais de forma muito íntima – diz Marcelo Campos, coordenador do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho. – Tradicionalmente, no Brasil, o desmatamento é feito de forma ilegal, e os fazendeiros têm de agir nas sombras e contratar trabalhadores também de forma ilegal. Está fechado o círculo.

Os problemas com o Judiciário são citados pela maioria dos ativistas ligados ao combate ao trabalho escravo, mas o principal alvo das críticas do presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Manoel José dos Santos, é o Congresso. O líder dos trabalhadores rurais diz que o lobby dos grandes produtores tem conseguido impedir que os parlamentares aprovem leis mais duras contra os empresários que realizam o trabalho escravo, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438.

O texto, que determina a expropriação das terras onde ocorrer trabalho escravo, está parado há três anos na Câmara por força de setores da bancada ruralista.

– A lei contra o trabalho escravo precisa endurecer, e quem promove o trabalho escravo deve ir preso e ser impedido de fazer negócios – declara o presidente da Contag. – Mas o empresariado exerce um poder muito forte no Legislativo. Não tenho esperança de ver uma legislação melhor no curto prazo.

Sem essa base legal, a política de erradicação ao trabalho escravo consegue, no máximo, reprimir a prática. Para a coordenadora do Projeto de Combate ao Trabalho Forçado da OIT no Brasil, Patrícia Audi, o país falha quando a questão é prevenir o crime de escravidão e reinserir os trabalhadores encontrados nessas condições no mercado de trabalho. Segundo Patrícia, em dezembro de 2005 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou protocolo de cooperação entre os ministérios do Desenvolvimento Social e do Trabalho garantindo a entrada dos egressos do trabalho escravo no Bolsa Família, além do pagamento de seguro-desemprego a esses trabalhadores.Até hoje o benefício não foi implantado.

– A falta de iniciativas de reinserção gera um ciclo vicioso no campo. Não há como impedir que o trabalhador egresso da escravidão, normalmente pobre e analfabeto, volte a essas condições sem que haja uma política de inserção.

Agricultores condenam a "lista suja"
Para a Confederação da Agricultura e Pecuári
a do Brasil (CNA), a lista suja do Ministério do Trabalho – relação dos proprietários rurais acusados de explorar trabalho escravo – é inconstitucional. A entidade que representa o agronegócio, setor que é alvo da maior parte das denúncias do Ministério Público, condena a maioria das ações desenvolvidas pelo governo no combate ao trabalho escravo.

– Não podemos aceitar que o governo pretenda deduzir a prática de crime sem que seja dada oportunidade de defesa legal aos acusados – diz o presidente da Comissão Nacional de Relações do Trabalho da CNA, Rodolfo Tavares. – Em nome do combate a essa prática lastimável que é o trabalho escravo, o Estado comete uma injustiça absurda com os proprietários rurais.

Em 2005, a entidade entrou com ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF) contestando a lista suja, mas até hoje o recurso não foi julgado. Segundo Tavares, uma das principais reclamações do setor é a ausência de uma instância tripartite, reunindo governo, trabalhadores e proprietários rurais, que estipule as ações do ministério na fiscalização de propriedades.

– O próprio fiscal é quem condena o proprietário. O juiz não pode ser parte na ação – reclama Tavares. – A criação de uma junta tripartite para avaliar esses casos é essencial para que não se cometa abusos. Afinal, o auditor fiscal também é passível de erro.

Segundo Tavares, a inclusão "precipitada" de fazendeiros entre os acusados de explorar trabalho escravo pode se tornar um prejuízo para a economia do país, abrindo brechas para a imposição de barreiras não-tarifárias a produtos brasileiros no mercado externo. A CNA também alega que o problema do trabalho escravo é, acima de tudo, uma questão de desinformação. As ações do Ministério do Trabalho deveriam ter caráter informativo.

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