Entre os dias 22 e 23 de junho, operação-relâmpago libertou 17 trabalhadores de condições análogas à escravidão no município de Bandeirantes (TO). As vítimas viviam em barracos cobertos com lona e sustentados por troncos de árvore, no meio da mata, sem qualquer ponto de luz elétrica. Tanto nos alojamentos como nas frentes de trabalho, não havia banheiros e nem água potável. A única fonte de água disponível era um raso açude.
O coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Xavier Plassat, colaborou para que a fiscalização fosse realizada e acabou fazendo parte da comitiva formada de última hora para atender a urgente denúncia.
Seguem a seguir o relato (antecedido de uma breve introdução e sucedido por um conjunto de informações gerais complementares) de autoria do frei Xavier Plassat, que há muito e de modo incansável vem atuando no combate à escravidão contemporânea.
No interior de Bandeirantes (TO), operação-relâmpago resgata
17 trabalhadores de condição análoga à de escravo
O caso chegou ao conhecimento do Ministério Público do Trabalho (MPT) por meio de uma denúncia encaminhada pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH-PR), através da Promotoria do Estado do Tocantins. Informava a situação calamitosa de um trabalhador idoso na fazenda Avelinos, na região norte do Estado do Tocantins. O procurador do trabalho em Araguaína pediu diligência à Polícia Militar (PM) de Colinas do Tocantins. No local, os policiais não acharam o idoso, mas encontraram cerca de 20 trabalhadores laborando na instalação de cercas e no roço de pastos, alojados em condições degradantes, a boa distância da sede confortável da fazenda. Fotografaram barracos e trabalhadores; em seguida, pediram orientação sobre o que fazer. Alertado, o MPT procurou então viabilizar uma imediata inspeção no local e passou a chamar os parceiros: Polícia Federal (PF), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), além da PM. Presente na Procuradoria naquele momento, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) auxiliou na organização e realização da operação.
Ao chegar nesta quarta-feira (22/06) na PRT, pelas 16h, para uma conversa agendada com o Dr. Alexandre Ragagnin, procurador, este me informou que acabava de receber o resultado da diligência que havia solicitado à PM de Colinas do Tocantins, visando averiguar uma denúncia no município de Bandeirantes (TO). O Ministério Público Estadual havia recebido (e repassado ao MPT) denúncia de que um trabalhador de 70 anos estaria mantido dentro de uma fazenda, em cárcere privado e maltratado. Só que, ao chegar lá, a PM descobriu cerca de vinte trabalhadores mantidos em regime degradante, debaixo de lona preta; fotografou tudo, registrou os nomes, pediu orientação à chefia, a qual procurou a Polícia Federal e o Ministério Público do Trabalho para saber se era o caso de retirar as pessoas… Mas, depois, fazer o que com elas?
O procurador se convenceu logo da necessidade de ir inspecionar a fazenda sem esperar outro dia. Pediu-me auxílio para articular a operação… Era para já! Objetivo: sair antes da noite e antecipar assim a provável reação do empregador. Conseguimos alcançar o auditor fiscal do trabalho Humberto Célio e o chefe da fiscalização na Superintendência do Trabalho e Emprego de Palmas (TO); fizemos contato com a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), do MTE, em Brasília (DF). A avaliação na SRTE era de que só seria possível o deslocamento para a fiscalização após o feriado prolongado, pois caberia levantar dados e planejar melhor e minimizar riscos eventuais.
Os policiais militares haviam flagrado evidências bastante robustas na mesma tarde quanto à situação degradante em que os trabalhadores se encontravam. Já era 16h45. Em pouco mais de meia hora, conseguimos articular uma operação envolvendo a PF (o delegado Omar, de Araguaína, liberou na hora dois policiais e uma viatura 4X4), a PM (o comandante, em Colinas, disponibilizou um 4X4 e mais dois policiais do setor de inteligência e um motorista, fardado, para voltar à área de onde acabavam de regressar, orientando nossa turma), o MTE. Achamos por sorte dois auditores fiscais do trabalho que estavam na Agência do MTE de Araguaína, a qual (é o cúmulo!) não comporta esse tipo de servidor no seu quadro. O chefe de fiscalização autorizou a participação deles (Josenilton Soares e Marcos Lázaro Calixto), subsidiando assim o trabalho a ser completado na segunda-feira (27/06), quando chegaria o auditor Humberto. Consultei nossa coordenação [da CPT] e resolvi atender o convite do procurador para acompanhar a operação.
Constava das informações recebidas que a fazenda estaria a 175 km de Araguaína: 75 km ao sudoeste de Colinas, saindo pela Rodovia BR-153 e deixando a mesma no povoado de Tiririca, pegando a seguir 60km de chão ruim. Encostei minha moto no pátio do MPT; o procurador trocou roupa social por roupa de campo: eram 18h quando deixamos a PRT. Formamos um comboio integrado por três veículos 4X4, aberto pelo da PF, fazendo de batedor. Em Colinas (100km ao sul), paramos no quartel da PM; os policiais mostraram as fotos evidenciando com clareza as típicas condições degradantes dos alojamentos; um quarto carro incorporou-se à nossa caravana. Saímos finalmente às 20h rumo à fazenda. Cerca de 15 km de asfalto, mais 60km de estrada de chão. Chegamos um pouco antes das 22h à sede da propriedade: uma casa muito bem estruturada, comportando pelo menos três entradas distintas, como se tivesse sido planejada para ser um alojamento de boa qualidade. Só que ali residiam apenas o vaqueiro-gerente e sua esposa e, nos fins de semana, o proprietário. A casa tem energia elétrica e água de poço artesiano.
Aquilo que se podia imaginar havia ocorrido: alertado pelo vaqueiro, após a passagem dos policiais militares, o fazendeiro havia, por volta de 19h30, mandado desmanchar todos os barracos de lona e trazer os trabalhadores para a sede da fazenda. Aí estavam eles, cada um deitado na sua rede, do lado de fora da sede, aguardando serem, com toda probabilidade, despejados para Colinas no dia seguinte. Fizemos constatações e entrevistas. Percorremos 2 ou 3 km na quase-escuridão, mitigada por um céu repleto de estrelas, em busca dos restos dos dois alojamentos. Chegamos aos pontos, que ficavam afastados da sede uns 1 a 2 km, em dois locais distintos, à margem de um córrego multiuso (um trabalhador comentou para mim sobre o frio gelado que passavam ali durante as noites). Sobravam cinzas e forquilhas do barraco jogadas no chão amassado.
Procuramos encontrar o local de um terceiro alojamento, mas, na escuridão, não conseguimos alcançar. Finalmente tiramos todos os trabalhadores encontrados da fazenda (provenientes de Itacajá e Colinas, sendo que um deles tinha apenas 17 anos) e levamos para a cidade, com exceção do tratorista (alojado em casebre bem precário) e do vaqueiro-gerente (alojado na sede) e de suas respectivas famílias.
Usamos os veículos 4X4 para garantir a transferência das vítimas até o último ponto acessível ao ônibus que havíamos fretado no início da noite. Seguimos em comboio até Colinas do Tocantins, onde chegamos às… 2h30 da manhã.
Deixamos oito trabalhadores num hotel ao lado da rodoviária. Os custos correriam pela conta do empregador – ao qual o fiscal telefonou desde a fazenda, por volta de 1h da madrugada; o mesmo é dono de um escritório de contabilidade em Colinas; não ostentou resistência; fingiu que estava em Redenção (PA), mas tudo indica que estava mesmo em Colinas onde, provavelmente, havia até observado nosso comboio, ao sairmos do quartel da PM. Ficou acertado que Humberto Célio, auditor fiscal do trabalho de Palmas, viria na segunda-feira (27/06) realizar os procedimentos de praxe, lavrar os autos de infração, determinar a rescisão dos contratos e encaminhar a inclusão dos 17 resgatados no registro do seguro-desemprego. O procurador também: para pegar depoimentos dos trabalhadores e oferecer ação civil pública, incluindo um pedido de indenizações por danos morais, ou propor possível Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), caso o empregador concordasse em acertar rapidamente tudo o que devia aos empregados.
Acabamos voltando a Araguaína às… 4h30 da manhã.
A fazenda chama-se Prosperidade da Serra (antigamente tinha o nome de Avelinos); e o dono da propriedade é Genilson Rodrigues da Silva. O imóvel rural ocupa 160 alqueires e tem 650 novilhas. Contratados diretamente por Genilson, os trabalhadores não possuíam carteira assinada. Formavam três times distintos cada uma com seu responsável: um time de quatro trabalhadores (todos de Itacajá) cuidava da construção de cercas e recebia por produção. Uma grosseira avaliação estima a produção realizada por esse time entre 20 de abril, quando começaram, e 22 de junho, em 1,3 mil estacas; com preço combinado de R$ 5 por estaca, ou seja: uma remuneração teoricamente equivalente a 6500/2/4 = R$ 812 por pessoa e por mês), os demais, quase todos de Colinas (Santo Antônio II e Santa Rosa), trabalhavam no roço de pasto e de juquira e combinaram a R$ 400 por alqueire, o que asseguraria uma remuneração média de R$ 20 a 25 por dia, próxima ao salário mínimo. Deste grupo, uns estavam na fazenda há oito dias e, outros, há mais tempo, mas sem ultrapassar dois meses. Não receberam nenhum pagamento a não ser pequenas remessas, por solicitação individual. Eles acreditavam que seriam pagos apenas no final da empreita.
Distância, isolamento e falta de condução inviabilizavam qualquer saída do local – a não ser para três deles que possuíam uma moto. O “rancho” [como são popularmente chamadas as refeições] era preparado por cada turma no seu barraco, com base em compras feitas semanalmente em supermercados de Colinas e trazidas pelo fazendeiro (o mesmo visitava a propriedade a cada fim de semana), pagas (descontadas do valor final a receber) pelos chefes de cada time. O fazendeiro não fornecia nenhuma ferramenta de trabalho ou equipamento de proteção. Não havia sinal de armamento no local.
Os acertos realizados em Colinas do tocantins nos últimos dias 27 e 28 de junho resultaram no pagamento de verbas rescisórias no valor total de R$ 32.169,82. Foram lavrados, ao todo, 19 autos de infração. No TAC assinado com o Ministério Público do Trabalho, o proprietário comprometeu-se a cumprir com as regras legais de contratação rural – sob penas de multas reforçadas – e se obrigou a pagar R$ 10 mil a título de indenização por danos morais (um valor reduzido, em função da curta duração da empreita). Em conversa com Silvano Rezende, agente da CPT presente naquele momento, os trabalhadores agendaram novo encontro, a fim de debater como se prevenir contra a prática do aliciamento e de encontrar caminhos para um trabalho livre e decente, quem sabe, em cima de uma terra que seja deles…