Três anos antes da inauguração de uma usina hidrelétrica no rio Teles Pires, na divisa entre o Pará e o Mato Grosso, indígenas que moram no local já avisavam: a obra destruiria grande parte dos peixes da região. O alerta dos povos Kayabi, Apiacá e Munduruku foi ignorado e, antes ainda de a usina ser inaugurada, peixes já foram encontrados mortos devido à falta de oxigênio dentro da água e outras centenas foram triturados pelas turbinas da hidrelétrica.
Diante disso, o Ministério Público Federal entrou com ações judiciais, e o Ibama aplicou multas à usina. Mas, para os indígenas, já era tarde: o peixe é elemento básico da sua alimentação.
O erro cometido em Teles Pires é um clássico no histórico da construção de empreendimentos no Brasil: obras planejadas à revelia das populações locais, ignorando seus conhecimentos tradicionais, suas necessidades e direitos. Agora, um movimento começa a tomar forma para que, finalmente, esse padrão possa ser corrigido. Indígenas e comunidades tradicionais pressionam para que o governo os consulte antes de aprovar obras que vão mudar para sempre as suas vidas e o local onde vivem.
Há pouco mais de dez anos, o governo brasileiro deu o primeiro passo ao assinar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, onde se compromete a consultar povos indígenas e tradicionais quando tomasse qualquer medida que afetasse a sua vida. O mecanismo, porém, nunca foi aplicado de forma apropriada no Brasil.
A grande diferença entre o que o país promete internacionalmente e o que faz dentro de casa é constantemente denunciada por entidades que defendem os direitos socioambientais desses povos. Para Adriana Ramos, do Instituto Socioambiental (ISA), o país assume uma “face pública” progressista na esfera internacional, portando-se como um defensor dos indígenas diante de outros países, mas sucumbe diante de prioridades locais, como a construção de obras de infraestrutura.
Incluídos na lei, excluídos na prática
A pressão para que esses grupos sejam incluídos no processo de aprovação de empreendimentos é parte de um movimento maior, uma mudança profunda na relação entre os estados nacionais e as populações tradicionais, consolidada pela Convenção 169. A convenção estabelece a busca pelo respeito às particularidades de diferentes povos que constituem uma nação, um caminho apontado também pela Constituição Federal de 1988. Redigida em 1989, a convenção foi incorporada pelo Brasil quase quinze anos depois, em abril de 2004.
Tardiamente, o Brasil começa a dar os primeiros passos para romper com a ideia de um estado que busca incorporar grupos com outras formas de organização social e política a uma sociedade nacional, sem respeitar as particularidades de cada comunidade. Pelo contrário, a ideia agora é de que esses grupos devem ser ouvidos e contemplados dentro de todo e qualquer processo de decisão que os afete.
A convenção mudou a forma sobre como são identificados os “povos indígenas e tribais”, uma ideia que engloba a definição de indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais– como por exemplo certos grupos de pescadores. Essas comunidades devem ter modos de vida e características culturais diferentes do resto da sociedade e, além disso, é a própria população que deve se identificar com pertencente a um desses grupos. Uma comunidade que ocupe a área onde se estabeleceram escravos fugidos, por exemplo, pode reclamar para si a identidade de quilombolas perante o Governo Federal.
A consulta a essas populações deve ser feita pelo governo antes de qualquer autorização para a obra, sem pressões externas aos povos ouvidos e com todas as informações disponíveis de forma que eles possam entendê-las. No jargão jurídico, de forma “prévia, livre e informada”.
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Por que ninguém é ouvido?
O Brasil já ensaiou fazer a consulta em ao menos doze casos. Sempre graças à determinação de juízes, o governo seria obrigado a ouvir populações tradicionais antes da construção de hidrelétricas, portos, parques nacionais e até da construção de escolas. Mas, até hoje, essas consultas não se concretizaram.
A usina de Teles Pires foi um desses casos. Diante dos protestos dos indígenas, que anunciavam a morte dos peixes que a obra traria, e a pedido do Ministério Público Federal, uma juíza de primeira instância suspendeu todas as obras até que eles pudessem se pronunciar a respeito.
A consulta, porém, foi suspensa por outro juiz. Ele argumentou que a decisão de suspender a licença iria “contra a ordem e a economia”, e retardaria a “ampliação do parque energético do país, previsto no Plano de Aceleração de Crescimento II”. O juiz ainda se referiu a Teles Pires como parte de uma série de “empreendimentos energéticos competitivos, renováveis e de baixa emissão de carbono, que movimentam bilhões de reais e representam milhares de empregos diretos e indiretos.” (Leia a íntegra da decisão.)
Juízes usaram argumentos semelhantes para acabar com a esperança das comunidades serem ouvidas em outras obras, como a usina de Belo Monte, no Pará, e São Manoel, no mesmo rio Teles Pires.
Na prática, eles atropelaram todo o processo de licenciamento dessas hidrelétricas usando dois diferentes dispositivos: a “suspensão de liminar e antecipação de tutela” e a “suspensão de segurança”. Consolidadas durante o governo militar, os dispositivos permitem que obras sejam feitas a qualquer custo, atropelando decisões de outros juízes caso haja “grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”.
Questionada diante de tribunais internacionais por organizações de direitos humanos, a suspensão tem sido a principal manobra legal para impedir a consulta. Apesar disso, algumas vozes argumentam que a suspensão não é desculpa para o fato de órgãos públicos não ouvirem as populações locais. Para a relatora de direitos humanos e povos indígenas da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Érika Yamada, se houvesse “boa fé” por parte dos órgãos licenciadores, como o Ibama, e das agências governamentais, que regulam as construções de usinas ou outros empreendimentos, seria possível consultar as comunidades tradicionais mesmo com a existência dessas suspensões.
A consulta que o governo queria
Na última década, enquanto o direito das populações tradicionais serem ouvidas era decidido na justiça, o governo federal da então presidenta Dilma Rousseff ensaiou editar uma série de regras sobre como as comunidades deveriam ser consultadas, a chamada “regulamentação”. No início de 2012, sob pressão de entidades de trabalhadores e de comunidades tradicionais, a Secretaria Geral da Presidência constituiu um grupo cujo objetivo era estabelecer essas regras após ouvir populações tradicionais em todo o Brasil.
Logo no início, um problema já era aparente: o governo brasileiro só queria aplicar a consulta para comunidades quilombolas e indígenas. Ribeirinhos, extrativistas e outras populações consideradas como comunidade tradicionais não apareciam nos planos do governo, apesar da Convenção 169 estabelecer que eles também devem ser ouvidos.
Em 2013, os indígenas se retiraram, em protesto, das discussões sobre as novas regras, alegando “artimanhas” da Secretaria Geral da Presidência, que comandava esse processo. A saída se deu quando, no meio dessa discussão e sem serem consultados, a Advocacia Geral da União soltou uma portaria recomendando que terras indígenas não fossem ampliadas. “O governo tem insistido em prosseguir com a regulamentação, apesar das sucessivas afrontas por ele praticadas contra o próprio direito de consulta,” dizia a carta pública divulgada pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). (Leia a íntegra da carta)
Em 2014, o governo apresentou um rascunho das regras que vinha elaborando. Porém, a proposta ignorava as particularidades das comunidades. A secretaria propunha que era o próprio governo decidiria como as populações seriam consultadas, o que viola a convenção.
O movimento foi tão desastrado que entidades defendem o abandono da tentativa de criar regras sobre a consulta. Advogado da ONG Conectas, que acompanha julgamentos sobre a consulta em tribunais internacionais, Caio Borges argumenta que a regulamentação não é obrigatória, e o governo já poderia aplicar a consulta de maneira adequada sem ela. “O que falta mesmo é um compromisso firme por parte dos governos e empresas em realizar a consulta seguindo os princípios básicos sobre ela”, diz o advogado.
Comunidades decidem como serão ouvidas
Diante dessa tentativa do governo federal de impor certo modo de fazer a consulta, algumas comunidades se adiantaram para estabelecer como, quando e onde devem ser consultadas. Antes mesmo de alguma obra ameaçar a sua existência, os indígenas Wajãpi, do Amapá, foram os primeiros no país a criar um documento com essas regras, chamado de protocolo de consulta. “Nós resolvemos fazer este documento porque muitas vezes vemos que o governo quer fazer coisas para os Wajãpi, mas não pergunta para nós o que é que estamos precisando e querendo,” dizem os indígenas do Amapá no começo do documento redigido em 2014. (Leia a íntegra do documento.)
Como não têm um cacique geral, os Wajãpis estabelecem que uma série de reuniões deveria acontecer com representantes das suas 48 aldeias. Eles pedem também que o seu tempo seja respeitado: as reuniões devem durar o quanto for necessário. “Esse trabalho de consultar, explicar e fazer acordos para decidir as coisas coletivamente é muito demorado, comparando com o jeito dos não-índios resolverem as coisas. Mas é o nosso jeito, e precisa ser respeitado. Se o governo não respeita essa nossa forma de organização, não pode dizer que consultou nosso povo,” dizem os indígenas no documento. (Leia a íntegra do documento.)
Depois dos Wajãpis, comunidades no Pará também seguiram um caminho parecido, como a comunidade Ribeirinha Montanha e Mangabal e os indígenas Munduruku, que podem ser removidos das suas terras caso a usina de São Luiz do Tapajós seja construída no Pará.
Além de pedir que as reuniões sejam feitas na sua língua e sem pessoas armadas, os Munduruku vão além: “Nosso saberes devem ser levados em consideração, no mesmo nível que o conhecimento dos pariwat (não índios). Porque nós é que sabemos dos rios, da floresta, dos peixes e da terra. Nós é que coordenaremos as reuniões, não o governo,” dizem os indígenas no protocolo. (Leia a íntegra do protocolo Munduruku)
Outras comunidades, como os quilombolas do Lago do Maicá no oeste do Pará, também trabalham para estabelecer suas próprias regras. Enquanto os quilombolas discutem, a empresa que pretende construir um porto de soja ao lado das comunidades mostra pressa em resolver o impasse. Para a procuradora Fabiana Schneider, que acompanha a elaboração do protocolo, a demora seria uma consequência da falta de diálogo anterior por parte da empresa e do governo. “Se eles realmente levassem a sério a Convenção 169, e se dispusessem a aplica-la como deve ser desde o início, não se perderia tanto tempo discutindo isso agora,” diz a procuradora.
O direito de barrar obras
O texto da convenção não deixa claro o que deve prevalecer em casos conflitantes: o projeto do estado ou a vontade das comunidades. A interpretação do governo durante a tentativa de regulamentação era a de que, necessariamente, prevaleceria a vontade do governo. “A consulta não é deliberativa. Ela deve ser feita para atender demandas, diminuir impactos, mas não é impeditiva,” disse o então ministro Gilberto Carvalho à BBC, em 2013. A Repórter Brasil procurou a Secretaria Geral da Presidência do atual governo, mas não obteve resposta.
A fala do ex-ministro é referendada pela única manifestação do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto. O relatório mais recente sobre a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, do ministro Luís Roberto Barroso, limita o direito de consulta. “Nenhum indivíduo ou grupo social tem o direito subjetivo de determinar sozinho a decisão do Estado. Não é esse tipo de prerrogativa que a Constituição atribuiu aos índios.”
O entendimento internacional sobre o assunto, porém, é diferente daquele do governo e da justiça brasileira. A Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou que, em obras que colocam em risco a integridade de povos, deve haver consentimento das comunidades afetadas. Do contrário, o licenciamento da obra deve ser interrompido.
O governo brasileiro deveria seguir essas diretrizes, já que tem se comprometido internacionalmente com elas, defende Marina Pereira, integrante do Grupo de Trabalho de povos indígenas da Defensoria Pública da União. Ela exemplifica isso com a Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas. Assinada pelo Brasil em 2007, o documento vai além da Convenção 169, e estabelece que todas as ações do governo que afetam as comunidades necessitam do “consentimento livre, prévio e informado” dos povos tradicionais.
Enquanto se compromete a ter o consentimento de indígenas e povos tradicionais internacionalmente, o governo brasileiro segue incapaz de escutar as demandas dentro do seu próprio território.
Foto de capa: Valdemir Cunha/Greenpeace
Esta publicação foi realizada com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo com fundos do Ministério Federal para a Cooperação Econômica e de Desenvolvimento da Alemanha (BMZ).
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