Em pouco mais de cinco anos, o disque contra exploração sexual registrou 14 mil denúncias na Amazônia Legal. A região é também a principal rota do tráfico de mulheres no Brasil. Para especialistas, a impunidade, a migração e a falta de políticas públicas são algumas das causas do problema.
A exploração e o abuso sexual de mulheres é um problema recorrente nos Estados da Amazônia. Bispos que integram a prelazia do Xingu são perseguidos por denunciar a ocorrência de casos no Pará, políticos estão sendo investigados por abusar de meninas menores no Amazonas e, no Amapá, é a mineração que leva ao aliciamento de jovens mulheres como produto sexual para os trabalhadores das mineradoras.
Em todo o país, os Estados campeões em exploração sexual se encontram na Amazônia Legal. São eles: Maranhão, Pará e Amazonas. Em pouco mais de cinco anos (de maio de 2003 a outubro de 2008), o Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes -Disque 100- registrou 14 mil ligações na Amazônia Legal. Isso significa que, em média, 2.800 casos de exploração sexual foram denunciados por mês na região.
São diversas as áreas da Amazônia com mulheres vulneráveis ao tráfico e à exploração sexual. As formas com que esse tipo de violência acontece variam, assim como os perfis de suas vítimas. Porém, elas têm algo em comum: estão mais sujeitas à submissão decorrente da diferença de gênero, num lugar em que as políticas públicas não chegam até a população.
De acordo com dados da Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial (Pestraf) – realizada pelo Centro de Referência, Estudos e Ações Sobre Crianças e Adolescentes (Cecria), em 2002, essas mulheres geralmente vêm de classes populares, apresentam baixa escolaridade, habitam espaços urbanos periféricos, com carência de saneamento e outros bens sociais comunitários, moram com algum familiar, têm filhos e exercem atividades laborais de baixa exigência.
O estudo também aponta a predominância de mulheres negras, entre 15 e 27 anos, como principais vítimas do tráfico.
Poder & Sexo
O pesquisador da organização Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais da Amazônia (Só Direitos), Marcel Hazeu, estudou o tráfico de mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname ao elaborar a pesquisa Tráfico de Mulheres: um novo/velho drama amazônico. Por meio do estudo, ele conheceu 18 mulheres da Amazônia brasileira, vítimas da exploração sexual.
Nesse trabalho, Hazeu constatou que as histórias pessoal e familiar das mulheres amazônidas envolvidas com o comércio do sexo revelam violência doméstica, exploração, migração e trabalho precoce. "Temos um tipo de coronelismo na Amazônia, em que as pessoas que têm uma certa posição de poder se apropriam das pessoas que estão submetidas a elas. Prefeitos, delegados, grandes fazendeiros, comerciantes atuam especialmente no interior do Estado, vivendo como 50 anos atrás, em que podiam mandar nas pessoas do seu entorno", diz Hazeu.
"Temos, na região, o fato comuns de afilhadas, meninas de comunidades indígenas ou outras regiões pobres, serem recebidas nas casas de famílias com melhores condições, onde trabalham como empregada doméstica e são iniciadas sexualmente pelo chefe da família"
O estudo do Cecria também apontou, por meio dos inquéritos, processos, mídia e dos casos de tráfico levantados pelas regiões, 241 rotas de tráfico que passam por solo brasileiro. Destas, 110 pertencem ao tráfico interno (78 rotas interestaduais e 32 intermunicipais) e 131 ao tráfico internacional.
O tráfico internacional tem a Amazônia como um dos principais pontos de origem. As rotas saem de Estados como Pará, Amazonas e Amapá rumo a países latino-americanos- como o Suriname e a Bolívia- e até mesmo a Espanha e Alemanha.
O problema é tão crítico que o governo no Suriname se propôs a discutir a respeito com autoridades brasileiras, no encontro realizado no último mês de maio, em Belém (PA), chamado "Diálogos sobre a atenção à Migração Feminina entre Brasil e Suriname.
Do evento, saíram promessas de iniciativas conjuntas para combater e prevenir o tráfico na fronteira entre os dois países e dar assistências às vítimas desse problema, a partir de uma rede de identificação e articulação dos entes governamentais e não-governamentais responsáveis por esses serviços.
No aeroporto de Belém, foi instalado um posto de informação sobre direitos do migrante. "Agora os brasileiros que saem do país são abordados não só pelos traficantes, mas também por esse serviço de orientação", diz o pesquisador da Só Direitos.
A região Norte do país também é tida como principal rota do tráfico de mulheres e adolescentes no âmbito nacional. O problema é relacionado à existência de garimpos, prostíbulos, área portuária, cárcere privado e fazendas. O Cecria aponta que o tráfico de mulheres da Amazônia dentro do Brasil é feito, principalmente, a partir de Acre, Amapá, Amazonas, Tocantins, Rondônia e Roraima com destino a diversas regiões do país.
Só no Amazonas, estão 76 das rotas do tráfico sexual, tanto internacional, quanto interno. Para Flávia Cunha, antropóloga e consultora da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM), as causas são grande distancia geográfica do lugar e condições de vida precárias. "Temos, na região, o fato comuns de afilhadas, meninas de comunidades indígenas ou outras regiões pobres, serem recebidas nas casas de famílias com melhores condições, onde trabalham como empregada doméstica e são iniciadas sexualmente pelo chefe da família", explicou.
Hazeu, da ONG Só Direitos, explica também que, pela lógica da ocupação da Amazônia, sempre houve a migração de pessoas na região, em busca de melhorias de vida, e esse processo traz resquícios de violência, como trabalho escravo e outros tipos de violação dos direitos dos migrantes. "Garimpos e outros grandes projetos sempre têm o estímulo direto ou indireto à migração e, ao mesmo tempo, a ocupação do crime organizado para se aproveitar dos migrantes que chegam e saem sem proteção", explica.
Nesse contexto, ele também diz que as mulheres da Amazônia, muitas vezes vítimas de abuso sexual desde a infância, por não terem autoestima ou confiança nos seus familiares, aceitam faci
lmente as propostas para abandonar seu local de origem atrás de oportunidades.
"As mulheres acompanham o fluxo de desenvolvimento da Amazônia e migram junto com a mão-de-obra masculina para construções e fazendas, dando apoio a esses homens, como cozinheiras ou prostitutas. Mas, após essa atração de migrantes, há também a expulsão deles, quando já não são mais úteis a esses projetos econômicos", acrescenta.
Hazeu informa que a maioria das mulheres que migra para se prostituir dificilmente consegue se restabelecer depois. Algumas voltam para Belém viciadas em drogas e com traumas, enquanto outras retornam a sua terra sem o dinheiro que esperavam conseguir ou permanecem no país para onde migraram, casadas com estrangeiros que continuarão a explorá-las.
Busca por soluções
Para combater a exploração sexual, a ONG Só Direitos forma lideranças nas comunidades paraenses e dá informação para quem vai viajar sobre o problema do tráfico e os locais onde os migrantes podem buscar ajuda caso precisem. "Também dialogamos com o governo para que sejam implantadas políticas não só assistencialistas. Deveria ser dado o Bolsa Família especialmente às famílias de mães solteiras, pois são elas que têm maior vulnerabilidade ao tráfico", disse.
Flávia Cunha, que é consultora da SPM há um ano e estuda a implementação do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contras as Mulheres, diz que, desde 2007, quando foi criado o Pacto, o Amazonas e o Pará fazem parte do plano. Para dar assistência às vítimas da exploração sexual, a SPM vem criando Centros de Referência (CR). Na Amazônia, foi instalado o CR Maria do Pará, em Belém, e estão se implantando outros centros em cinco municípios do interior do estado.
Segundo Flávia, esses centros atendem mulheres que estão presas ou são vitimas de tráfico, exploração sexual e violência doméstica ou familiar. Alguns projetos apoiados pela secretaria focam campanhas informativas e preventivas, enquanto outros dão assistência social, jurídica e psicossocial às mulheres, incentivando os organismos da sociedade civil que já realizam esse trabalho.
"No interior do Pará, há rapto de mulheres da maneira mais abrupta para aliciamento ao tráfico. Os olheiros forçam a menina a se prostituir. Os CRs precisam estar capacitados para atender mulheres que viveram experiências traumáticas como essas", afirmou.
Porém, a unidade de Belém só atende à capital e à região metropolitana enquanto ainda estão sendo instalados outros centros em outros sete municípios do Pará, como Abaetetuba, Santarém, Capanema, e Xinguara.
No Amazonas, o CR de Manaus atende à cidade e à região metropolitana, e existe o projeto para instalação de um centro em São Gabriel da Cachoeira, onde 95% da população são indígenas, que têm dificuldade de acesso aos serviços sociais e são cada vez mais vulneráveis à exploração sexual.
Os Centros de Referência Especial de Assistência Social (Creas), vinculados ao Ministério do Desenvolvimento Social, trabalham de forma conjunta com a SPM no atendimento à mulher vítima de exploração e violência sexual. Porém, como informou a Rádio Nacional da Amazônia, esses locais, que prestam apoio às crianças e adolescentes, estão em apenas 194 dos 807 municípios da Amazônia – 25% do total.
Segundo a Rádio, na Ilha do Marajó, funciona o único Crea com estrutura para atuação regional na Amazônia Legal. Os serviços de assistência disponíveis estão longe de dar conta do grande número de casos de exploração sexual existentes na região.
Contra a impunidade
Ricardo Lins, representante do Ministério da Justiça (MJ), diz que a Polícia Federal (PF), que é responsável pela repressão ao trafico internacional de pessoas, está capacitando seus agentes para aumentar a eficácia das suas ações de combate ao comércio sexual. "Temos uma articulação com o MP, Estadual e a Federal para trabalhar de forma mais integrada para reprimir as rotas", destacou.
Ele também diz que foi implantado um Núcleo de enfrentamento ao tráfico de pessoas em Belém, e o MJ já está recebendo proposta de outros Estados para a instalação de novos núcleos. Mas, esses centros só podem ser criados nos Estados que aderem ao Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). "Ainda este ano será inaugurada um núcleo no Acre, e o Amazonas está no processo de adesão para se instalar uma unidade lá também", informou Lins.
A pasta articula ações de prevenção ao tráfico nos estados que aderem ao Pronasci, com capacitação e formação de agentes públicos e da sociedade civil, campanhas de prevenção ao problema e incentivo à produção de pesquisas sobre o tema na região Norte.
Lins concorda que um único centro de combate ao tráfico sexual para toda a Amazônia é insuficiente, mas diz que o governo federal, numa articulação entre vários ministérios, pretende estender esse programa a todos os estados brasileiros.
Segundo o representante do MJ, os casos de tráfico internacional de mulheres, denunciados por organizações da região Norte ao Ministério, são monitorados e encaminhados por meio de uma articulação da pasta com a Polícia Federal (PF) local e o Ministério Público Federal (MPF). "Mas, é difícil identificar quem são os criminosos", afirma.
Hazeu, da ONG Só Direito, explica que muitas mulheres acreditam serem culpadas por terem sido vítimas do tráfico sexual e, por isso, não denunciam seus agressores. "A impunidade é causada, em grande parte, pela dificuldade de se chegar até os criminosos. Esse é um dos motivos pelos quais a informação é tão importante", diz.
Estudo revela tráfico de amazônidas para trabalho escravo e prostituição no exterior
O pesquisador da ONG Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais da Amazônia (Só Direitos), Marcel Hazeu, estudou o tráfico de mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname e conheceu 18 mulheres da Amazônia, vítimas da exploração sexual.
Com esse trabalho, ele constatou que as trajetórias pessoal e familiar das mulheres amazônidas envolvidas com o comércio do sexo, revelam violência doméstica, exploração, migração e trabalho precoce. Conheça, a seguir, uma dessas histórias.
L.U.* tem cinco filhos com quatro homens diferentes. Nenhum dos quais contribui para o sustento dos mesmos. Relata problemas com a mãe, que a espancava sistematicamente, e abu
so sexual por parte do padrasto, dos seis aos 14 anos. "Minha mãe nunca teve amor pelos filhos. Fui dada para os outros e me batiam muito. Meu padrasto se servia de mim desde os meus seis anos", conta.
Aos 14 anos, ela fugiu de casa. Depois se juntou com o primeiro marido (aos 14 anos). "Ele bebia muito, era muito violento e me batia demais", acrescenta. Três dos cinco filhos moram com a mãe dela. Os outros dois (com oito e 10 anos de idade) moram com ela e ficam sozinhos quando ela sai para fazer programas.
L.A.* envolveu-se com um francês com quem morou na Suíça. Relata que ficava trancada em casa e que era obrigada a trabalhar como doméstica na casa dele e também na de seu filho. Pediu para voltar para o Brasil e foi denunciada por roubo para a Polícia na Suíça, sendo deportada.
"Eu sinto raiva, nojo. Me sinto humilhada por vender meu corpo para ganhar 20, 30 reais. Nós somos puta e vagabunda. Sempre existe uma discriminalidade contra a mulher. A mulher tem que estar na beira do fogão para os homens. Eu me sinto revoltada porque eu não posso fazer o que eles (homens) podem. Só porque são homens? São machistas, racistas. Isso é discriminação", desabafa.
D. I. e G.A.* são outras duas das milhares de mulheres da Amazônia que foram – ou estão sendo – exploradas sexualmente. "Foi um inferno. Fazia programa até doente para pagar habitação, comida e limpeza", conta D.I. "Eu sabia que ia para um clube trabalhar como prostituta, mas eu não sabia o que ia pagar lá dentro, que ia entregar meu passaporte, ficar presa", explica G.A.
*Os casos das mulheres, cujos nomes não foram revelados, estão publicados na pesquisa Tráfico de Mulheres: um novo/velho drama amazônico.
Fabíola Munhoz
06/08/2009
Clique aqui para ter acesso à íntegra do estudo Tráfico de Mulheres: um novo/velho drama amazônico.