As quadrilhas criminosas não caíram de pára-quedas nos morros do Rio de Janeiro, sua implantação foi lenta, gradual e segura, às escâncaras. Aqueles espaços foram escolhidos pelo tráfico de maconha e depois de cocaína em razão da alta densidade demográfica, falta de acesso fácil da polícia, mão-de-obra barata e abandono total daquelas populações pelos governos.
Esse lento processo de implantação prosseguiu com a corrupção barata da estrutura policial. Candidatos políticos se beneficiaram das caixinhas dos bandos traficantes: através do controle da máquina governamental, seus apaniguados nomeados para cargos públicos consolidavam a impunidade dos bandos criminosos. A corrupção mais dispendiosa foi estendida ao Judiciário para a concessão de habeas-corpus e compra de sentenças. Como cereja no bolo, o sistema financeiro sempre acolheu gostosamente a lavagem do dinheiro do tráfico durante décadas.
Esse ''Estado associado'' (a noção de ''Estado paralelo'' não é apropriada porque não há nenhum paralelismo mas inserção plena dentro do Estado realmente existente) foi acompanhado de procedimentos filantrópicos, via migalhas de benemerência dos pés de chinelo-chefetes do tráfico nos morros que passaram a controlar o quotidiano dos moradores das favelas. Outras investidas foram feitas com a principal coluna vertebral do crime organizado em todo o país, o jogo do bicho, ao assumirem o controle das escolas de samba, sediadas nas favelas, dos clubes de futebol, favorecendo uma validação simbólica, e agora os ''inocentes'' bingos. Base do tráfico é a impunidade completa das classes médias e dominantes brancas, protegidas por recursos de poder, clientes regulares do crime.
Que fazer diante dessa situação? Não há soluções mirabolantes. O requisito maior é consistência e persistência, que têm faltado ao governo federal e a todos governos estaduais. Cada administração quer inventar a roda e partir do ponto zero. E desse modo os interesses dos traficantes sempre prevalecem e se espandem. As políciais estaduais no Rio e em todos os estados estão carcomidas pela corrupção e não conseguirão desenvolver atuações exemplares por maior que seja o jogo de cena: sem a articulação dos setores sãos nessas polícias (desprestigiados por serem honestos, levarem bola, não torturarem) e as forças federais, o fracasso continuará garantido.
Pode o governo do Rio mandar 1.200 homens e daqui a algumas semanas o tráfico continuará incólume, pois requer-se uma presença permanente da polícia nas comunidades e políticas sociais de emergência para as populações, infiltração nas quadrilhas, inteligência por forças de trabalho especializadas (o que funcionou no Acre e no Espírito Santo). E não adianta bradar pelas Forças Armadas: o fracasso da Operação Rio em 1994 não deve ser esquecido.
É urgente quebrar a rede de corrupção, revelada pela CPI do crime organizado, de policiais, membros do judiciário denunciados, funcionários estatais que se aliam a testas de ferro do tráfico, parlamentares eleitos em todos os níveis. Estancar a corrupção que garante o escoamento da droga e de armamento nas fronteiras, aeroportos, portos, na rede viária através de uma coordenação efetiva entre os governo federal e estaduais e não em operações para inglês ver. E sancionar pesadamente os bancos e seus responsáveis que continuam a lavar dinheiro.
Ninguém agüenta mais diagnóstico, nem essas propostas são muito animadoras para o aqui e agora (não há outras). Mas cada dia que as autoridades se rolam na retórica jogo de cena e não se dão conta que há uma situação de emergência, mais grave ficará a situação. E traficantes continuarão rindo e consumidores cheirando sua cocaína de Copacabana ao Leblon, felizes.
Pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Foi secretário de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso. Esse artigo foi originalmente publicado no Jornal do Brasil.