O que leva um milionário empresário paulista da indústria farmacêutica a desembolsar R$ 1,5 milhão na última campanha eleitoral e garantir uma vaga de suplente no Senado pelo Tocantins? Não precisar mais de “intermediários”, explica Ogari Pacheco, fundador de um dos maiores laboratórios brasileiros, o Cristália.
Aos 80 anos, o médico estreia na política sem dosar as palavras. Ele deixa claro que vai influenciar o Congresso nas discussões que interessam às corporações farmacêuticas. “A gente sempre critica que tem que se valer de um intermediário. Mas nada melhor do que alguém da área”, diz o empresário à Repórter Brasil.
Um acordo fechado com o cabeça da chapa, o senador Eduardo Gomes (MDB-TO), garante a Pacheco um subgabinete informal, que ficará responsável pelos projetos da área da saúde durante o mandato. “Ele [Gomes] é que vai tomar posse, mas eu vou começar a trabalhar já”, diz. O senador confirma “participação irrestrita” do suplente no mandato.
Dono de fortuna pessoal de R$ 407 milhões, Pacheco não está sozinho. Executivos ligados a 462 laboratórios de medicamentos, distribuidoras e farmácias doaram na última eleição R$ 13,7 milhões para 356 candidatos, segundo levantamento da Repórter Brasil. Entre eles, estão o governador eleito João Doria (PSDB-SP), o deputado federal Arlindo Chinaglia (PT-SP) e os ex-deputados Rogério Rosso (PSD-DF) e Marcus Pestana (PSDB-MG), que não se elegeram.
A pesquisa listou os sócios e administradores das empresas ativas inscritas na Receita Federal que fabricam, distribuem ou vendem medicamentos, produtos farmacêuticos e farmoquímicos. Os nomes foram cruzados com os doadores das eleições de 2018, segundo o Tribunal Superior Eleitoral.
A doação de pessoas físicas é permitida por lei, mas pode revelar influências de um setor que atua no Congresso em prol de seus interesses. “O lobby funciona com apoio em campanha e contratos de consultoria, como é em todo lugar do mundo”, diz Reinaldo Guimarães, pesquisador da UFRJ e ex-secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde (2007 a 2010). “O mercado farmacêutico no mundo está acima de US$ 1 trilhão. A capacidade que um mercado dessa magnitude tem de influenciar é enorme”.
Em 2010 e 2014, quando o financiamento privado de campanhas ainda era permitido, o setor farmacêutico doou R$ 26 milhões e R$ 57 milhões, respectivamente, para 1.404 candidatos ao todo, segundo as doações declaradas ao TSE. Porém, suspeitas de caixa 2 e pagamento de propina colocaram a empresa líder em doações, a Hypera Pharma (ex-Hypermarcas), sob a mira da Lava-Jato.
“A força do dinheiro move o lobby. E os elementos vinculados à saúde pública ficam muito diluídos nessa cadeia de pressões”, diz Reinaldo Guimarães
Um ex-diretor da Hypera admitiu em delação premiada ter repassado R$ 30 milhões, entre 2011 e 2015, a políticos da alta cúpula do MDB, como o ex-deputado federal Eduardo Cunha. Em troca, os parlamentares aprovariam medidas favoráveis à empresa, como a liberação para venda de medicamentos sem prescrição em supermercados – o que de fato foi aprovado pela Câmara em 2012, mas vetado pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Longe da crise, perto dos políticos
Mesmo diante da crise econômica brasileira, o mercado de medicamentos se destacou nos últimos anos por continuar em forte expansão. Em 2016, quando o PIB nacional recuou 3,6%, o setor avançou 18%, com R$ 63 bilhões em vendas. Hoje o Brasil é o sétimo maior mercado do mundo e caminha para ocupar a quinta posição em dois anos.
Os gastos e incentivos do poder público têm participação importante nesse mercado, o que explica também o interesse do setor farmacêutico no jogo político. Por um lado, o SUS responde por cerca de R$ 19 bilhões das compras de remédios no Brasil. Por outro, o setor farmacêutico recebe generosas isenções fiscais anualmente, estimadas hoje em R$ 9,5 bilhões, segundo a Receita Federal.
Sediado na pequena Itapira (SP), o Cristália triplicou o faturamento na última década, atingindo R$ 2 bilhões em 2018. Seu maior cliente é o SUS, que responde por metade do faturamento obtido com hospitais.
Além de investir pesado na ampliação de sua capacidade industrial, contando também com apoio do poder público, o Cristália fez doações milionárias nas últimas três eleições. Em 2014, foram investidos R$ 4,3 milhões em candidatos de diferentes espectros políticos, como a então presidente Dilma Rousseff, o diretório nacional do PSDB e legendas como MDB, DEM, PSC e PCdoB. O mesmo aconteceu em 2010, quando as doações alcançaram R$ 900 mil.
“O laboratório nunca individualmente teve envolvimento político”, afirma Pacheco. Ele diz que as doações foram estimuladas pelo FarmaBrasil, grupo que representa as farmacêuticas nacionais e acompanha a Frente Parlamentar da Química, criada em 2012. “Eles solicitavam: ‘A frente é composta por A, B C, D parlamentares. Vocês poderiam contribuir da seguinte maneira: fulano doa para A, outro pra B, C…’. Foi assim”, relata. Leia aqui entrevista com Ogari Pacheco.
Com influência no meio político, o laboratório recebeu em 2013 a presidente Dilma Rousseff e o então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), durante a inauguração de uma fábrica no interior de São Paulo. A planta custou R$ 208 milhões – dos quais R$ 58 milhões dos cofres federais, segundo informações do Palácio do Planalto.
O governador tucano voltou à região em 2017 para inaugurar o novo centro de distribuição do grupo, um megainvestimento de R$ 400 milhões erguido sobre um terreno cedido pela prefeitura local. Além da fábrica, a região também ganhou duas marginais e um anel viário sobre a rodovia SP-147 – construídos pelo governo estadual em frente ao novo prédio do Cristália, ao custo de R$ 26 milhões.
Foi a expansão do Cristália para o Tocantins que levou o empresário paulista a conhecer Eduardo Gomes e a entrar para a política pelo estado. “Através das lideranças políticas locais, ele [Gomes] procurou oferecer algumas vantagens, como incentivo fiscal e doação de terreno. Isso não me seduziu”, afirma. O político então o convidou para fazer parte da chapa ao Senado. “Aí a coisa mudou de figura”.
Agora no Congresso, um de seus objetivos será acelerar o processo de avaliação e aprovação das patentes de medicamentos, que hoje leva em média 13 anos para uma resposta final do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi). O tema é de especial atenção do Cristália, recordista nacional em número de patentes, com 106 no total, sendo 89 no exterior.
Sua outra frente de atuação serão os debates envolvendo o descarte de medicamentos, tema de ao menos 15 projetos de lei no Congresso. Atualmente não há regulamentação sobre a questão, e os remédios acabam dispensados no lixo comum, provocando danos à saúde e ao meio ambiente.
Pacheco é contra as fabricantes assumirem sozinhas os custos pelo descarte e defende que a responsabilidade seja compartilhada com farmácias, unidades de saúde e distribuidoras.
O governador e as farmacêuticas
Os incentivos fiscais às farmacêuticas e o descarte de medicamentos foram tema de investigação do Ministério Público de São Paulo em 2017, após reportagem da rádio CBN revelar que a prefeitura paulistana, à época comandada por João Doria (PSDB-SP), havia recebido medicamentos doados perto do prazo de validade e sem o recolhimento de impostos.
Doria, atual governador paulista, foi o décimo candidato mais apoiado pelo setor farmacêutico em 2018. Ele recebeu R$ 270 mil de quatro executivos, dois deles ligados a farmácias e outros dois donos de distribuidoras de medicamentos – que prestam serviços para laboratórios e drogarias.
Quando esteve à frente da prefeitura, Doria idealizou um programa que, além das doações, previa a privatização da assistência farmacêutica no município, o que beneficiaria diretamente as farmácias. O Remédio Rápido, apresentado em coletiva de imprensa em fevereiro de 2017, pretendia transferir a distribuição de medicamentos da rede pública – feita por meio de Unidades Básicas de Saúde (UBS) e AMAs (Assistência Médica Ambulatorial) – para as farmácias particulares. A ideia, no entanto, prejudicaria a distribuição de medicamentos em áreas periféricas e mais pobres da cidade, onde é menor a presença das grandes redes farmacêuticas. A proposta não saiu do papel.
Doria anunciou, na mesma coletiva de imprensa, que o município receberia R$ 120 milhões em medicamentos doados de 12 laboratórios farmacêuticos. O tucano convenceu o então governador Geraldo Alckmin a isentar o ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre as doações, em favor dos laboratórios parceiros e das transportadoras.
Se o município tivesse recebido os R$ 120 milhões anunciados, teria deixado de recolher quase R$ 66 milhões em impostos, mas as doações não chegaram a 10% do prometido. Ao final, 10 laboratórios doaram R$ 8,8 milhões em produtos, com renúncia fiscal de R$ 1,2 milhão. A investigação do Ministério Público de São Paulo foi arquivada por não identificar danos aos cofres municipais.
O governador informou, por meio da sua assessoria de imprensa, que as doações de medicamentos foram parte de uma “política inovadora” de sua gestão. Com relação às doações eleitorais, a assessoria disse que “foram todas feitas estritamente dentro do que determina a Lei Eleitoral” e que “não representam sequer 1% do total arrecadado pela campanha”. A rigor, o montante representa 1,44%.
Indústria rica, mas dependente do exterior
Dos três candidatos mais ricos do ano passado, dois são empresários do setor farmacêutico. Além de Ogari, na terceira posição, Fernando de Castro Marques (SD-DF), principal acionista do laboratório União Química, gigante na produção de medicamentos de uso humano e animal, declarou patrimônio de R$ 668 milhões ao TSE e liderou o ranking.
Derrotado na disputa ao Senado, o empresário doou R$ 7,1 milhões para 14 políticos em 2018 – incluindo R$ 2,7 milhões para a própria campanha – e foi o executivo do setor campeão em doações. Marques afirma não esperar nenhuma atenção particular dos parlamentares que apoiou. “São pessoas que admiro e que vão trabalhar em prol do desenvolvimento do Distrito Federal. Meu interesse é só esse, não tem outro interesse não”, disse em entrevista à Repórter Brasil.
O senador Eduardo Gomes disse que convidou Pacheco para a chapa como representante do Democratas e por suas atividades empresariais no Tocantins. “A sua participação no mandato é irrestrita, pois ele e o primeiro suplente são eventuais substitutos na vacância do titular, como prevê a legislação eleitoral”, afirmou em nota, que destaca que as doações foram feitas dentro dos critérios estabelecidos pela lei.
O deputado Arlindo Chinaglia disse que “todas as doações de campanhas, não só estas, jamais pautaram minha atuação”. Já Marcus Pestana, que não foi reeleito, afirmou que as doações recebidas condizem com a legislação brasileira. “Não há absolutamente nada a ver entre minha atuação parlamentar no tema e as doações”. Rogério Rosso não respondeu.
“A indústria pressiona deputados, comissões [no Congresso] e também as associações médicas”, afirma o pesquisador da Fiocruz Jorge Bermudez. “Muitas vezes o interesse da indústria não tem nada a ver com a saúde. A indústria quer o produto mais lucrativo para ela”, diz.
Apesar do tamanho e do apoio público, a indústria farmacêutica causa prejuízos à balança comercial brasileira ano após ano. Em 2017, foram pelo menos US$ 5,3 bilhões de déficit, segundo dados do então Ministério da Indústria e do Comércio Exterior.
O ponto fraco é a produção quase inexistente de matéria-prima, os chamados insumos farmacêuticos ativos, ingredientes usados na fabricação dos medicamentos. O déficit leva o país a importar 90% de toda a matéria-prima que necessita. A exceção é o Cristália, que importa 47% e produz a maior parte em casa.
Em seu “subgabinete” no Senado, Pacheco promete reverter esse cenário. Ele diz que já está elaborando um projeto de lei para estimular a produção nacional de insumos. “E sem pedir um centavo pro erário público”, garante.
(Ilustração: Angelo Abu)