O contingenciamento de R$ 2 bilhões do orçamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e de R$ 311,4 milhões do Ministério do Meio Ambiente (MMA), as duas pastas mais importantes do processo de reordenamento fundiário do país, pode afetar não apenas o cumprimento de suas metas como a credibilidade do Governo.
Esta avaliação, feita pelos movimentos sociais ligados ao campo, tem como pano de fundo o alardeamento, por parte do governo, de uma serie de ações que responderiam à recente explosão da violência na Amazônia. O raciocínio, explica o relator nacional para o direito humano ao meio ambiente da ONU, Jean-Pierre Leroy, segue a lógica da institucionalização da impunidade. Ou seja, a partir do momento que o governo federal anuncia, com grande estardalhaço, medidas de repressão à ação de fazendeiros e madeireiros ligados a conflitos agrários, ameaças a lideranças sociais, assassinatos e grilagens de terras públicas, e retira das pastas competentes as verbas para o seu cumprimento, cria-se um vácuo institucional que pode não apenas não minimizar, como insuflar ações criminosas.
“Para resolver o problema fundiário do país, principalmente na Amazônia, ou se tem recursos, ou é conversa. Mais uma vez, o discurso do governo parece ser fogo de palha. Quando isso se repete duas, três vezes, madeireiros e grileiros acham graça, e qualquer tentativa de moralização leva à explosão da violência”, afirma Leroy.
Metas a perder de vista
Menos de uma semana após o assassinato da missionária Dorothy Stang no Pará, o governo federal anunciou a criação de um mosaico de unidades de conservação de 5 milhões de hectares na região conhecida como Terra do Meio, uma das mais violentas do estado. Também prometeu detalhar o projeto de desenvolvimento sustentável da zona de influência da rodovia Santarém-Cuiabá (BR 163), interditando, por seis meses, 70% das terras a oeste da estrada (cerca de 8 milhões de hectares), que devem ser transformadas em unidades de exploração sustentável (a região vem sendo foco de grilagem de terras após o anuncio do asfaltamento da rodovia).
Segundo vários analistas, no entanto, estas medidas não passariam de factóides para acalmar a opinião pública, uma vez que o governo não disponibiliza nem recursos nem mão de obra para seu cumprimento. Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo no dia 23 de fevereiro, antes mesmo da divulgação dos cortes orçamentários, o economista Plínio de Arruda Sampaio criticou duramente a adoção do que chamou de política “kit massacre” do governo.
“O ‘kit massacre’ inclui: declarações indignadas do Presidente e seus ministros; presença dos ministros da área no local do incidente (se possível acompanhando o enterro); promessa de punição “implacável” aos criminosos; prisão de três ou quatro suspeitos (logo soltos por falta de provas); e anúncio de “factóides” destinados a dar à opinião pública a impressão de que o governo está agindo energicamente. (…) Por que se trata de um factóide? Porque não há qualquer condição de impedir a invasão dessas reservas sem que, ao mesmo tempo, se desenvolva um efetivo processo de reforma agrária”, escreveu Sampaio.
Trabalho sobra, dinheiro falta
Ainda na esteira da morte da Irmã Dorothy, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, afirmou que o governo não iria agir na base de “pacotes” ou medidas emergenciais, uma vez que já estaria “trabalhando de maneira responsável, planejada e consistente para resolver as causas do problema fundiário e ambiental no Pará e na Amazônia”.
Dentre estas medidas, provavelmente estaria a Portaria 10 do MDA, que visa o recadastramento dos títulos de propriedade de posseiros com mais 400 hectares na Amazônia Legal, com o objetivo de normatizar a ocupação de áreas públicas federais numa abrangência de 352 municípios dos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. E são exatamente atividades como as ligadas ao ordenamento fundiário que serão atingidas pelo corte de verbas da pasta, explica o assessor especial do MDA, Fábio Pereira.
“Os gastos do Ministério podem ser divididos em dois tipos de despesas: as discricionárias, que cobrem da compra de terras para assentamentos a diárias dos técnicos do Incra, assessoria técnica para os assentados, cadastramento das terras, etc; e as despesas financeiras, alocadas para o crédito fundiário (antigo Banco da Terra) e verbas para apoio estrutural e habitacional a que toda família a de assentados tem direito. O orçamento de um não pode ser transferido para o outro. Então, o quadro pós-cortes orçamentários é de uma perda de 600 milhões para os gastos discricionários, e de 1,4 bilhão das despesas financeiras. Assim, podemos dizer que o conjunto das ações do MDA fica impactado”, explica o assessor.
O problema se agrava, segundo Pereira, porque mesmo que o governo tivesse mantido os 3,7 bilhões originalmente previstos para a pasta, ainda faltaria 1,7 bilhão para que as metas do Plano Nacional de Reforma Agrária fossem cumprido. “Ainda não decidimos o que fazer com a verba que sobrou. O impacto [do corte] é enorme, não teremos como universalizar a assistência técnica para os assentamentos, não teremos como completar o georreferenciamento de áreas públicas, e só poderemos assentar 40 mil família, metade da meta deste ano”.
Da Agência Carta Maior