Prescrição do crime de trabalho escravo é questionada no Maranhão

Após extinção de processo contra fazendeiro acusado de manter trabalhadores em regime de escravidão, promotoria entra com recurso alegando que o crime de trabalho escravo é imprescritível
Por Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia
 07/05/2005

O promotor de Justiça do Estado do Maranhão, Eduardo Borges, está recorrendo de decisão do juiz da Comarca de João Lisboa (MA), Flávio Roberto Ribeiro Soares, de extinguir a punibilidade contra o fazendeiro Miguel de Souza Rezende, flagrado diversas vezes ao sujeitar seus empregados à situação análoga a de escravo.

A pena máxima por trabalho escravo, previsto no artigo 149 do Código Penal, é de oito anos de prisão. A legislação estabelece que crimes com pena máxima até oito anos prescrevem em 12 anos, sendo que para os maiores de 70 anos esse prazo cai pela metade, portanto 06 anos. O tempo transcorrido entre a fiscalização que deu início ao processo até a denúncia na Justiça Estadual é de 07 anos e 05 meses.

Mesma sorte não teve o “gato” Barroso, que aliciava e controlava os trabalhadores a mando de Rezende. Ele, que já teve a prisão preventiva decretada e encontra-se foragido, terá que continuar respondendo pelo processo.

Borges afirma que o fato de haver milícia privada para garantir o cerceamento de liberdade dentro dos limites da fazenda vigilância fere a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito em seus mais elementares princípios e fundamentos, sendo portanto imprescritível. Cita o artigo 5o da Constituição Federal: “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.

O assistente da acusação Nonnato Masson reforça a argumentação. “Em alguns casos, para a garantia da prática da exploração de trabalhadores como escravos, os fazendeiros constituem verdadeiras milícias armadas com aparato paramilitar, constituído de gatos e jagunços, por vezes superior até mesmo à força pública com o intuito de ferir aos princípios fundamentais da Constituição e do estado Democrático de Direito”.

Para Antônio Filho, coordenador do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia (MA), entidade da sociedade civil que atua no combate ao trabalho escravo, “o decreto de prescrição do processo em relação ao Miguel Resende representa a confirmação da impunidade aos escravocratas deste pais”.

Competência para julgar
Duas esferas judiciais, a estadual e a federal, defendem que o julgamento dos crimes contra o trabalho escravo deva ficar sob sua responsabilidade. A indefinição é antiga e tem sido um dos principais fatores que atrapalham o combate à impunidade, a ponto de haver juristas que pedem uma definição urgente, para qualquer um dos lados. Se todos reivindicam a competência para o crime, na prática, ninguém a tem. O alongamento da discussão de competência interessa a muitas pessoas, pois através dela empurra-se os processos. Quando se chega ao fim, então, um juiz estadual ou federal está aplicando a prescrição. A lei número 109 do Código Penal especifica o prazo para a prescrição de um crime. O cálculo considera o tempo entre o momento da denúncia do Ministério Público e a sentença do juiz.

Reincidência
Entre setembro e outubro de 1996 foram fiscalizadas pelo grupo móvel do Ministério do Trabalho e Emprego duas fazendas de propriedade de. Miguel de Souza Rezende – Rezende, às margens do rio Pindaré, localizada no município de Senador La Rocque (MA) e a fazenda Zonga, localizada dentro da Reserva Biológica do Gurupi, em Bom Jardim. No total, os auditores do Trabalho libertaram 52 pessoas que se estavam em condição de escravidão.

Novamente, um ano depois, em outubro de 1997, as mesmas fazendas passaram por vistoria do grupo móvel, tendo sido libertados mais 32 trabalhadores.

De acordo com depoimentos dos trabalhadores nessa época, a presença física do fazendeiro era constante nas fazendas – o que demonstra que o réu sabia da situação em suas propriedades. Há relatos de vigilância armada, de trabalhadores fugitivos que eram perseguidos por cães e jagunços fortemente armados pela mata na tentativa de ganharem a liberdade, de ossadas humanas encontradas nas fazendas. Os auditores registraram os depoimentos de trabalhadores, que afirmaram terem sido vítimas de maus tratos, surras, castigos e estupros e viverem sob um medo constante.

Essas libertações originaram um denúncia do Ministério Público Federal, em fevereiro de 2003, contra o fazendeiro e o “gato” Barroso por trabalho escravo e outros crimes contra a organização do trabalho.

Porém, escravos ainda seriam libertados de fazendas de Rezende em 2001 e 2003. A ponto desse proprietário rural figurar três vezes na “lista suja” do trabalho escravo do governo federal.

Segundo as regras do governo, a inclusão do nome do infrator no cadastro acontece somente após o final do processo administrativo criado pelos autos da fiscalização que flagrar o crime. A exclusão, por sua vez, depende de monitoramento do infrator pelo período de dois anos. Se durante esse período não houver reincidência do crime e forem pagas todas as multas resultantes da ação de fiscalização e quitados os débitos trabalhistas e previdenciários, o nome será retirado.

Quem está na lista é proibido de obter empréstimos dos Fundos Constitucionais de Financiamento, operados por instituições públicas, como o Banco do Nordeste, o Banco da Amazônia e o Banco do Brasil, e de qualquer modalidade de crédito do Banco do Brasil. Além disso, estão tendo suas cadeias produtivas investigadas, bem como a validades dos seus títulos de propriedade.

Justiça cega
O Superior Tribunal de Justiça decidiu em 21 de outubro de 2004 anular todos os atos decisórios da Justiça Federal e declarou competente a Justiça Estadual do Maranhão para conduzir o processo. Os autos foram, então, encaminhados à comarca de João Lisboa (MA) tendo o Ministério Público Estadual ratificado os termos da denúncia em 04 de março de 2005. O Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia disponibilizou sua assessoria jurídica para funcionar como assistente do Ministério Público na acusação.

Miguel Rezende foi interrogado e reconheceu as condições desumanas em que viviam os trabalhadores alegando apenas que aquele “era o sistema utilizado no Maranhão”. Confirmou, ainda, que a Fazenda Zonga está localizada em área de reserva florestal. A informação foi repassada pelo Ministério Público ao Ibama.

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