No Brasil, 2,1 milhões de mulheres são espancadas por ano, o que corresponde a uma a cada 15 segundos. Estima-se que metade das mulheres assassinadas no país seja vítima de seus próprios companheiros ou ex-companheiros. Dados como esses são assustadores e ainda escondem a violência psicológica e outras formas de agressão tão dolorosas quanto a violência física. Por conta dessa realidade, que atinge todas as classes sociais, raças e etnias, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) encaminhou ao Congresso Nacional, no ano passado, um projeto de lei com mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar. Para ampliar as contribuições ao projeto, que aguarda parecer da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, o texto está sendo discutido em audiências públicas pelo país durante o mês de junho. Na última quinta-feira (16), ocorreu a versão paulista do debate na Assembléia Legislativa de São Paulo (Alesp).
Além da violência física, o projeto engloba a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral, e apresenta diretrizes de políticas públicas e ações integradas do poder público para diversas áreas. Entre elas, estão a assistência social às mulheres agredidas; a capacitação permanente do Ministério Público, das defensorias públicas e da polícia civil, e uma ação mais presente desses órgãos; o encaminhamento dos envolvidos a uma equipe multidisciplinar; e a ampliação do rol de medidas cautelares em relação ao acusado, como a suspensão do porte de armas, e de proteção à vítima. O projeto é bastante abrangente, com medidas preventivas, assistenciais, punitivas, educativas e de proteção à mulher e aos filhos.
O ponto mais polêmico da proposta, em geral bastante elogiada pelos movimentos feministas e de mulheres, diz respeito à punição a esse tipo de crime. O projeto prevê a criação de varas e juizados especializados para tratar da violência doméstica e familiar contra a mulher, mas enquanto isso não ocorre, nesses casos continuaria sendo aplicada a lei 9.099, com algumas alterações, como a proibição de penas pecuniárias. Essa é a principal crítica dos movimentos feministas e de mulheres ao projeto.
Atualmente, a maior parte desses casos, principalmente as ameaças e as lesões leves, são julgados nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Criados em 1995 pela Lei 9.099 com o objetivo de tornar mais rápidos os processos das infrações penais de menor potencial ofensivo, são considerados um grande avanço na Justiça brasileira. A pena máxima nesses juizados é de dois anos, e têm como princípio a conciliação, ou seja, oferecem oportunidades às partes, para resolverem o conflito antes da sentença final, em geral através de concessões mútuas. Por conta dessas características, esses juizados não são adequados para julgar o crime de violência contra a mulher. “O poder judiciário é o menos sensível a esse problema. Trata a violência no trânsito e a violência contra a mulher no mesmo patamar”, critica a deputada federal Iara Bernardi (PT-SP).
Em dez anos de existência da lei 9.099, 70% dos casos que passaram pelos juizados especiais estavam relacionados à violência doméstica contra a mulher e 90% deles foram arquivados ou resultaram somente no pagamento de cestas básicas ou multas. “Essa situação banaliza a prática desse crime no Brasil e gera uma percepção de impunidade na maioria das pessoas. Queremos uma lei que dê resposta à altura das denúncias das mulheres. Existem situações em que não é necessário que o agressor passe pela prisão, mas em outras precisa, como no das mortes anunciadas”, enfatiza Jacira Melo, coordenadora geral do Instituto Patrícia Galvão.
A história de Elaine Cristina Alves da Silva mostra como os Juizados Especiais Cíveis e Criminais não são apropriados para os casos de violência doméstica contra a mulher. Diversas vezes ameaçada de morte pelo marido, Elaine resolveu denunciá-lo. No final do processo, ele foi condenado a pagar apenas cinco cestas básicas pelo crime que cometera. Logo depois, desferiu 22 facadas em Elaine, que não conseguiram matá-la, mas deixaram seqüelas irreversíveis. “Só não morri pela graça de Deus. Tenho paralisia facial, mas a maior paralisia é na lei 9.099. Nem sei como me reergui. Temos que lutar contra esses homens que acham que podem fazer com a mulher o que bem entendem”, afirmou.
A relatora do projeto na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, a deputada federal Jandira Feghali (PC do B-RJ), irá propor que a violência doméstica seja descaracterizada como crime de menor potencial ofensivo e que seja feita uma emenda à lei 9.099 explicando que esse tipo de violência não se aplica a ela. Para Jandira, é importante que o agressor perca sua condição de réu primário e, mesmo em casos de penas alternativas – desde que não seja o pagamento de cestas básicas –, que ele compreenda o crime que cometeu.
“Por que as mulheres espancadas em casa vão para a lei 9.099? As marcas são tão grandes ou maiores do que as vividas na rua. O potencial ofensivo dessa violência é enorme no nosso corpo e na nossa alma”, afirma Olívia Rangel, representante da União Brasileira de Mulheres.
Histórico
A idéia do projeto surgiu em 2004, quando um consórcio de entidades ligadas ao movimento feminista – entre elas organizações como o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) e o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem) – entregaram à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) um anteprojeto de lei para prevenir, punir e erradicar a violência doméstica contra a mulher.
A Secretaria, por sua vez, formou um grupo de trabalho interministerial (GTI) para elaborar uma proposta de medida legislativa, tendo como subsídios o anteprojeto de lei e o capítulo especial sobre o assunto no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, resultado da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada em 2004. O processo da Conferência contou no total com a participação de mais de 120 mil mulheres espalhadas pelo país, somando-se à versão nacional as plenárias municipais, regionais e estaduais. O GTI foi formado por representante dos ministérios da Casa Civil, Saúde e Justiça, das secretarias Especial dos Direitos Humanos (SEDH), Especial para Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Nacional de Segurança Pública, do Comitê do Ano da Mulher da Câmara e do Senado, e do consórcio de ONGs responsável pela proposta inicial, sob a coordenação da SPM.
O resultado final foi o projeto de lei 4.559, apresentado ao Congresso Nacional no dia 25 de novembro de 2004, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, que atualmente aguarda parecer da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. A idéia é que até dia 25 de novembro desse ano a lei já tenha sido aprovada.
Representantes do movimento feminista e de mulheres paulista realizaram reuniões antes da audiência pública para analisar o projeto de lei e o relatório preliminar da Comissão. O texto foi elogiado e as propostas da relatora Jandira Feghali, integralmente apoiadas. “Está em total sintonia com as nossas demandas, para que o crime de violência contra a mulher deixe de ser o crime mais cometido no Brasil”, avalia Jacira Melo, coordenadora geral do Instituto Patrícia Galvão.
Da Agência Carta Maior