Entidades de direitos humanos e associações de moradores de rua realizaram nesta terça-feira (19) na praça da Sé, no centro de São Paulo, um ato público contra a violência e a impunidade. O objetivo da manifestação foi cobrar da Justiça uma investigação profunda e séria dos casos de chacinas ocorridos recentemente na cidade, entre elas as mortes de sete moradores de rua, assassinados há onze meses – ainda não esclarecidos –, e de Tereza Rodrigues Francisco e seus filhos Eduardo Rodrigues Francisco, de 24 anos, e Fábio Rodrigues Francisco, de 15 anos, no núcleo habitacional do Jardim Portinari em Diadema, no último dia 4 de julho. O ato reuniu centenas de pessoas e foi promovido pela Arquidiocese de São Paulo, Comissão Justiça e Paz de São Paulo, Centro Santo Dias de Direitos Humanos, Vicariato do Povo de Rua, Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), Movimento Nacional de Direitos Humanos e moradores de bairros atingidos pela violência policial em São Paulo.
“Mais uma vez, nós, da população de rua, estamos decepcionados com a Justiça do Estado de São Paulo e do Brasil. Há onze meses, sete companheiros foram massacrados no centro e não houve Justiça. A população que é jogada de suas casas e que passa pela exclusão da moradia, se encontra sozinha. Estamos aqui pra mostrar que somos organizados e que cobramos Justiça para nossos irmãos e irmãs massacrados”, disse Anderson Lopes Miranda, representante dos moradores de rua.
O ato contou com a presença Flordenice Machado dos Santos, irmã de Cosme Rodrigues Machado, um dos moradores de rua assassinados, e do arcebispo de São Paulo, Cardeal Dom Cláudio Hummes, que cobrou uma mobilização da população contra a impunidade diante da violência policial.
“Não é possível ficar em casa escutando notícias e esperar que as coisas mudem. É preciso ir às praças, fazer manifestações. A impunidade alimenta a violência. Quando não se pune, o crime parece que compensa”, disse Dom Cláudio. “Onze meses depois, não sabemos em que pé estão as investigações. O pior é quando a violência vem de quem deveria dar segurança para o nosso povo. Há bons policiais, mas os maus têm que ser condenados. Precisamos de uma atitude mais firme das autoridades para levar à punição de quem exerce violência até hoje. Gostaríamos de ver uma aceleração dos processos. O povo diz que se sente pouco atendido pela Justiça. Quanto mais demorarem as respostas, mais o povo se sente desesperançado”, acredita.
O grupo Atitude Pela Paz, criado por moradores da zona sul de São Paulo e que levou dezenas de crianças e adolescentes à manifestação, afirmou que a população da periferia já está acostumada com as chacinas contra a população pobre. “São Paulo não pode ser uma cidade onde há pessoas que não podem morrer e outras que podem morrer – que são os pobres – porque “estavam aprontando alguma coisa errada”. Isso é errado. Queremos justiça pra todos, para ricos e pobres. Vamos ter um ato de um ano de morte dos moradores sem respostas pra isso?”, questionou Luiz Carlos dos Santos, coordenador do grupo.
Na visão dos participantes da manifestação e das organizações de direitos humanos que promoveram o ato, o principal responsável pela ausência de respostas no caso do massacre dos moradores de rua é o governo do Estado de São Paulo. Na época dos assassinatos, as autoridades paulistas assumiram a responsabilidade de encontrar os culpados pelos crimes. Cabe à Polícia Civil apresentar os indícios para que, então, o Ministério Público possa oferecer uma ação penal contra os suspeitos. Mas as informações apresentadas até agora não foram suficientes. Além disso, uma possível testemunha foi morta e um menino, Diego, que disse ter informações, está desaparecido. Organizações de direitos humanos chegaram a pedir a federalização desses crimes, mas o pedido não foi aceito pelo Poder Judiciário.
“Queria que o governador e o secretário de Segurança Pública estivessem ouvindo isso. São Paulo hoje vive uma situação pior do que a do Iraque. Não temos direito de ir para a rua, para a escola. A polícia manda e desmanda. Estou mostrando a minha cara e posso ser a próxima. Por isso precisamos que esses policiais, que estão usando fardas e são pagos com o dinheiro dos nossos impostos, sejam mandados embora. Eles estão denegrindo os bons policiais. Cadê o [Geraldo] Alckmin e o Saulo [de Castro Abreu Filho] que não vêem isso?”, disse Maria de Lurdes Scarpim, moradora do Jardim Pantanal, bairro vizinho ao que foi palco de uma das últimas chacinas de Diadema.
O MP aberto à população
Da Praça da Sé, os manifestantes seguiram em caminhada até o Ministério Público, onde foram recebidos pelo Procurador Geral de Justiça do Estado, Rodrigo César Rebello Pinho. Em princípio, uma comissão seria portadora das reivindicações do movimento, mas o Procurador Geral abriu o auditório nobre do MP para que todos os presentes participassem do debate. As entidades entregaram ao MP um documento onde pediram que seja designada uma equipe especial de promotores para elucidar homicídios coletivos onde haja a suspeita de envolvimento de policiais. O documento também apresenta um inventário de chacinas na periferia de São Paulo, com casos ocorridos em Sapopemba, Parque Novo Mundo, Jardim Pantanal, Favela do Coruja e outros mais antigos, que ainda não tiveram desfecho, como o da Favela Naval e os dos grupos de extermínio em Ribeirão Preto e Guarulhos. A maioria das chacinas aponta para a participação de policiais. Também foi cobrada uma investigação sobre a morte de cinco pessoas, ocorrida no dia 22 de junho, na Favela do Morro do Samba, também em Diadema, numa suposta resistência seguida de morte envolvendo policiais civis.
O tema central da audiência, no entanto, foi a investigação acerca do massacre dos moradores de rua. Conforme explicou o promotor Rodney Claide Bolsoni Elias da Silva, responsável pelo caso junto ao MP, as provas periciais – como exames de necrópcia – já estão esgotadas. E as provas testemunhais, até o momento, não são fortes. “São testemunhos circunstanciais. As pessoas que sabem das coisas pouco estão dizendo de concreto sobre as mortes e as tentativas de morte. E, sobre o pouco que falam, não conseguimos provas”, disse Silva. “A verdade, que muitas vezes está na rua, se não chega ao processo, não existe. E aí as investigações continuam do mesmo jeito. Por isso pedimos aos moradores para nos procurar. Tudo será tratado como sigilo absoluto e temos como dar proteção à testemunha”, garantiu o promotor.
Desde a última quinta-feira (14), o segundo relatório entregue pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) com informações sobre a investigação está nas mãos do Ministério Público. O MP, no entanto, ainda depende de outros dados para tentar concretizar uma prova. Entre eles, estão os nomes dos policiais que compõem o batalhão da Polícia Militar que atua na região da Sé, onde aconteceram os assassinatos. O ofício já foi encaminhado à PM, mas ainda não foi respondido. Um suspeito de envolvimento na morte de um dos moradores de rua é o ex-policial militar Jainer Aurélio Porfírio, vulgo “Jaime”. No entanto, o que os promotores têm em mãos ainda é pouco para oferecer ação penal.
“Não há condições ainda de oferecer ações penais, para dar uma resposta provisória para a sociedade que no final não vai resultar em condenação no futuro. Não vamos formular uma acusação que não tenha êxito. Precisamos de apoio e abrir um canal de comunicação para que possamos efetivamente produzir uma prova. Em parceria, trabalharemos melhor”, acredita Rodrigo Pinho. “Infelizmente não temos indiciados até agora. Mas é difícil trabalhar com o silêncio e a falta de colaboração de outros setores. Precisamos de apoio para conseguir informação. Este caso também nos aflige. Para nós, é uma sensação de frustração muito grande”, admitiu o Procurador Geral, que fez questão de reafirmar o compromisso do Ministério Público e do Tribunal de Júri para punir os responsáveis.
O Ministério Público já pediu o desarquivamento de inquéritos de outras mortes no centro de São Paulo, na tentativa de estabelecer alguma conexão entre os crimes. Há outras pistas possíveis, como informações que podem relacionar o massacre com o tráfico de drogas.
“Localizamos pessoas que deixaram claro a conexão com o crime organizado e o tráfico de drogas. Os motoristas de táxi da Sé sabem disso, mas há uma lei do silêncio grande. E há coisas que não foram investigadas. Não foi preservado nenhum cenário do crime; os policiais militares são protegidos por corporativismo que esconde os fatos; há uma fita para ser ampliada nas mãos do Ministério Público desde o início; podemos chamar os seguranças das empresas do centro para serem ouvidos. As informações que existem já são muito duras para mostrar que temos que desmanchar esta máfia. Portanto, não podemos dizer que é por que o povo da rua não fala que não descobrem os culpados”, rebateu o Padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo da Rua.
Da Agência Carta Maior