Xapuri (AC) – Antes de entrar, percebi que o rapaz que me acompanhava com a moto-táxi havia deixado as botinas enlameadas na porta. Achei melhor repetir o ritual. Como a casa de qualquer seringueiro, a de Cecília também só conta com o estritamente necessário para o dia-a-dia. Na sala, seus sobrinhos, netos e bisnetos assistiam televisão aglomerados em torno do sofá, um dos raros móveis daquela humilde residência. Ela me recebeu com um sorriso de orelha a orelha, parecia empolgada com a minha presença.
Encontrei-a ocupada com o almoço, que geralmente não foge ao combinado de arroz, feijão, mandioca e carne. Na cozinha, as panelas pareciam quadros, uma curiosa decoração para as paredes feitas de madeira retirada da floresta amazônica. Os raios de sol que se insinuavam entre as frestas das tábuas não eram capazes de vencer o frio daquela manhã que já virava tarde, em Xapuri.
Comprovei que a “friagem”, fenômeno da região Norte provocado pelas massas de ar que vêm do Pólo Sul, existe mesmo fora dos livros de geografia. Por isso, Cecília estava precavida. Usava uma malha verde e uma saia longa, feita de tecido grosso. Também calçava meias e chinelas havaianas.
“A senhora é a famosa tia do Chico Mendes?”, puxei papo. Ela respirou fundo, como se as conquistas do presente não fossem suficientes para apagar a agonia de um passado impossível de esquecer: “tempo de Chico Mendes não volta mais”, lamentou. Dizem que é uma ofensa perguntar a idade a uma mulher. Entretanto, ela estava bem à vontade para responder com orgulho que, do alto de seus 82 anos, ainda não havia parado de trabalhar. Mais tarde, alguém me contou que Cecília não pede ajuda nem mesmo para capturar as galinhas que cria no quintal. Ela própria se encarrega de cercar e, se necessário, correr atrás do bicho que se recusa a ir para o caldeirão.
Sebastião Mendes, um de seus 15 filhos, procurava algumas fotos antigas para me mostrar. Havia algum tempo que ele tinha se separado da mulher e voltado para a casa da mãe. Trouxe um monte delas e espalhou pela mesa da cozinha. Uma em especial lhe era muito cara, pois havia sido tirada pelo primo famoso. “Essa daqui foi o Chiquinho que bateu, enquanto eu estava de tocaia, em cima de uma árvore, esperando pela caça no meio da mata”. Cecília puxou uma cadeira e resolveu sentar. Mirava compenetrada aquelas imagens que como flashes assaltavam a sua memória.
Nas primeiras décadas do século 20, Francisco Mendes, de quem Chico herdaria o nome e os genes da indignação, saiu ainda menino do Ceará com os pais e os três irmãos. A família se estabeleceu nos seringais do alto Acre, trabalhando dia e noite para os patrões da borracha, a quem entregavam toda a produção obtida a partir do leite extraído das seringueiras, e de quem eram obrigados a comprar os alimentos que garantiam o corpo em pé. Francisco encontrou Durica. Seu irmão Joaquim caiu de amores por Cecília. Os Mendes, que deixaram a terra do Padre Cícero em seis, hoje são mais de duzentos no Acre.
Porém, em meados dos anos 80, fazendeiros do sul do país chegaram por lá dizendo que haviam comprado os seringais onde a família de Cecília – assim como a de muitos outros amigos seus seringueiros, fugidos da seca nordestina – tinha sido explorada por toda a vida. Difícil acreditar que os operários da floresta não teriam direito sequer a permanecer naquela terra que regaram com o próprio suor, e que estava então destinada a virar pasto. Chico tomou a dianteira e resolveu organizar seus companheiros. Se a floresta tombasse, as árvores não seriam as únicas a ceder lugar ao capim para os bois. Todos eles seriam obrigados a sair, uma reprise do espinhoso capítulo enfrentado por seu pai, quando menino.
Cecília deixava o olhar viajar longe, resgatando nas retinas o filme de aventura protagonizado pelo saudoso sobrinho. “Uma vez, veio um policial na minha casa dizer que o Chico Mendes era um homem violento, que ele estava dando armas para os seringueiros resistirem. E eu respondi que era verdade, que ele trazia um monte de armas: arroz, feijão, farinha”. Sebastião ouvia respeitosamente a mãe, atestando tudo que ela falava com um singelo movimento de cabeça. Garantiu que Chico era um sujeito pacífico, desde garoto. Nunca gostou de jogar bola, mas era capaz de perder tardes inteiras entretido com dominó.
Na noite de 22 de dezembro de 1988, quando a mando de seu pai Darly, o fazendeiro Darcy Alves baleou fatalmente Chico, ele estava justamente jogando dominó com os seguranças contratados em vão para lhe proteger. “Os Alves eram fogo. Matavam mais que meningite”. Sebastião tem um senso de humor muito apurado.
A conversa atiçava a memória de Cecília. Contava nos mínimos detalhes as estratégias que os seringueiros utilizavam para impedir que, na calada da noite e sem ninguém ver, os peões contratados pelos fazendeiros ligassem as motos-serra e pusessem abaixo o meio de vida de milhares de trabalhadores acreanos. Eles faziam plantões, se revezavam na vigília que varava a madrugada. Cecília fazia comida para aqueles guardiões da floresta. (As casas dos seringueiros são suspensas para evitar a entrada de cobras, como se fossem palafitas de baixa estatura.) Uma vez, havia tantos homens dormindo em uma delas que o piso de madeira não suportou o peso e desabou. A tia de Chico de Mendes deixou escapar uma larga risada.
A conversa ainda iria longe, mas Cecília precisava mesmo cuidar do almoço. Perguntou se eu gostaria de comer com eles. Ainda tinha de entrevistar outras pessoas e já havia me demorado demais na casa daquela simpática seringueira. Mas tinha uma última pergunta: “a senhora sabe que faz parte de um dos capítulos mais importantes da história do nosso país?” Cecília hesitou para responder, como se nunca tivesse parado para pensar sobre a grandeza da sua vida. “Por um lado, valeu a pena. Os seringueiros hoje têm onde morar. Só não valeu por inteiro porque assassinaram o Chico. Mataram ele pelo bem dos outros”.