“Não tenho mais lágrimas para chorar nem forças para lutar. Não me preparei para esta guerra de morte”. O desabafo é do líder indígena kokama Edney Samias, cujo pai ficou 11 dias internado em estado grave em Tabatinga (AM) com covid-19. Morreu na manhã de quinta-feira (14). O coronavírus já tirou a vida de outros seis familiares, chegando a 40 parentes em toda etnia.
A mais de mil quilômetros de Manaus, com apenas um hospital e nenhum leito de UTI, Tabatinga, na região do Alto Solimões, é um retrato do interior do Amazonas: faltam respiradores, cilindros de oxigênio e até máscaras. E é onde o coronavírus vem dizimando famílias indígenas inteiras: ao menos 129 já se infectaram na região, o que representa quase a metade do total de casos entre indígenas do Brasil, segundo o Ministério da Saúde.
A rápida disseminação da doença entre indígenas do Amazonas deve-se principalmente à falta de planejamento do governo federal para entregar, em plena pandemia, os benefícios sociais a que eles têm direito, especialmente os R$ 600 de auxílio emergencial, segundo lideranças locais e especialistas ouvidos pela Repórter Brasil.
Considerado prioritário para garantir que indígenas não passem fome em tempos de covid, o auxílio tornou-se um problema porque, com o prazo apertado de três meses para sacar os recursos, eles são obrigados a ir até as cidades, onde encontram longas filas nos bancos, aglomerações de pessoas e o contágio pelo vírus.
“O povo não pegou o coronavírus na comunidade. Eles vão para a cidade fazer compras e ir ao banco, e assim acabam se infectando e carregando o vírus de volta para a aldeia”, conta Eladio Kokama Curico, liderança no Alto Solimões. “Já estamos falando que são os R$ 600 da morte. As agências e lotéricas ficam superlotadas, com pessoas sem máscara muito próximas uma das outras.”
Na aldeia Betânia, em Santo Antônio do Içá, vivem 3.800 indígenas tikuna. Na semana passada, após 120 deles irem à cidade para receber o benefício, a maioria começou a apresentar sintomas como febre, gripe e dor de cabeça, conta Sinésio Tikuna, membro da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira). “Isso nos preocupa muito porque muita gente da comunidade ainda não usa máscara”, diz.
A aglomeração incentivada pelo governo federal é criticada até pelas próprias autoridades de saúde do Amazonas. “Isso foi um tiro no pé. O governo fez as pessoas saírem do isolamento, deixando áreas ribeirinhas e indo para zonas urbanas. O reflexo foi o aumento de casos”, diz Cristiano Fernandes, diretor-técnico da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS/AM). “Em Manaus, dois agentes de vigilância se infectaram enquanto tentavam organizar a fila dos bancos.”
“É como enxugar gelo”, diz o secretário municipal de saúde de Santo Antônio do Içá, Francisco Ferreira Azevedo. “A gente vinha fazendo um trabalho importante [de isolamento], mas quando veio o pagamento do benefício, ficou difícil controlar. Isso só contribuiu para disseminar a doença no interior”, afirma.
Mais planejamento e cesta básica
Lideranças indígenas ressaltam a importância do auxílio financeiro para a segurança alimentar das famílias, mas pedem ajustes na política. “A gente não é contra o auxílio emergencial nem os benefícios sociais, mas que eles sejam melhor planejados para nossa região”, afirma Marivelton Barroso Baré, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), em São Gabriel da Cachoeira. “A lotérica aqui é uma caixinha de fósforo e às vezes junta mais de mil pessoas na fila”, diz.
O líder baré pede também urgência na adoção de medidas como distribuição de cestas básicas para territórios indígenas. A próxima entrega prevista pela Funai é somente para o final de maio e início de junho. “Isso faria a população ficar nas comunidades e não vir às cidades comprar suprimentos. Estamos tentando o possível para apoiar o ‘fique na aldeia’.”
Ao forçar centenas de indígenas às cidades, o governo federal os expõe a doenças e a problemas como falta de alojamento, esgoto, lixo, alcoolismo e dificuldades financeiras, diz o procurador da República Fernando Soave, do Ministério Público Federal no Amazonas (MPF-AM).
Após naufragar em abril a recomendação solicitando medidas adequadas, o MPF entrou na Justiça para pedir pagamento diferenciado aos indígenas durante a pandemia. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região determinou que o prazo para saque do auxílio emergencial seja estendido por seis meses e que o INSS prorrogue o limite para a retirada de benefícios previdenciários.
Procurada pela Repórter Brasil, a Funai disse que vem realizando “orientação maciça junto às aldeias para que os indígenas não se desesperem e evitem o deslocamento de grandes quantidades de pessoas ao mesmo tempo às cidades”. O Ministério da Saúde disse que está à disposição do MPF para “apoiar no que for necessário”. Já o Ministério da Cidadania, responsável pelos benefícios, não respondeu. Veja a íntegra das respostas.
Problema crônico
Não é de hoje que os indígenas do Amazonas adoecem em razão do pagamento de benefícios pelo governo federal. Em janeiro, cinco crianças da Terra Indígena Vale do Javari, na fronteira com o Peru, morreram enquanto acompanhavam os pais ao município de Atalaia do Norte para buscar o Bolsa-Família — cujo limite máximo é de R$ 200.
A dificuldade de acesso aos benefícios sociais é um “problema crônico” para os indígenas e ribeirinhos do Amazonas, explica a pesquisadora Luíza Pereira, da Fiocruz Amazônia. “Para quem está na cidade, parece simples ter três meses para receber o benefício. Mas para quem está nessas áreas remotas, é penoso fazer viagens longuíssimas. E as pessoas viajam a cada três meses evidentemente porque precisam do benefício, pois não existe geração adequada de renda no interior do Amazonas”, diz.
“O auxílio emergencial de R$ 600 potencializa todas essas dificuldades, porque o público-alvo é mais amplo, o valor é mais alto e o prazo de retirada, menor. Então, enquanto o Ministério da Saúde e a Funai dizem para o indígena ficar na aldeia, o Ministério da Cidadania e o presidente da República falam para ele ir para a cidade”, critica o procurador Fernando Soave.
Instituições indigenistas, órgãos de saúde e o MPF cobram de Brasília há anos que o pagamento de benefícios sociais, como aposentadorias, pensões e o Bolsa-Família, seja adaptado ao contexto indígena. Entre as medidas sugeridas estão: realizar o pagamento mais próximo da aldeia, com a entrega do recurso em espécie ou instalando caixas eletrônicos; garantir os valores mesmo para quem não tem conta bancária; facilitar e apoiar transações comerciais online, para que as famílias comprem os mantimentos sem se deslocarem, entre outras propostas.
O assunto é debatido desde 2012 entre Ministério da Cidadania, Ministério da Defesa e Funai (Fundação Nacional do Índio), mas nenhuma medida foi implementada até hoje.
Indígenas registrados como pardos
Além da falta de alternativas para facilitar o acesso ao benefício emergencial, a epidemia na região vem se agravando também pelo precário atendimento médico. Os indígenas relatam dificuldades para serem atendidos no sistema de saúde municipal e denunciam parentes sendo identificados como “pardos” nos prontuários e não como “indígenas”.
O Hospital de Guarnição de Tabatinga (HGuT), gerido pelo Exército brasileiro, não está registrando a origem indígena dos kokamas e tikunas ali internados. Para o MPF, além de ser “discriminatória”, a atitude coloca em risco a vida dessas populações. “A negativa de origem coloca o indígena no grupo comum, sem oferecer o tratamento e o atendimento diferenciado [previstos na legislação], como atendimento na língua materna e separação dos pacientes não indígenas, já que [os indígenas] são mais suscetíveis a infecções virais. Também leva à subnotificação de casos”, diz o órgão, em nota enviada à Repórter Brasil.
O Ministério da Defesa confirmou que nenhum dos 19 pacientes internados por covid-19 na unidade é considerado indígena. A pasta não comentou, porém, o porquê de não se registrar a origem. O MPF encaminhou recomendação ao HGuT na quarta-feira (13) e, caso medidas não sejam tomadas, irá levar o caso à Justiça.
A subnotificação dificulta a implementação de medidas sanitárias para os povos indígenas. “Estamos no escuro. Essa falta de articulação faz com que a epidemia caminhe descontrolada”, diz Pereira, da Fiocruz Amazônia.
Essa situação é agravada pela falta de diálogo entre governos municipais, estaduais e federal. No Alto Solimões, enquanto prefeituras determinam bloqueios de circulação nas cidades, o vírus continua chegando por outras vias, diz o secretário de saúde de Santo Antônio do Içá. “Não adianta o município tomar medidas se as agências federais e estaduais dão autonomia para barcos e aviões continuarem transitando e trazendo gente de fora”, critica.
A Secretaria Estadual de Saúde do Amazonas (Susam) informou que são realizadas discussões entre as três esferas do poder para conter a propagação do vírus e que há três aeronaves para transporte de infectados com covid-19, mas não comentou a demora para transferir os pacientes de Tabatinga a Manaus. Procurada, a Prefeitura de Tabatinga não atendeu aos pedidos de entrevista. O Ministério da Saúde informou que estuda montar um hospital de campanha na cidade, mas não informou prazo, e negou que haja “falta de articulação por parte do DSEI Alto Rio Solimões nem desassistência no atendimento básico nas aldeias”.
Diante do caos na saúde, muitos indígenas estão preferindo se tratar em casa, por conta própria. “Na casa de meu avô finado por covid, na casa de meus tios finados por covid, todos estão com sintomas e estamos tratando com xaropes. Para os casos mais graves damos antibióticos. Não vamos mais levar ninguém para o hospital. Eles já perderam a humanização e estão no automático”, desabafa Samias.
Na tarde de quarta-feira (13), faleceu no hospital militar de Tabatinga mais uma kokama vítima da covid-19 no Brasil, Marilene da Cruz Soares. “Parda”, diz a certidão de óbito.