O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) do governo federal se caracteriza por um tripé: uma bolsa mensal para as famílias de crianças e adolescentes que trabalham; a promoção social dessas famílias por meio de ações sócio-educativas e de ampliação e geração de renda; e a participação de meninos e meninas na jornada escolar ampliada, que inclui atividades de lazer, esportivas, culturais e de reforço escolar. Essa terceira perna é considerada uma estratégia fundamental, principalmente nos grandes centros urbanos, para combater diversas formas de trabalho infantil, entre elas a que ocorre no comércio informal.
Por isso, o Fórum Paulista de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil vem se mobilizando para que os se comprometam a implementar progressivamente a jornada ampliada, como complementação ao ensino regular. O Fórum – que reúne representantes de organizações não-governamentais, do governo e de instituições representativas de trabalhadores e de empregadores – defende que a ampliação da jornada seja oferecida a outras crianças e adolescentes que não somente as vítimas do trabalho infantil. A proposta é que todos recebam atendimento integral nas escolas públicas, como forma de prevenção ao problema, ou pelo menos as crianças pertencentes a famílias que estão em situação de risco.
“Receber educação em regime de jornada ampliada permite à criança o pleno desenvolvimento e proporciona a ela um futuro com dignidade. Algumas pessoas alegam que fica caro, mas é uma proposta viável; depende da vontade política do município. Ela poderá ser executada a partir do momento em que essa criança for reconhecida como prioridade”, afirma Paulo José de Lara Dante, representante da Federação dos Empregados no Comércio do Estado de São Paulo (Fecesp) na coordenação do Fórum. A economista Ana Lúcia Kassouf, que realizou a versão brasileira de uma pesquisa coordenada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em oito países sobre custos e benefícios da erradicação do trabalho infantil, concorda. “Mesmo analisando do ponto de vista econômico, a eliminação traria benefícios porque os ganhos com o aumento de salário via elevação no nível de escolaridade e com a melhoria da saúde seriam maiores do que os custos”, diz.
A experiência da cidade paulista de Apiaí, localizada no Vale do Ribeira, mostra que o investimento vale a pena. Desde 1997 – quando os municípios também passaram a ser responsáveis pelo ensino fundamental por conta da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), aprovada em 1996 – a prefeitura resolveu criar um ensino diferente do que era oferecido pela rede estadual. As novas escolas municipais foram criadas com uma jornada ampliada, em regime semi-integral, com quatro refeições por dia. Duas vezes por semana, no turno complementar ao das aulas escolares, crianças e adolescentes recebem aulas de inglês, música, informática e literatura infantil, acrescentando 1.280 horas de aula nos quatro primeiros anos do ensino fundamental. Além disso, eles têm três horas semanais de recuperação e reforço, com no máximo cinco alunos, aulas opcionais de xadrez e participam de projetos culturais.
Essas escolas, desde o início do trabalho, acabaram com o problema da evasão e da repetência, apresentando índice zero de abandono e retenção. “É possível fazer isso num custo razoável, e nem chamamos isso de custo, mas de investimento”, afirma o prefeito de Apiaí, Donizetti Borges Barbosa. Segundo ele, enquanto a jornada regular custa R$ 122,85 por aluno a cada mês, a ampliada sai por R$ 151,80.
Obrigação do Estado
A implementação progressiva do atendimento em horário integral para crianças e adolescentes no ensino fundamental está prevista na própria LDB. Além disso, a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garantem a proteção integral da criança e do adolescente, o desenvolvimento saudável e a integridade física. Para isso, eles devem ser considerados prioridade absoluta no orçamento. O trabalho infantil, na contramão dessas garantias, é uma das formas mais perversas de violação dos direitos de crianças e adolescentes, comprometendo seu desenvolvimento físico, intelectual e psicológico.
“O direito de brincar é decorrente da condição peculiar de sujeito em desenvolvimento das crianças, que têm pressa porque a infância passa rápido. Se essas medidas não forem implementadas rapidamente, não vão encontrar mais a criança e o adolescente, mas o adulto com seqüela. A jornada ampliada resgata para as crianças a importância e a dignidade da escola”, afirma o procurador Paulo Affonso Garrido de Paula, Coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e de Juventude no Estado de São Paulo. Segundo ele, “seja governo municipal, estadual ou federal, a alocação de recursos para erradicação do trabalho infantil é um dever jurídico, uma obrigação, não é nenhum favor. A função do Ministério Público do Trabalho é garantir esse direito, da dignidade da pessoa humana. Precisamos combater a idéia de que, se a criança não trabalhar, vai ser infratora; e a definição de políticas públicas como uma dádiva para uma população carente, quando na verdade é uma obrigação do Estado”, diz.
Existem três motivos principais que levam tantas crianças e adolescentes brasileiros a trabalhar, segundo Suzana Sochaczewski, uma das coordenadoras do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos) que trabalhou numa pesquisa sobre o tema junto com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), com meninos e meninas de 7 a 14 anos, período em que o estudo é obrigatório. A questão financeira aparece em primeiro lugar, pois muitos pais e mães não conseguem sustentar a família e utilizam o trabalho de seus filhos como estratégia para aumentar a renda familiar. Outra causa é o senso comum na sociedade de que o trabalho prepara para a vida e dignifica o homem.
“Pesquisas mostram que mais de 80% dos detentos começaram a trabalhar antes dos dez anos. Ao dizer que o trabalho prepara para a vida, reproduzem e aprofundam as desigualdades sociais numa época em que a preparação para a vida passa principalmente pela educação”, argumenta Suzana.
O terceiro motivo, que se manifesta principalmente nas grandes e médias cidades, e tem na jornada ampliada um bom antídoto, é a insegurança e o medo que pais e mães que trabalham têm de deixar seus filhos sozinhos fora do horário escolar. Eles têm necessidade de saber que suas crianças estão em um lugar protegido, longe do crime e das drogas. Muitas vezes, preferem que estejam trabalhando junto com eles ou em uma casa de família. É aí que Suzana defende o atendimento integral das crianças, como uma experiência de tirá-las do trabalho através do preenchimento de seu tempo com atividades próprias da infância.
Segundo Jorge Arthur Floriani, que trabalhava na Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social na gestão da prefeita Marta Suplicy (PT), e atualmente faz parte do comitê estadual do Peti, a jornada ampliada dá a certeza do enfrentamento cultural dessa questão. “Quando fizemos uma busca ativa das crianças para o programa, falávamos da bolsa de R$40 para as famílias e elas achavam legal. Depois, contávamos sobre as ações de geração de emprego e renda e elas sonhavam com carteira assinada para seus pais. Mas quando falávamos da jornada ampliada e dos núcleos sócio-educativos, as crianças pulavam. Todas queriam muito participar dessas atividades”, afirma.
Da Agência Carta Maior