Cabrobó, o rio e o Conselheiro: desta vez, pode ser diferente

Há nove dias em greve de fome, o bispo de Barras (BA), Dom Luiz Cappio, vem atraindo multidões em Cabrobó, no Estado de Pernambuco, onde protesta contra a transposição do rio São Francisco. Frei Florêncio Vaz, que esteve recentemente com Cappio, relata suas impressões sobre o encontro
Por Florêncio Vaz
 03/10/2005

Cabrobó (PE) – Depois de andar com dificuldade os 4 km entre a cidade de Cabrobó (PE) e a capelinha, que fica no alto de uma pequena elevação, Dona Maria José, 69 anos, e seu neto de 10, ainda agüentaram uns minutos na fila sob o sol, para poder chegar até o bispo Dom Frei Luiz e lhe pedir a bênção. “Não precisa se ajoelhar, não”, diz ele com um sorriso leve no rosto, enquanto a abençoa. Ao menino ele diz “obedeça à sua avó”, enquanto lhe abençoa também. A idosa senhora sai com os olhos lacrimejantes, mas contente. “Fui expulsa da terra em Lagoa Grande pelo patrão, disseram que eu ia receber indenização, que nunca veio. Depois disseram que eu não tinha direito. Hoje moro pagando aluguel, não tenho dinheiro para comprar remédio, nós temos sofrido tanto… Mas mesmo doente eu vim, mesmo sem dinheiro para o ônibus eu vim. Achei muito bom ver o bispo. Se eu pudesse, eu vinha todo dia”.

Foram cenas como essa que presenciei, e histórias como essa que ouvi no último fim de semana (1 e 2/10) que passei naquela porção do Nordeste, que está atraindo religiosos, freiras, bispos, ativistas sociais e ambientalistas, jornalistas, deputados, senadores, índios e camponeses. A capelinha, onde o bispo Luiz Cappio está em greve de fome há oito dias em protesto contra a transposição do rio São Francisco, se tornou o centro de uma peregrinação que atrai diariamente centenas de pessoas, principalmente a gente pobre. Com roupas simples e o rosto curtido de sol, essas pessoas são a prova do desamparo e da busca desesperada por atenção e alguém que os escute.

Quando perguntamos o que eles vieram fazer ali, poucos falam que vieram “trazer solidariedade ao bispo”. A maioria diz com simplicidade que veio tomar “bênção” ou rezar com ele. O que mesmo está acontecendo em Cabrobó?

Entre a cidade e o terreno de Seu Lídio e Dona Isaura, onde fica a capelinha, na beira da estrada, o movimento de pessoas indo e vindo é grande. Alguém num carro pára e pergunta “como chegar até onde está o bispo”. Os moradores informam com muito prazer. Da beira da estrada é possível ver o movimento de gente aglomerada em torno da capelinha, as pessoas chegando a pé e outras, de ônibus, moto, caminhão e carro. Alguns, porém, fazem questão de mostrar que pensam diferente: “é uma loucura, ele não vai conseguir”, nos diz um adolescente na estrada. Mais tarde, quando almoçávamos em um restaurante popular, um senhor falava alto na mesa vizinha, o suficiente para entendermos o recado: “Eu sou a favor da transposição, e ela vai sair de qualquer jeito”.

Já a grande maioria das pessoas comuns que encontramos não sabia nem mesmo o que significava transposição e revitalização. Só por isso já seria necessária a paralisação imediata das obras, para fazer uma discussão séria do projeto com essa gente.

Voltemos á capelinha. Entre aqueles que estão mais próximos, na rede de apoio ao bispo, destacam-se incansáveis seus familiares, o sociólogo e amigo Adriano Martins, e Irmã Conceição. Mas padres, freiras e muitos leigos ativistas das pastorais indigenista
(CIMI) e da terra (CPT) estão sempre a postos. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) estava bem representada na simpática pessoa de Dom Itamar, bispo de Feira de Santana (BA). E as pessoas simples do povo, que também querem sempre estar próximo do bispo, como se quisessem protege-lo ou como se quisessem sua proteção.

Dom Luiz, sentado, de hábito franciscano, rosto magro e uma calma mística, segue rezando, abençoando e escutando seus visitantes (“eu peço que o senhor reze pela minha família”, “eu ando doente…”). Perguntado pelo porque do seu gesto, sentencia: “diante das forças do mal, a única solução é o jejum e a oração. Jesus já ensinou isso, e é o que estamos fazendo”.

Chegam também promotores, deputados e senadores, e a todos o bispo recebe com a mesmo cortesia e atenção. A diferença é que as câmeras e os jornalistas se aglomeram em torno dele quando se trata de alguém mais conhecido. Assim foi quando chegaram o Governador da Bahia Paulo Souto e, separadamente, os senadores Antônio Carlos Magalhães e Heloisa Helena, por exemplo.

Chegam cinco caminhões cheios de gente cantando com seus maracás. São os índios Truká e Tumbalalá, liderados pelos seus caciques Neguinho e Cícero, respectivamente. Novo corre-corre de jornalistas. O clima é de euforia e animação. Os índios, pintados, com cocares e colares, saúdam o bispo em longas filas. O religioso faz questão de atender a cada visitante pessoalmente. A capela, que cabe umas 90 pessoas, fica apertada e barulhenta por algum tempo. Depois, apresentam o ritual do toré em frente à capela. É uma prova do ecumenismo vivo e celebrativo do povo nordestino.

Mas a maior expectativa do sábado estava concentrada na carta que o Presidente Lula teria mandado ao bispo. E ela chegou trazida pelo Assessor Especial da Presidência, Selvino Heck. Ao entregar o envelope a Dom Luiz, em frente a um altar cheio das imagens de santos – como São Sebastião, Padre Cícero, Santo Antônio, Nossa Senhora e São Francisco – ele lembrou que já tinha sido seminarista de Dom Cláudio Hummes e que tinha ainda laços de amizade com pessoas da Igreja. Mas o que interessava ao bispo e a todos era o conteúdo do documento. Como a missa já iria começar, o bispo disse que abriria a carta só após a celebração.

A celebração da missa começou quase ao meio dia em frente à capela, sob um sol escaldante, e com a maioria das pessoas em pé. Éramos aproximadamente 300 participantes. Tendo Dom Luiz e Dom Itamar à frente, o rito parecia reviver os tempos áureos das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e da Teologia da Libertação, 20 anos atrás: com bispos e padres se fazendo “a voz dos sem voz”, com o fervor dos cânticos e das preces, com a mística do Deus “força e esperança dos pobres” e as contundentes mensagens bíblicas. Um pescador declamou uma poesia falando de um rio com abundância de peixes, com muita vida e em equilíbrio ecológico. É tempo de utopia novamente.

Ao meu lado, uma jovem senhora desmaiou, sendo imediatamente socorrida pelas pessoas mais próximas. Era um sinal do grito silencioso dos que nem podem fazer jejum ou greve de fome, pois que seu dia a dia já é um crônico jejum e sede. Foi lida uma carta de Dom Luiz endereçada ao povo do Nordeste Setentrional, a região que seria supostamente beneficiada com a transposição do rio. O bispo fala que está disposto a dar sua vida pela revitalização do rio, pois identifica a sua vida com a vida do rio e do povo sãofranciscano. Este é seu último recurso para fazer o Governo desistir dessa “obra insana e mentirosa.” É mentira dizer que só as águas do São Francisco podem resolver o problema, pois as populações que moram perto do rio hoje sofrem com a falta de água.

O que falta é democratizar a água. E isso não será feito com a transposição. Não estão contando toda a verdade. Dessa água, 70% será usada pelo agronegócio e para a criação de camarão, beneficiando “os privilegiados de sempre”. O rio está à beira da morte. Como vai doar sangue o moribundo? Não fosse isso, este povo não se negaria a ajudar. “Eu não quero morrer e meu gesto não é egoísta”, concluiu o frei.

Na parte da tarde veio a grande frustração com a divulgação da carta de Lula. O Presidente se limitou a explicar os benefícios da transposição, sugerindo que o bispo não estava suficiente informado, e propondo um diálogo, com o bispo indo a Brasília. O bispo comunicou que seguiria com a greve de fome e que mandaria mensagem a Lula, cobrando novamente uma resposta favorável à revitalização e contra a transposição. “Como Lula pode ser tão desumano?” Comentou uma senhora, atenta ao que escutara.

Dom Luiz conseguiu ficar só para descansar apenas uns minutos no meio da tarde, mas logo que a porta da capelinha se abriu recomeçou a fila de visitas. Com isso, ele acaba falando sempre, se cansando, quando precisaria guardar energias. Mas ele se recusa a ficar distante das pessoas, e quer receber a todos os que chegam, mesmo que seja de noite.

É de destacar a intensa vida de oração de Dom Luiz. Ele reza o ofício (salmos) das horas, o terço e celebra a missa diariamente. Aliás, discursos raivosos contra a transposição ele não faz, e quando fala contra, ele o faz de forma simples e clara. O seu protesto é mesmo pelo gesto e pela oração. Lembra Dom Helder Câmara e os grandes bispos históricos do tempo da Ditadura. Um jovem ambientalista dizia que
reuniões e documentos contra a transposição já existem muitos, mas faltava algo assim, de testemunho. Possivelmente venha daí o seu carisma para atrair tanta gente.

E cada um que se aproxima dele sai tocado pelo que vê. Uma repórter de uma grande cadeia de TV, depois da entrevista, saiu chorando. Lagrimando ou chorando sai a maioria das pessoas que falam com o bispo. Perguntei por que isso, e elas me disseram algo assim: “Ele está fazendo que nem Jesus, ele pegou a nossas dores, é morrer por todos nós, porque essas obras vão abalar a todos. Vai haver uma revolta se Lula não atender a reivindicação. Por isso peço que todos orem muito e sejam solidários com o bispo”.

Sobre o fato de o bispo pegar as dores do povo é ilustrativo o que disse Rafael Brito, um jovem estudante Truká de 20 anos: “Os índios são contra a transposição. Já fomos a Brasília protestar. Mas eles não dão importância ao protesto dos índios, dos pobres. Por isso é um gesto de muita humildade do bispo, tomar nossas dores. Agora nossa confiança está nele. Por causa dele, vão estudar mais essa transposição”.

Outras pessoas com maior visão histórica e analítica me falaram: “Isso aqui está virando um novo Canudos. Dá pra sentir pelas pessoas que chegam aqui, fazendo todo esforço, vindo de longe”. Se ele se levantar, e erguer os braços, apontando uma direção a seguir, rapidamente milhares desses desamparados e sofridos seres humanos estariam com ele. Eles estão só esperando o comando. Ou talvez, com a possível morte do bispo, seguirão sua própria ordem. A capelinha tem muito do Monte Santo. E pelos rostos, essas pessoas parecem ser os mesmos seguidores do Conselheiro. Ao menos a pobreza e o sentimento de desamparo parecem ser os mesmos.

A greve de fome do bispo mexeu com outras carências crônicas e despertou as esperanças últimas do sertanejo. Por sua “última” esperança as pessoas são capazes de tudo. Adriano Martins falava que é perigosa essa insensibilidade dos governantes. Eles que não deixem espaço para a insensatez, pois isso seria mexer com coisa que não se pode controlar depois. Por isso, para Lula seria bem melhor fazer um gesto de grandeza agora, porque o bispo e essa gente não vão recuar. Se Lula perder a ocasião, vai ter que recuar derrotado, mais tarde. Ou vai ter que comandar uma repressão violenta contra o seu próprio povo. Não, desta vez o desfecho tem que ser diferente do primeiro Canudos.

Dom Luiz está cada dia mais fraco. De sábado para domingo foi visível como ele definhou, ficou com os gestos mais lentos e com o rosto mais magro. É dado como certo em Cabrobó que o bispo só sai dali em procissão, “celebrando a vitória do povo ou indo para o cemitério num caixão”. E isso nos assusta a todos, pois não é bravata. E Lula é quem carregaria este caixão por toda a vida.

Neste terça-feira, dia 4 de outubro, centenas de pessoas irão a Cabrobó para participar das manifestações de apoio e solidariedade ao bispo. Serão mais de 30 ônibus de várias cidades, como Salvador, Barra, Gentil do Ouro, Lapa, Juazeiro, Petrolina, Paulo Afonso, Sento Sé, Remanso, Sobradinho, Senhor do Bonfim, e do Estado de Sergipe, que irão a Cabrobó para participar de um ato público, que começa às 6 horas da manhã.

Da Agência Carta Maior

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