Distribuição de pílula do dia seguinte está ameaçada

Estados como São Paulo correm o risco de serem excluídos da Política de Direitos Sexuais e Reprodutivos do Ministério da Saúde por aprovarem leis que proíbem a distribuição da contracepção de emergência. Ausência de informação e lobby dos setores conservadores deve dificultar planejamento familiar
Por Fernanda Sucupira
 04/11/2005

Em março deste ano, o Ministério da Saúde lançou a nova Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, que inclui medidas relativas ao planejamento familiar, à educação sexual e à redução da mortalidade materna. Ela prevê, entre outras iniciativas, a ampliação do acesso aos métodos anticoncepcionais e às informações sobre eles. Para isso, uma das medidas que vem sendo tomada é o aumento da distribuição, no Sistema Único de Saúde (SUS), da contracepção de emergência, a chamada “pílula do dia seguinte”, recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Antes, esse método era fornecido na rede pública apenas para vítimas de violência sexual, mas, com a nova política, passou a ser disponibilizado também em casos de falha ou má utilização do anticoncepcional de rotina.

Isso gerou uma forte reação contrária de setores conservadores do país, encabeçada pela alta hierarquia da Igreja Católica, alegando que esse é um medicamento abortivo. Em diversas assembléias legislativas e câmaras municipais, e até mesmo na Câmara dos Deputados, surgiram projetos de lei que pretendem impedir a distribuição da pílula do dia seguinte pelo SUS e sua comercialização em farmácias. Na Assembléia Legislativa de São Paulo (Alesp), por exemplo, está em tramitação desde junho um projeto de lei nesse sentido, que já foi aprovado por três comissões e em breve deverá ser levado a plenário. Entidades do movimento feminista se mobilizam agora para barrar essa proposta.

A justificativa do projeto, de autoria do deputado estadual Valdomiro Lopes (PSB), baseia-se em argumentos fundamentalmente religiosos, contrariando o princípio de que o Estado brasileiro é laico, e em afirmações sobre o medicamento que não têm comprovação científica. A partir da garantia constitucional da “inviolabilidade do direito à vida”, afirma que a contracepção de emergência deve ser proibida porque é um medicamento que tem por finalidade ser abortivo, “mesmo que a ação abortiva ocorra apenas algumas horas após o coito” e que “toda vida, ainda no ventre, tem um plano pré-estabelecido por Deus”.

Para o médico Jefferson Drezett, membro do Comitê Assessor do Consórcio Latino-Americano de Anticoncepção de Emergência, essa questão já está tão consolidada do ponto de vista científico que o projeto fica entre o inacreditável e o ridículo. “De acordo com a OMS, a anticoncepção de emergência absolutamente não é abortiva, independentemente do conceito de onde começa a vida ou a gravidez. Existem estudos suficientemente claros mostrando que ela apenas impede o contato do óvulo com o espermatozóide. Por isso, é um medicamento recomendado e estimulado por essa organização”, afirma. Segundo ele, não há sentido em proibir um anticoncepcional ético, extremamente seguro, sem contra-indicações e pesquisado à exaustão.

O projeto, no entanto, já passou pelas comissões de Constituição e Justiça e de Saúde e Higiene, onde obteve pareceres favoráveis. Atualmente, encontra-se na Comissão de Orçamento e Finanças e tem como relator o deputado estadual Mário Reali (PT), que também já fez um parecer favorável em relação especificamente às questões orçamentárias da proposta, mas que ainda tem chance de ser revertido. Pressionado pela ONG Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), ele deverá reconsiderar o parecer anterior. De acordo com a assessoria do deputado, Reali vai reafirmar sua avaliação dos aspectos técnicos, mas se posicionará desfavorável ao conteúdo da proposta.

“Esse projeto é uma ação bem clara dos grupos religiosos que têm uma visão equivocada da questão dos métodos anticoncepcionais. Essas forças conservadoras têm se manifestado unicamente para barrar o avanço do acesso das mulheres ao controle da fertilidade. Fica clara a falta de informação deles em relação aos direitos reprodutivos e ao planejamento familiar”, afirma a socióloga Dulce Xavier, coordenadora da regional São Paulo da Rede Feminista de Saúde e coordenadora de comunicação da CDD.

Em São José dos Campos, cidade do interior de São Paulo, um projeto de lei bastante semelhante foi aprovado na Câmara Municipal, vetado pelo prefeito e posteriormente teve seu veto derrubado pelos vereadores. A pedido do Ministério da Saúde, o Ministério Público Federal derrubou a lei por meio de uma ação civil pública, alegando sua inconstitucionalidade. “Nos baseamos na lei federal 9.263, de 1996, que trata do planejamento familiar e se sobrepõe a qualquer legislação municipal ou estadual”, afirma Maria José de Oliveira Araújo, coordenadora da Área Técnica da Saúde da Mulher do Ministério da Saúde. Para o exercício do direito ao planejamento familiar, essa lei garante que “serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção”. E esse é o caso da pílula do dia seguinte, diz Maria José.

Há um projeto de lei ainda mais preocupante na Câmara dos Deputados – no momento na Comissão de Seguridade Social e Família –, que pretende alterar a legislação federal, proibindo a distribuição e a recomendação pelo SUS e a comercialização pelas farmácias de métodos anticoncepcionais emergenciais. A proposta, apresentada em maio pela deputada federal Ângela Guadagnin (PT-SP), também argumenta que “a anticoncepção de emergência pode ser abortiva, se tomada após uma relação sexual realizada no ápice do período fértil” e que está ocorrendo uma utilização indiscriminada da pílula do dia seguinte, “em qualquer circunstância e sem qualquer orientação”, já que existe grande facilidade de acesso nas farmácias e por causa da recente distribuição gratuita pela rede pública. O Ministério da Saúde está acompanhando a tramitação do projeto e já deu parecer contrário a ele. O que mais impressiona os movimentos feministas é que a autora do projeto seja mulher, petista e médica.

“É um direito adquirido e garantido pelo Ministério da Saúde, mas há todo um trabalho das religiões conservadoras que se baseia na desinformação da população, dos médicos e dos parlamentares para tentar passar esse tipo de bobagem e que encontra recepção entre parlamentares”, lamenta Dulce.

Nova política
Desde fevereiro já foram distribuídas pelo Ministério da Saúde mais de 350 mil cartelas e o número de municípios que recebem a pílula do dia seguinte foi ampliado de 400 para 1.388. Para combater a desinformação por parte da população em geral e dos médicos, estão sendo impressas 3 milhões de cartilhas sobre planejamento familiar, que contêm explicações sobre esse método. A rede do SUS também recebeu manuais técnicos sobre o assunto.

“O Ministério da Saúde está no caminho absolutamente correto. Essa política deve ser ampliada, considerando-se que no Brasil são realizados cerca de um milhão de abortos por ano e que ocorrem cerca de um milhão de nascimentos indesejados. É uma quantidade muito alta de gestações indesejadas e a essa é uma alternativa importante para as mulheres. Na América Latina, os países mais radicais em relação ao aborto, aqueles que têm as leis mais restritivas, são os mesmos que colocam as barreiras mais inconcebíveis contra a anticoncepção de emergência”, afirma Drezzet.

No final da década de 60, quando a contracepção de emergência começou a ser utilizada, não se conhecia exatamente seu mecanismo de funcionamento. Como ela é ingerida depois da relação sexual, e naquela época se acreditava que a gravidez se iniciava logo após o ato sexual, chegou-se à conclusão de que era uma pílula abortiva. Partindo desse princípio, setores conservadores da sociedade passaram a acreditar que ela atua depois da fecundação e da implantação do óvulo no útero.

A pílula do dia seguinte, na verdade, tem um mecanismo de ação muito diferente do que defendem esses grupos. Estudos da OMS mostram que quando a mulher ainda não ovulou, a anticoncepção de emergência impede ou retarda a ovulação em torno de sete dias. Nos casos em que a mulher já ovulou, ela prende os espermatozóides no colo do útero, ao criar um muco espesso na região. Se for ingerida até doze horas após a relação sexual, a chance de falhar é de apenas 0,5%. Quando a fecundação já ocorreu, no entanto, a pílula não surte nenhum efeito. Segundo Drezett, esse medicamento é composto basicamente de progesterona – que significa “pró-gestação” –, um hormônio também utilizada por mulheres grávidas que não querem perder o bebê.

Os médicos ainda não estão bem esclarecidos sobre a contracepção de emergência e muitos repetem conhecimentos equivocados herdados da década de 70, muitas vezes misturando suas convicções pessoais e religiosas. “Para as forças mais conservadoras, não importam os argumentos científicos, pois a posição que elas criam não é alterada. Existe o desconhecimento, a desinformação e a ignorância científica, mas existem também os fundamentalismos religiosos e um sentido social muito forte de controlar a sexualidade da mulher. A anticoncepção de emergência dá uma liberdade que parte da sociedade não está disposta a permitir que as mulheres tenham”, afirma Drezzet.

Da Agência Carta Maior

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