O trabalho de regulamentação da Lei de Biossegurança praticamente chegou ao fim, e o decreto que a colocará em vigor pode ser assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva a qualquer momento. A assinatura presidencial só não veio ainda porque uma grande polêmica persiste entre os representantes do governo responsáveis pela regulamentação da lei e as organizações da sociedade civil que acompanham o processo. Trata-se da composição da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão subordinado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) que, com a nova lei, terá amplos poderes para tomar decisões sobre questões relativas aos organismos geneticamente modificados e aos alimentos transgênicos em particular. Grupos que atuam em defesa do meio ambiente, da saúde humana e do direito dos consumidores denunciam que a nova composição vai acentuar o caráter historicamente pró-transgênicos da CTNBio e pode transformar as futuras discussões sobre a liberação da pesquisa, da produção e da comercialização desses alimentos num jogo de cartas marcadas.
Quando a Lei de Biossegurança ainda estava no Congresso, a tentativa dos movimentos sociais de retirar da CTNBio a prerrogativa de decidir sobre os transgênicos foi derrotada. Aprovada em fevereiro deste ano, a lei confere amplos poderes decisórios para a comissão, além de ter alterado sua composição para pior, segundo os ambientalistas. A nova CTNBio será formada por 12 cientistas, nove representantes de ministérios e seis representantes da sociedade civil, todos obrigatoriamente com grau de doutor e com destacada atividade profissional nas áreas de biossegurança, biotecnologia, biologia, saúde humana e animal ou meio ambiente. Vista assim, a divisão das cadeiras no colegiado não parece ser das mais injustas, mas o que preocupa as ONGs é o processo de indicação dos membros da comissão. Sob o controle de um grupo ligado ao MCT e à antiga direção da CTNBio, as indicações, segundo os críticos, deixarão a nova comissão ainda mais suscetível às pressões das grandes empresas do setor de biotecnologia interessadas em introduzir os transgênicos no Brasil.
Com a proximidade da promulgação da lei, a preocupação quanto à composição da CTNBio ganhou força na comunidade científica. Cientistas e pesquisadores de diversas áreas reclamam da excessiva predominância na comissão de setores estreitamente ligados às empresas de biotecnologia, como engenharia molecular e melhoramento genético. “Esta composição deixa a CTNBio muito aquém do que deveria para ser realmente representativa da sociedade. A comissão ficará excessivamente ‘científica’ e, mesmo dentro desse grupo, existe uma predominância exagerada dos setores ligados à tecnologia. Em termos de liberação dos transgênicos, é preciso levar mais em conta as dimensões sociais, ambientais e de saúde humana”, avalia o professor Flávio Gandara, do Departamento de Ciências Biológicas da Escola Superior de Agricultura Luís de Queiroz (Esalq) da USP.
Reunidos em Santa Catarina no final de outubro para uma assembléia da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), mais de 200 cientistas e pesquisadores lançaram um manifesto conclamando a comunidade científica a “compor uma nova CTNBio mais plural, isenta e transparente”. O documento denuncia que o debate e o repasse de informações para a opinião púbica está concentrado nos setores de engenharia molecular, melhoramento genético e afins: “Raramente há neste debate especialistas de outras áreas, mesmo das ciências biológicas, que discutam os métodos mais adequados para se conhecer e avaliar os riscos dos transgênicos, embora todos reconheçam que a biossegurança é uma matéria interdisciplinar por sua própria natureza”, afirma Fábio Dal Soglio, que é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente da ABA.
Falsa impressão
As entidades representativas da comunidade científica reclamam que a falta de espaço para setores mais amplos e críticos na discussão sobre os transgênicos acaba passando para a sociedade brasileira a falsa impressão de que todos os cientistas defendem com entusiasmo a liberação. O manifesto lançado em Florianópolis toca esse problema: “As manifestações do meio acadêmico costumam partir de pesquisadores envolvidos no desenvolvimento de transgênicos, o que pode dar a falsa impressão de que os organismos geneticamente modificados não têm qualquer implicação direta para a saúde e para o meio ambiente e, portanto, o conhecimento dos especialistas em engenharia molecular basta para garantir à população a segurança dos produtos transgênicos. Pode dar ainda a falsa impressão de que as sociedades científicas têm uma posição definida e favorável à liberação irrestrita de transgênicos, quando, na verdade, são praticamente apenas expoentes da área de genética molecular que se manifestam”, afirma o documento.
Outro fator digno de críticas, na opinião de parte dos cientistas, é a desenvoltura com que alguns dirigentes da antiga CTNBio – a maioria participando do atual processo de regulamentação da Lei de Biossegurança – defendem publicamente os transgênicos. “Isso vem acontecendo de forma ostensiva nos últimos anos. Esses cientistas participam de eventos que fazem apologia aos transgênicos sem a mínima citação a qualquer tipo de precaução ou às questões relativas a biossegurança. Alguns já faziam isso quando estavam na presidência da CTNBio e isto é inadmissível”, afirma o professor Flávio Gandara, provavelmente referindo-se a Luiz Antonio Barreto de Castro, que atualmente é secretário de Política e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do MCT e era presidente da CTNBio em 1998, quando a comissão liberou a soja transgênica da Monsanto sem a realização de qualquer estudo sério de impacto sobre a saúde humana e o meio ambiente.
Gandara afirma que “muitos cientistas que defendem publicamente a liberação total dos transgênicos são supostamente ligados à ONGs que se dizem científicas, mas que na verdade são ligadas às empresas de biotecnologia”. Cabem no exemplo dado pelo professor da USP a Associação Nacional para a Biossegurança (Anbio) e o Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB). A primeira tem como patrocinadores a Monsanto, a Cargill e a Bayer, entre outras, e o segundo é financiado diretamente pela Monsanto e pela Syngenta. O poder econômico aliado à falta de espaço concedido aos setores mais críticos, segundo Gandara, acaba afastando do cenário principal importantes cientistas que têm uma visão mais cautelosa sobre os transgênicos: “Quem era crítico dentro da CTNBio acabou se demitindo porque via que suas opiniões eram sempre minoritárias e suas manifestações nunca levadas em conta”, afirma.
SBPC coordenaria processo
Para evitar que a indicação dos novos componentes da CTNBio seja monopolizada pelo MCT e por setores ligados exclusivamente à biotecnologia, as entidades representativas da comunidade científica estão propondo que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) coordene o processo de recolhimento das indicações dos nomes de suas sociedades afiliadas para compor a nova comissão “a partir de um processo transparente e criterioso”. Depois, segundo a proposta dos movimentos, o SBPC levaria uma lista tríplice de cada afiliada ao MCT, que teria a escolha final conforme previsto na Lei de Biossegurança.
As organizações da sociedade civil propõem ainda que os critérios para a escolha dos cientistas pelo SBPC e o MCT levem em conta o equilíbrio entre as mais variadas áreas das ciências biológicas e evitem a predominância excessiva do setor de genética molecular. Outra exigência diz respeito à independência dos cientistas que vão compor a nova CTNBio em relação a projetos de desenvolvimento de organismos geneticamente modificados bancados pelas empresas de biotecnologia. “Na questão dos transgênicos continuamos lutando, mesmo que o governo brasileiro tenha aberto o país a esta tecnologia tão perigosa aos agricultores , pela dependência, e ao meio ambiente, pelo dano definitivo. Lutamos porque acreditamos que em algum momento encontraremos interlocutores mais lúcidos, não cegos pela ganância de alguns oligopólios”, afirma Fabio Dal Soglio.
Da Agência Carta Maior