Políticas de reforma agrária devem prever diversidade sociocultural

Para além do acesso à terra para o desenvolvimento da agricultura, políticas de reforma agrária devem atender especificidades étnicas, culturais e sociais das diversas comunidades em seus biomas como instrumento indissociável para o desenvolvimento rural ambientalmente sustentável, defendem lideranças sociais
Por Verena Glass
 10/11/2005

Pensar a reforma agrária para além da concepção primária de distribuição de terras e da criação de assentamentos de produção agrícola, e avançar para um reconhecimento conceitual e político das especificidades regionais, culturais e étnicas é um desafio que terá que ser incluído nas discussões sobre um novo paradigma de desenvolvimento rural ambientalmente sustentável. Pelo menos é esta a demanda que deve ser apresentada pelo Brasil, segundo representantes de diversas comunidades tradicionais, à Conferencia Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural da ONU, que deve ocorrer em março de 2006 em Porto Alegre.

A associação entre reforma agrária e sustentabilidade ambiental como uma nova forma de ocupação da terra – e que se oponha ao modelo predatório e excludente da agropecuária intensiva e exportadora, como foi carimbado o agronegócio -, é um conceito que deve enterrar definitivamente a idéia da democratização do acesso à terra unicamente como ferramenta compensatória de combate à pobreza. E, mais além, deve elevar ao status de “guardiões” do equilíbrio agroambiental aqueles que tradicionalmente dependeram dos recursos naturais para a sobrevivência.

No universo dos que devem ser contemplados por um projeto mais amplo de reforma agrária se inserem, de acordo com essa concepção, os quilombolas, os ribeirinhos, os agroextrativistas, os povos indígenas e demais comunidades tradicionais, mas as políticas públicas ainda não dão conta de atender as especificidades de tratamento que estes grupos exigem.

Segundo Oriel Rodrigues, membro da Coordenação Nacional dos Quilombolas (Conaq), este grupo especificamente tem entrado apenas recentemente no debate sobre reforma agrária, com a adoção do conceito de direito étnico, mas a legislação agrária não atende às suas demandas.

Para os quilombolas, explica Rodrigues, o território é acima de tudo um espaço de reprodução cultural, um espaço coletivo essencial para a manutenção do grupo. Esta particularidade inviabilizou, por exemplo, o assentamento de grupos distintos em uma única agrovila em Alcântara, no Maranhão, onde várias comunidades foram expulsas de suas terras pela base de lançamento de foguetes das forças armadas. É o governo, junto com grandes empreendimentos industriais ou de especulação de terras, aliás, um dos maiores violadores dos direitos dos quilombolas no sentido de alienação de suas terras para grandes projetos de “desenvolvimento”, como a própria base, barragens ou complexos turísticos, denuncia o coordenador do Conaq.

Por outro lado, depois de quase cinco séculos de resistência como o primeiro movimento organizado de luta pela terra da história brasileira, os quilombolas desenvolveram suas próprias técnicas de cultivo e agroextrativismo sustentáveis. “Temos nossas próprias práticas que garantem a nossa segurança alimentar; se temos os nossos territórios, nos garantimos”, diz Rodrigues.

Para Joaquim Belo, presidente do Conselho Nacional dos Seringueiros, quando se discute o desenvolvimento rural numa perspectiva mais ampla, há que se considerar exatamente as diferenças. Neste sentido, existem, na Amazônia, projetos embrionários como os Projetos de Desenvolvimento Sustentáveis – PDSs, trabalhados pela freira Dorothy Stang, assassinada em fevereiro deste ano por pistoleiros em Anapu, PA -, projetos de áreas comunitárias extrativistas, etc, mas o governo ainda não conseguiu internalizar estes modelos de reforma agrária.

Segundo Belo, para as comunidades da floresta não basta apenas garantir o acesso à terra, mas também aos recursos naturais intrínsecos a sua forma de subsistência, como os óleos vegetais, as castanhas, os frutos, etc.

“Temos que apostar em um desenvolvimento da Amazônia levando em conta a Amazônia da forma que ela é. Há que se enxergar as coisas que são preciosas para a nossa vida, como a fauna, a flora, a água e o ar. Em relação ao conceito de escala, a terra tem que ser fornecida de acordo com as necessidades da família. O desafio maior da Conferência da ONU é tratar a reforma agrária levando em consideração a diversidade. Enxergar as diferenças é fundamental para respeitar o princípio da igualdade”, afirma o seringueiro.

Fator ambiental
Que o debate sobre o uso da terra, do ponto de vista do cumprimento de sua função social, inclui de forma indissociável o fator socioambintal é um aspecto que vem se afirmando na discussão sobre a reforma agrária. Neste sentido, avalia Maria do Socorro Gonçalves, membro do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente (FBOMS), há que se perguntar de fato qual o modelo de desenvolvimento que se quer.

“O próprio conceito de desenvolvimento sustentável tem várias leituras. Para o agronegócio, a monocultura da soja é sustentabilidade econômica. Não entram aí conceitos de preservação socioambientais. Por outro lado, existe também uma concepção de sustentabilidade preservacionista que tem que ser rompida. Agora, apostamos em modelos alternativos ou na desintegração do existente e na construção de outro?”, questiona. O que é certo, afirma Socorro, é que todos os projetos de desenvolvimento sustentável tem que considerar as culturas e os conhecimentos das comunidades tradicionais. “Se tiramos isso, qualquer projeto deixa de ser sustentável”.

“Temos que pensar o acesso à terra nesta dimensão na Conferência sobre Reforma Agrária da ONU”, concorda Maria Emilia Pacheco, pesquisadora da ONG Fase e membro do FBOMS. Segundo ela, é fato que houve, nos últimos anos, um forte crescimento da consciência ambiental dos movimentos sociais, o que possibilita apostar na radicalização de um modelo agroecológico de produção.

Por outro lado, formas alternativas de produção só são possíveis, no sentido de serem passivas à solicitação de recursos públicos, se a terra das comunidades estiver titulada. “As formas tradicionais de ocupação da terra são reconhecidas pela convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante às populações tradicionais reaver seus territórios. Temos que pleitear o reconhecimento esta convenção também no âmbito da Conferência da Reforma Agrária”

Da Agência Carta Maior

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