Artigo – A imprensa no combate ao trabalho escravo

O aumento das ações de fiscalização refletiu na mídia, que se tornou uma importante ferramenta para as campanhas de conscientização. Há hoje um círculo virtuoso entre a imprensa, o governo federal e a opinião pública no combate ao trabalho escravo
Por Leonardo Sakamoto
 01/12/2005

De 1995 até 2005, quase 18 mil pessoas foram libertadas da escravidão em ações dos grupos móveis de fiscalização, integrados por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, procuradores do Ministério Público do Trabalho e agentes da Polícia Federal. Entre 1995 e 2002, cerca de 5 mil trabalhadores foram libertados. Porém, apenas em 2003, primeiro ano da atual gestão federal, foram libertadas quase o mesmo número de pessoas. Em 2001 e 2002, 1247 e 2285 pessoas ganharam a liberdade, respectivamente, enquanto que 2003, o número foi de 4879, em 2004, 2849, e até outubro deste ano, 3.365.
No mesmo período, registrou-se um aumento no interesse da mídia pelo tema. De acordo com levantamento realizado pela Organização Internacional do Trabalho, o número de matérias publicadas nos veículos de comunicação sobre trabalho escravo saltou de 77, em 2001, para 260, em 2002, 1.541, em 2003, estabilizando-se em 1.518, em 2004.

O aumento nas ações do governo e da sociedade civil para o combate ao trabalho escravo e as campanhas de sensibilização sobre o problema refletiram nos veículos de comunicação, que, por sua vez, se transformaram em importantes ferramentas para as campanhas de conscientização. Hoje, o trabalho escravo tornou-se parte das discussões da opinião pública e entrou na agenda de temas nacionais em muito por ação da imprensa. O reconhecimento do papel da mídia se deu no próprio Plano Nacional para a Erradiação do Trabalho Escravo, lançado pelo presidente da República, em março de 2003. A sua meta número 70 trata do papel dos meios de comunicação e a necessidade de inclui-los nesse processo.

Na ocasião do lançamento do Plano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou que o combate ao trabalho escravo era prioridade de seu governo, que trataria o tema como política de Estado. Mais do que as palavras, a vigilância da mídia e da sociedade civil têm sido fundamentais na institucionalização desse processo. Isso é fundamental para que ele sobreviva a um grupo político que assuma o poder e tenha uma visão conivente com o status quo. Um outro fator que contribuiria com esse processo – a aprovação de mudanças legislativas e estruturais – está parado por falta de vontade política do Congresso Nacional e da cúpula do governo federal.

As primeiras denúncias de formas contemporâneas de escravidão no Brasil foram feitas em 1971 por dom Pedro Casaldáliga, bispo católico e grande defensor dos direitos humanos na Amazônia. Anos depois, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) denunciou fazendas, ligadas a multinacionais, no sul do Pará que cometiam esse crime. Porém, o primeiro caso que ganhou repercussão – o depoimento dos peões que conseguiram fugir a pé da fazenda Volkswagen, no Sul do Estado do Pará – não conseguiu espaço nos veículos de comunicação nacionais. Vale lembrar que se vivia em plena ditadura militar, com “receitas de bolo” publicadas onde agiam os censores e jornalistas que desapareciam da noite para o dia por terem escrito além da conta. Foi necessário que a mídia internacional desse atenção para o assunto para que o trabalho escravo começasse a ganhar a pauta da opinião pública.

Em 1995, o governo federal brasileiro – por intermédio de um pronunciamento do então presidente da República Fernando Henrique Cardoso – assumiu a existência do trabalho escravo perante o país e a OIT. Com isso, tornou-se uma das primeiras nações do mundo a reconhecer oficialmente a escravidão contemporânea. Em 27 de junho daquele ano, foi editado o decreto número 1538, criando estruturas governamentais para o combate a esse crime, com destaque para o Grupo Executivo para o Combate ao Trabalho Escravo (Gertraf) e o Grupo Móvel de Fiscalização.

A implantação de uma política para combate sistemático ao trabalho escravo contemporâneo respondeu a antigas reivindicações da sociedade civil. A criação dos grupos móveis de fiscalização, sob coordenação do Ministério do Trabalho e Emprego, para apurar denúncias e, constatadas irregularidades, libertar trabalhadores rurais em condições de escravidão acabou se tornando o mais importante instrumento de erradicação. E a partir do momento de sua criação, a ação dos grupos móveis – na linha de frente do combate – passou a ser a principal fonte de notícias sobre trabalho escravo no país.

Estruturou-se um círculo virtuoso de informação: as operações de libertação dos grupos móveis geram notícias, principalmente as cobertura in loco. As reportagens trazidas a público atuam na sensibilização da opinião pública e da sociedade civil. Munidos dessas informações, formadores de opinião pressionam o Estado para que continue e amplie a implantação de políticas para a erradicação do problema – o que inclui o fortalecimento das próprias ações de fiscalização. Ao mesmo tempo, entidades da sociedade civil, principalmente as que tem contato com populações em situação de risco, são informadas sobre as libertações e atuam na conscientização desses trabalhadores. Dessa forma, aumenta-se a quantidade de denúncias de maus tratos e cerceamento de liberdade a entidades competentes – base das operações de libertação.

Esse sistema tem contribuído para o processo de institucionalização citado acima. Apesar de ainda faltar muito para que ele se concretize, vai ser muito difícil para qualquer grupo político que assuma o governo federal eliminar o processo. Um sinal disso pode ser o número significativo de matérias publicadas entre 2003 e 2004. Ainda é cedo para traçar um prognóstico, mas é bem provável que esse número de matérias se mantenha ou venha a crescer. Apesar do menor número de libertações em 2004 (decorrente de uma greve de 80 dias da Polícia Federal), o número de matérias se manteve relativamente estável por outros assuntos ligados ao trabalho escravo, como discutiremos abaixo.

Analisando os veículos de comunicação de alcance nacional que mais têm contribuído para esse processo, pode-se ressaltar os jornais O Globo e a Folha de S. Paulo, a revista Época, a Rede Globo de Televisão, as rádios CBN e Rádio Nacional da Amazônia, e as agências Brasil/Radiobrás, Carta Maior e Repórter Brasil.

Contudo, a inserção do tema nos veículos não se deu por decisão de cúpulas editoriais e sim por insistência de pauteiros e repórteres, que, sensibilizados pela situação, defenderam sistematicamente a inclusão de matérias até que o trabalho escravo se tornasse pauta recorrente. Desse ponto de vista, a inserção do tema na m&
iacute;dia é uma conquista não só das entidades que atuam no combate a esse crime, mas também dos próprios jornalistas. Vale citar as contribuições de Geralda Doca e Evandro Éboli (O Globo), Elvira Lobato (Folha), Ricardo Mendonça (Época), Jonas Campos (Rede Globo), Miriam Leitão (CBN), entre outros que, assim como suas redações, enfrentam a dificuldade de estarem instalados nos grandes centros urbanos do país e distantes, portanto, das regiões de maior ocorrência de trabalho escravo.

Inicialmente, o papel da mídia resumia-se em denunciar o problema, expor os envolvidos com o trabalho escravo (principalmente se estes fossem figuras públicas) e cobrar dos poderes executivos, legislativo e judiciário ações em suas esferas. A isso vamos chamar de “fase 1” da ação da mídia. Podemos dizer que boa parte dos veículos que cobrem o tema com freqüência já entraram na “fase 2”, ou seja, de análise e investigação. Em alguns casos, eles culminam em media advocacy, com o assunto se transformando em uma bandeira de ação.

O que causa essa passagem de fase também não é uma orientação editorial, até porque ela raramente é percebida. Mas sim a necessidade de continuar pautando matérias sobre o assunto na redação. Após publicar reportagens sobre libertação de pessoas escravizadas, o jornalista vê negadas outras pautas sobre o mesmo tema – que teria se esgotado, na opinião de seus superiores. A alternativa encontrada para que o assunto saia de novo é a busca de um enfoque diferenciado. Utiliza-se uma ação de libertação para servir de gancho a uma discussão maior e mais profunda. Surgem então reportagens e artigos de denúncia sobre a relação entre o trabalho escravo e o agronegócio, o desmatamento, o comércio nacional, a economia globalizada e as relações políticas. Hoje, muitos veículos, quando ingressam no tema, já o fazem nessa “fase 2”, uma vez que o restante da mídia que já trabalha com o assunto elevou o nível informação da sociedade sobre ele.

Em um país onde 13,6% da população é analfabeta, de acordo com o Censo 2000 do IBGE, grupo este formado pelas camadas mais pobres, a televisão e o rádio são os principais canais para alcançar os trabalhadores que podem se tornar escravos.

Porém, há muitas rádios e emissoras de televisão nas regiões de origem, aliciamento e libertação de trabalhadores que estão na mão de políticos relacionados com proprietários de terra que utilizam trabalho escravo ou mesmo políticos que são latifundiários e escravocratas. Jornalistas dessas regiões relatam a dificuldade de divulgar informações sobre o tema nos veículos em que trabalham devido a pressões ou à censura dos patrões.

Enquanto isso, as rádios comunitárias, que têm uma atuação significativa em alertar as famílias dos riscos da superexploração do trabalho, são fechadas pela Polícia Federal por serem consideradas ilegais. Um exemplo é a rádio que ficava sob responsabilidade do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia (CDVDH), fechada diversas vezes. O Centro recebeu em dezembro de 2004, no Palácio do Planalto, o Prêmio Nacional de Direitos Humanos por sua contribuição no combate à escravidão.

Agindo dessa forma esquizofrênica, a Presidência da República transforma em letra morta o texto do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo que ela mesma lançou em 2003. Pois o que tem interessado até aqui é o apoio à divulgação nos grandes veículos, enquanto a comunicação comunitária, que atuaria na base do problema, permanece como crime.

Leonardo Sakamoto, jornalista e cientista político, é membro da ONG Repórter Brasil

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