Maioria dos fabricantes brasileiros de cloroquina não recomenda o remédio para covid-19

Pela primeira vez desde abril, a Apsen, maior produtora do medicamento, se posicionou claramente contra o uso da medicação para combater o coronavírus; OMS confirmou há 4 meses que tratamento é ineficaz
Por Diego Junqueira e Mariana Della Barba
 07/03/2021
Durante a posse do ministro da saúde, em setembro, o presidente Jair Bolsonaro mostra uma caixa do remédio hidroxicloroquina da Apsen (Foto: Carolina Antunes/PR)

Das seis farmacêuticas que fabricam cloroquina ou hidroxicloroquina no Brasil, quatro não recomendam o remédio para tratar a covid-19. Essa maioria foi formada após a Apsen, principal fabricante de hidroxicloroquina do país, se posicionar contra o uso pela primeira vez desde abril, quando a empresa divulgou estudos que supostamente indicavam a melhora de pacientes por causa da cloroquina.

A mudança de posicionamento da Apsen Farmacêutica aconteceu na quarta-feira (3), mais de quatro meses depois de a OMS rejeitar de forma conclusiva o medicamento para este fim e após a Repórter Brasil entrar em contato com a empresa para questionar sobre dois contratos de empréstimo assinados com o BNDES em 2020, que somam R$ 136 milhões. Deste total, R$ 20 milhões já foram desembolsados pelo banco, mas para investimento em inovação – o contrato não permite investir em medicamentos antigos, como a cloroquina, que a Apsen produz há 18 anos.

Outros três laboratórios – Farmanguinhos/Fiocruz, EMS e Sanofi-Medley – já haviam divulgado comunicados no qual recomendavam o fármaco apenas para doenças previstas em bula, ou seja, malária, lúpus e doenças reumáticas. 

Já os dois laboratórios restantes na lista dos fabricantes do medicamento, Cristália e Laboratório do Exército, não se posicionam de forma clara contra o uso do remédio para a covid, mantendo aberta a possibilidade de que a cloroquina ou a hidroxicloroquina sejam usadas no tratamento dos infectados pelo novo coronavírus. 

A fábrica militar alegou que, por ser apenas um “órgão executor”, não tem competência para opinar sobre a eficácia do medicamento que produz. Já o Cristália afirmou que a cloroquina é recomendada para malária e outras doenças, mas não descartou o uso para covid, dizendo que “qualquer recomendação fora das especificadas na bula deve ser feita sob responsabilidade do médico, como ocorre com qualquer medicamento”.

Além das farmacêuticas citadas, ainda há o caso da Eurofarma, que conseguiu o registro na Anvisa em agosto de 2020, mas afirma que não fabricou nem comercializou a cloroquina desde então.

Faturamento recorde

A Apsen é a maior beneficiada pela comercialização recorde do medicamento em 2020. Segundo o Sindusfarma, o faturamento das empresas com o remédio foi de R$ 91,6 milhões em 2020, ante R$ 55 milhões em 2019 (alta de 66%). O Conselho Federal de Farmácia vem alertando para vendas desenfreadas da medicação desde o início da pandemia.

As vendas do remédio ajudaram a Apsen a alcançar faturamento recorde em 2019: próximo de R$ 1 bilhão, 18% a mais em relação ao ano anterior.

Na fase inicial da pandemia, em março de 2020, a empresa divulgou mensagem em rede social dizendo que “apesar de promissores, não existem estudos conclusivos que comprovam o uso para o tratamento da covid-19”. Já em abril, a Apsen publicou uma nota em que apontava a medicação como possível “cura” para a doença. Naquele momento, ainda não existiam estudos científicos conclusivos que descartavam a droga para a covid-19.

A empresa voltou a se posicionar oficialmente sobre o tema na última quarta-feira, quando divulgou em seu site que, “com base nas evidências científicas atuais, a Apsen recomenda a utilização da hidroxicloroquina apenas nas indicações previstas em bula [ou seja, malária e doenças reumáticas]”.

A Fiocruz, que comanda o laboratório Farmanguinhos, emitiu os primeiros alertas contra o uso da medicação na pandemia em abril do ano passado, após um estudo do qual participava ser interrompido precocemente, depois de pacientes apresentarem maior risco de complicações cardíacas. A instituição fabrica cloroquina para o programa nacional de combate à malária. Porém, o Ministério da Saúde usou os estoques da Fiocruz para distribuir o remédio no SUS para o suposto tratamento precoce da covid-19.

A Sanofi-Medley afirmou à Repórter Brasil que não há uso aprovado de seu produto para tratamento da covid-19 em nenhum lugar do mundo, recomendando o medicamento somente para a indicação em bula. 

Já a EMS disse, via assessoria de imprensa, que não recomenda o medicamento para o tratamento da covid-19. A empresa também recebeu empréstimos do BNDES em 2020, no total de R$ 23 milhões. Um dos contratos prevê a construção de uma fábrica de medicamentos oncológicos. O outro permite a aplicação de recursos em medicações antigas da empresa, já que se destina à “ampliação e reforma de unidade industrial, incluindo produção de medicamentos, linhas de embalagens e almoxarifado, no complexo industrial da EMS, em Hortolândia (SP)”. A empresa foi questionada se os recursos foram usados para ampliar a produção do remédio e respondeu que “nenhum pedido [de empréstimo] teve relação com a produção de sulfato de hidroxicloroquina” (veja o posicionamento completo das empresas).

Falta de evidência científica

(Ilustração: Angelo Abu)

As vendas de hidroxicloroquina bateram recorde em 2020 após se tornar o carro-chefe do governo brasileiro para enfrentar a covid-19. Só em farmácias foram comercializadas 2 milhões de unidades (com pico em dezembro) – alta de 113% no ano em comparação a 2019, segundo o Conselho Federal de Farmácia.

Além de distribuir cloroquina no SUS, o Ministério da Saúde incentivou a automedicação, por meio de um aplicativo e em campanha publicitária, e adotou um protocolo clínico, batizado de “tratamento precoce”, que recomenda a droga no estágio inicial da doença.

Em março de 2020, a OMS (Organização Mundial da Saúde) deu início ao Estudo Solidariedade, para avaliar a eficácia de alguns medicamentos contra a covid-19, incluindo a cloroquina e a hidroxicloroquina. O ensaio chegou a ser paralisado provisoriamente, em maio, por dúvidas com relação à segurança dos medicamentos, e, em 17 de junho, foi interrompido de forma definitiva, após ficar demonstrado que a droga não reduzia a mortalidade de pacientes com covid-19.

Em outubro, a OMS divulgou o resultado final da avaliação, realizada com mais de 11 mil pessoas em 30 países: tanto os compostos com cloroquina como o antiviral remdesivir apresentaram “pouco ou nenhum efeito” sobre a mortalidade por covid-19.

A Organização Mundial de Saúde continuou estudando o assunto para se certificar dos efeitos da cloroquina sobre a doença e, na semana passada, um painel de especialistas parece ter enterrado de vez a questão. Após revisar seis ensaios clínicos com 6.000 pessoas, os especialistas concluíram que a hidroxicloroquina não influencia as taxas de infecção e, provavelmente, aumenta o risco de efeitos adversos, como problemas cardíacos. “A hidroxicloroquina não é mais uma prioridade de pesquisa”, afirmou o painel. 

Na avaliação de Nelson Mussolini, presidente-executivo do Sindusfarma (Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos no Estado de São Paulo), não se deve tomar medicamentos para o que não está registrado. “Nosso negócio é baseado em ciência”, diz. “O uso off-label (fora da bula) só se justifica quando existem novas indicações terapêuticas baseadas na prática médica e na ciência”, completa.

“A indústria farmacêutica investe bilhões de dólares para demonstrar a eficácia de seus produtos. Por isso, todos os medicamentos aprovados e registrados pela Anvisa para uso no país têm eficácia comprovada para as indicações terapêuticas de suas bulas, devendo ser consumidos de acordo com as prescrições e orientações de médicos, farmacêuticos e demais profissionais de saúde habilitados; o uso off-label só se se justifica quando existem novas indicações terapêuticas baseadas na prática médica e na ciência”.

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