Brasil começa 2006 sem quebrar ciclo da pobreza, dizem especialistas

Brasil começa 2006 sem quebrar ciclo da pobreza, dizem especialistas, pois ainda enfrenta a questão de forma focalizada, sem criar mecanismos que acabem com o que a perpetua: a desigualdade social. Para Márcio Pochmann, Lena Lavinas e Jorge Romano, falta barrar o processo do empobrecimento
Por Bia Barbosa
 02/01/2006

Os números a seguir não são novidade para ninguém, mas nunca é demais repeti-los. No Brasil, os 10% mais ricos da população são donos de 46% do total da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres – ou seja, 87 milhões de pessoas – ficam com apenas 13,3%. Somos 14,6 milhões de analfabetos, e pelo menos 30 milhões de analfabetos funcionais. Da população de 7 a 14 anos que freqüenta a escola, menos de 70% concluem o ensino fundamental. Na faixa de 18 a 25 anos, apenas 22% terminam o ensino médio. Os negros são 47,3% da população brasileira, mas correspondem a 66% do total de pobres. O rendimento das mulheres é 60% do rendimento dos homens no mesmo posto de trabalho. No Brasil, segundo dados do IBGE, enquanto o Distrito Federal apresentou um PIB per capita de R$ 16.920 em 2003, o Estado do Maranhão ficou com apenas R$ 2.354 anuais por pessoa.

Também não é novidade para ninguém que a pobreza no Brasil é causada pela desigualdade social, fruto de um processo de concentração de poder, de negação de direitos à população e de péssima distribuição de recursos. Países com renda per capita similar à brasileira têm 10% de pobres em sua população. Nós temos 30%. É essa desigualdade que faz com que 55 milhões de brasileiros e brasileiras vivam na pobreza – 22 milhões deles na indigência.

Quebrar essa espiral de empobrecimento e exclusão passa por ações que enfrentem e mudem as atuais relações de poder que, historicamente, produziram e perpetuaram a desigualdade social no Brasil. Algo que, na opinião de especialistas, o Brasil continua longe de fazer. Reunidos recentemente num seminário promovido no Rio de Janeiro pela ActionAid, uma das principais organizações não governamentais no debate sobre pobreza e desigualdade, eles reafirmaram que o país ainda não encontrou o caminho para solucionar o problema da exclusão social.

“O Brasil está jogando fora oportunidades. Enquanto usamos 0,3% do nosso PIB para o Bolsa Família, gastamos 150 bilhões de reais com o pagamento da dívida. Se compararmos com a área econômica, nosso governo não tem coordenação na área social. Não sabemos quais as metas para o setor, quantos brasileiro queremos retirar da pobreza… não há organização para isso”, acredita o economista Marcio Pochmann, do Instituto de Economia da Unicamp.

“Precisamos de ações integradas porque, se continuarmos tratando a pobreza de forma setorializada, essa questão vai estar sempre subordinada à economia. E a identidade da dívida social brasileira é outra. Por exemplo: no Chile, 80% dos estudantes de 15 a 17 anos estão no ensino médio. Se quisermos chegar lá, temos que incluir 5 milhões de jovens, formar 510 mil professores e construir 47 mil salas”, explica.

“Com os recursos que tem, o Brasil deveria ter três vezes menos pobres. Mas a pobreza aqui é resultado histórico do controle das políticas beneficiados pelo neoliberalismo. Por isso, as políticas de superação da pobreza têm que enfrentar a redistribuição dos recursos disponíveis à sociedade. E pra isso é preciso vontade política”, afirma Jorge Romano, antropólogo argentino e coordenador executivo da ActionAid Brasil desde 2003.

Um dos primeiros passos para se combater de forma efetiva as causas que geram a pobreza no Brasil é mudar o próprio entendimento do que é pobreza e compreender seu caráter multidimensional. Enquanto a pobreza for encarada apenas como falta de recursos e deficiência de renda, bastará o argumento de que o desenvolvimento econômico, com aumento progressivo da riqueza social, é suficiente para combatê-la. No entanto, na perspectiva do paradigma do desenvolvimento humano – portanto, não apenas o econômico – a pobreza é um estado de “desempoderamento”, de privação de capacidades de acesso e de oportunidades, um estado de restrição às disponibilidades de recursos e à cidadania.

O inverso dessa moeda, ou seja, um cenário de pleno desenvolvimento humano, pressupõe o um aumento de oportunidades para as pessoas, com capacidade e poder de escolha, e com os resultados desse crescimento sendo apropriados equitativamente pela população, que passa a ter capacidade de influenciar nas decisões que afetam a sua vida.

“A forma como se calcula pobreza no debate nacional é essencialmente com base em metodologias como a que o Banco Mundial utilizou, que é a pobreza extrema – e onde o que está em causa é o nível de sobrevivência mínimo das pessoas. A idéia da pobreza é vista como um déficit crônico que você tem que suprir e depois tudo é responsabilidade dos indivíduos”, critica a professora Lena Lavinas, do Instituto de Economia e do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

“Mas o nível de destituição das pessoas não pode ser apenas medido se elas conseguem ingerir 2.200 calorias por dia. O bem estar das pessoas tem que acompanhar o grau de bem estar agregado de uma sociedade. Na medida em que a gente está falando de pobreza como insuficiência de renda e insuficiência de recursos, de capital humano, estamos nos restringindo a uma visão muito pequena do que seria a idéia do bem-estar”, acredita.

Num quadro em que a divergência do tratamento para enfrentar a pobreza continua grande, o Brasil tem, historicamente, centrado esforços em programas focalizados. Da década de 70 pra cá, a situação se agrava quando a visão da diminuição do papel do Estado no provimento do bem-estar da população ganha força num período de baixo crescimento econômico e grande estagnação da renda. Neste cenário, nem a lógica de que o crescimento econômico seria o caminho para o combate a pobreza se mostra suficiente. Junto a esta onda, o Brasil sofre uma regressão na qualidade da saúde e da educação e a desigualdade social atinge índices alarmantes.

“E aí nos faltou algo que aconteceu em países que tiveram sucesso no enfrentamento da pobreza: processos de revolução, de ruptura na propriedade. Aqui, o capitalismo selvagem não fez as reformas civilizadoras, como a reforma agrária, a reforma tributária, a reforma social. Não universalizamos os bens públicos para oferecer igualdade de oportunidades na educação, saúde, moradia e transporte para a população”, explica Pochmann. “Aqui o padrão de políticas públicas foi e é rudimentar; são políticas setoriais, em que predomina a competição. Cada uma tem os “seus pobres”. E temos que fazer escolhas porque não há políticas universais”, critica.

Na opinião dos especialistas, combate a pobreza com políticas focalizadas quando se trata de 55 milhões de pessoas. Programas focalizados só trariam resultados em grupos muito marginais e minorizados, ao mesmo tempo em que se garantisse acesso universal a um conjunto de serviços universais a toda a sociedade. O que existe hoje no Brasil, no entanto, é o contrário. Daí a urgência em se redesenhar os programas de combate à pobreza no país. Antes de buscar algumas melhorias pontuais, seria necessário ter padrões equânimes de qualidade para todos, o que não se dá sem políticas universais sob a responsabilidade do Estado.

“Mas, em vez disso, continuamos discutindo essencialmente políticas de transferência de renda. Elas são necessárias, mas têm um lugar muito determinado num sistema de proteção social. Podem reduzir pobreza, mas jamais serão suficientes para oferecer às pessoas o que elas precisam. São muito pouco”, acredita Lena Lavinas.

Para a economista carioca, a urgência é inverter os fluxos que geram pobreza e consolidar mecanismos de redistribuição permanente, já que a economia de mercado trabalha para criar desigualdade. Para ela, se não fizermos um esforço neste sentido – ou seja, se não enfrentarmos a pobreza de forma a combater a desigualdade que a causa –, seremos ineficientes.

“Os porta-vozes do neoliberalismo dizem que não há alternativas, que a pobreza é resultado da aplicação inadequada dos recursos por parte dos países em desenvolvimento. Em suma, que é culpa dos pobres. Mas existem processos sociais, econômicos e políticos que agem como processos de empobrecimento. Se não olharmos pras coisas assim, vamos simplesmente fazer com que as pessoas saiam da linha de pobreza passando a ganhar 101 dólares em vez de 99”, explica o argentino Jorge Romano.

“Para tanto é preciso mudar relações de poder que fortalecem o autoritarismo, o clientelismo, o patrimonialismo, a corrupção e novas formas neoliberais de apropriação privada dos recursos públicos. O contrário disso é um novo modelo de desenvolvimento com ênfase na proposperidade (e não no crescimento), na qualidade de vida, na justiça social, nos modos de produção e consumo solidários e num Estado forte, que garanta universalidade nos direitos e formas cidadãs de acesso aos serviços”, aponta. Um desafio que certamente vai requerer do Brasil mais do que o ano de 2006.

Da Agência Carta Maior

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