Três lavradores da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), movimento social que luta pela “revolução agrária” em Rondônia, foram mortos durante ação policial na área rural de Porto Velho na última sexta (13). Amarildo Aparecido Rodrigues, Amaral José Stoco Rodrigues e Kevin Fernando Holanda de Souza estavam na ocupação Ademar Ferreira, no distrito rural de Nova Mutum Paraná, distante 150 quilômetros da área urbana de Porto Velho, quando foram mortos por policiais do Batalhão de Choque e do Batalhão de Operações Especiais (Bope).
A região onde ocorreu a ação policial fica em uma área de intenso conflito agrário. Em março, a Repórter Brasil publicou uma reportagem mostrando os sucessivos cercos policiais aos membros da LCP no acampamento Tiago dos Santos, vizinho ao Ademar Ferreira, palco das recentes mortes. A reportagem, inclusive, foi alvo de uma abordagem de policiais militares sem farda, que apontaram um fuzil .565 para o repórter e alertaram que ali seria uma área de guerrilha.
À época, militares vigiavam e faziam uma caçada aos integrantes da liga, acusados pela Polícia Civil de terem assassinado dois policiais em outubro, o que é negado pela advogada que defende o movimento. Desde que a Repórter Brasil esteve no local, em dezembro, o conflito entre integrantes da liga e policiais recrudesceu.
A morte dos policiais chamou atenção do presidente Jair Bolsonaro (que postou um vídeo ironizando a LCP nas redes sociais) e de seu filho, o senador Flávio, que esteve em Nova Mutum Paraná na semana seguinte, quando se reuniu com fazendeiros. Dias depois da visita do primogênito da família Bolsonaro, a Justiça concedeu a reintegração de posse, executada por centenas de policiais, que expulsaram os camponeses sob bombas de efeito moral. Os camponeses, no entanto, voltaram a viver na área poucos dias depois.
No ataque da última sexta-feira (13), a Polícia Militar de Rondônia afirma que a Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) também participou da operação que resultou na morte dos três integrantes da LCP. O Ministério da Justiça, contudo, nega a atuação da Força Nacional, apesar de 70 homens da tropa estarem na área desde junho por conta da “Operação Rondônia”, que tem como intuito “combater invasões de terras”.
Advogados da Associação Brasileira de Advogados do Povo (Abrapo), uma entidade sem fins lucrativos que defende os acampados, colheram o depoimento de sete sobreviventes do ataque policial da última sexta. Eles relataram momentos de pânico com tiros disparados de dois helicópteros. Os sobreviventes escutaram barulhos de disparos quando estavam dentro dos barracos ou trabalhando na roça e correram para a mata para se esconderem.
Segundo os relatos, eles ficaram escondidos e, durante a noite, se deslocaram para o acampamento Tiago dos Santos, também organizado pela LCP. Um dos sobreviventes disse ter passado por uma grande poça de sangue, ao lado de uma mochila e de uma garrafa de água.
“Pai e filho foram mortos na roça, enquanto estavam trabalhando”, afirma a advogada Lenir Correia, da Abrapo. Ela faz referência a Amarildo Aparecido Rodrigues (pai) e Amaral José Stoco Rodrigues (filho) que, segundo diz, foram mortos no local descrito por um dos sobreviventes, com a mochila e a garrafa de água ao lado da poça de sangue.
No relato policial, é apresentada outra versão para a morte de ambos. Os militares alegam que foram surpreendidos por três homens e que dois deles atiraram. “Os policiais revidaram a injusta agressão e efetuaram disparos, alvejando dois indivíduos”, afirma nota da Polícia Militar. Segundo a polícia, uma das vítimas estava com um rifle e a outra com uma espingarda. Um terceiro foi preso acusado de esbulho possessório (invasão de terra). Ele foi libertado por falta de provas, segundo a Abrapo.
A morte de Kevin Fernando de Holanda ocorreu no início da ação, segundo relato da PM. Os policiais estavam revistando as moradias do acampamento quando se depararam com uma picape e duas motocicletas. “Ao avistar a PM e receberem ordem de parada, todos decidiram ignorar as ordens e resolveram fugir”, afirma nota publicada pelos militares. Kevin estava em uma das motocicletas e, segundo a polícia, “sacou uma arma de fogo e passou a efetuar disparos”. Ainda segundo a polícia, Kevin “continuou o seu percurso na tentativa de fugir dos policiais, contudo caiu mais a frente alvejado”.
Nenhum policial ficou ferido.
A advogada Lenir Correia contesta a informação dos policiais e afirma que Kevin recebeu mais de 20 tiros, sendo a maioria nas costas. “Todos estão com um sentimento de revolta muito grande. O que aconteceu foi uma execução”, afirma a advogada da Abrapo.
Em texto publicado no site Resistência Camponesa, a LCP promete que vingará a morte dos três camponeses: “O que fazem é aumentar nosso ódio e disposição para lutar. Estamos fazendo as contas, e vamos cobrar. Vocês pagarão caro! Estes camponeses assassinados, presos e atacados são trabalhadores honrados. Não tarda o dia em que o campesinato se levantará aos milhões e varrerá com o latifúndio e cobrará os séculos de exploração e violência contra nós cometidos. Quem viver, verá!”.
Questionada sobre as denúncias de execuções, a Secretaria de Segurança, Defesa e Cidadania de Rondônia não se pronunciou até a publicação desta reportagem.
O secretário é o coronel da Polícia Militar, José Hélio Cysneiros Pachá, o mesmo que comandou um batalhão da PM, em 1995, que participou do episódio conhecido como Massacre de Corumbiara, quando trezentos homens, entre pistoleiros e policiais, atacaram um grupo que ocupava uma fazenda no Sul de Rondônia. Oito lavradores foram assassinados, 20 desapareceram e 350 se feriram. Dois policiais também morreram. Pachá foi inocentado pelo júri em agosto de 2000.
Foi justamente após o Massacre de Corumbiara que surgiu a Liga dos Camponeses Pobres, criada a partir da união de sindicatos urbanos com o Movimento Camponês Corumbiara, que aglutinou os sobreviventes. Fundada em 1999, a liga é hoje o principal movimento social de Rondônia em defesa da reforma agrária – ou “revolução agrária”, como costuma apregoar. Os trabalhadores rurais que a compõem pregam a “morte do latifúndio”. Hoje são aproximadamente trinta acampamentos mantidos pela liga em Rondônia, que recebem a denominação de “áreas revolucionárias”.
Fazenda é fornecedora da JBS
O acampamento Ademar Ferreira fica na área ocupada, em abril, pela LCP da fazenda Santa Carmem, propriedade da família de José Marcos Leite, empresário e pecuarista que morreu em 2014. Natural de Ibirá (SP), Leite migrou para o Acre na década de 1970, se tornou pecuarista e fundou diversas faculdades. A viúva de Leite, Ana Maria Leite, e seus filhos deram continuidade aos negócios, que se expandiram para Rondônia. A fazenda Santa Carmem, palco das mortes dos sem-terra, fornece gado regularmente para um frigorífico da JBS em Porto Velho.
Procurada, a JBS disse que suspendeu temporariamente o fornecedor até que o Ministério Público Federal (MPF) se manifeste. A multinacional disse que levou ao órgão “questionamento sobre o andamento processual das acusações trazidas contra a fazenda Santa Carmem. Isto porque o Protocolo de Monitoramento de Fornecedores de Gado do Ministério Público Federal, que recai sobre todas as empresas que atuam no bioma, veta a aquisição de animais de propriedades condenadas em primeira instância por violência agrária”.
Há uma ordem de reintegração de posse autorizada pela Justiça em favor dos fazendeiros, porém, a operação da última sexta-feira (13) não teve relação com este processo judicial. A Justiça também autorizou, em maio, que policiais escoltassem os funcionários da fazenda para que o gado fosse retirado do local. Na operação, que durou cinco dias, foram transportados 1,2 mil bois com apoio de helicópteros da polícia. Um dos herdeiros da fazenda, José Marcos Leite Júnior, disse em entrevista ao Canal Rural que a fazenda tem 20 mil hectares com capacidade para 7 mil cabeças de gado e que a área destinada à agricultura ocupa mil hectares.
No processo de reintegração de posse, que tramita na 9a Vara Cível de Porto Velho, os advogados da família anexaram documentos, que segundo eles, comprovam a legitimidade da posse e também afirmam que a propriedade é produtiva, descrevendo uma série de benfeitorias, entre elas, uma pista de pouso.
Segundo os advogados dos fazendeiros, 40 pessoas armadas com rifles e pistolas automáticas renderam os funcionários da fazenda Santa Carmem em 21 de abril. “Os funcionários de lá saíram apenas com a roupa do corpo”, descrevem os advogados da família Leite no processo de reintegração de posse. Eles afirmam também que durante a ação, construções e veículos foram queimados, cercas destruídas e máquinas roubadas.
“Detonaram todas as instalações, que não servem mais para nada. Dois tratores foram roubados e outro depenado”, afirmou Leite Júnior em entrevista ao Canal Rural. “Nos causa muito estranheza esse terrorismo. Isso não é luta por reforma agrária, é um ato terrorista”, disse.
Procurados, os advogados da família Leite não retornaram aos pedidos de entrevista.
‘Revolução agrária’ x bolsonarismo raiz
A liga ocupa o posto de “inimiga pública número um” das autoridades de Rondônia há mais de década. Em 2008, a Câmara dos Deputados realizou uma audiência para pedir providências contra “o domínio” da organização no Estado. O então secretário-adjunto de Segurança Pública de Rondônia, Cezar Pizzano, acusou a liga de receber contribuição financeira e orientações de movimentos guerrilheiros latino-americanos, como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o Sendero Luminoso, do Peru. Ele disse que extraiu as informações de um dossiê elaborado pela polícia entre 2004 e 2008.
Em abril deste ano, a LCP expandiu sua ocupação na região, tomando parte da fazenda Santa Carmem, onde vivem cerca de 200 famílias no acampamento Ademar Ferreira.
Diante do avanço da área ocupada pelos camponeses, o presidente Jair Bolsonaro atendeu ao pedido dos ruralistas de Rondônia e autorizou o envio da Força Nacional para o estado em julho. Há um alinhamento grande entre o presidente e o governador de Rondônia, o coronel da PM Marcos Rocha (PSL) em pautas conservadores e contrárias à reforma agrária. O Estado foi o terceiro do país que mais garantiu votos a Bolsonaro. Ficou atrás somente do vizinho Acre e de Santa Catarina.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil