A bordo de uma balsa de garimpo: quanto vale a vida no mercado de ouro ilegal?

Balsas ilegais no rio Madeira, no Amazonas, extraem até R$ 130 mil por mês em ouro; trabalhadores sonham em economizar dinheiro - para comprar a sua própria balsa. Alzira, cozinheira, aumentou em 1.000% seus ganhos, mas encara riscos
Por Sam Cowie | Fotos: Avener Prado
 13/09/2021
Cerca de 20 balsas de garimpo se alinham no Rio Madeira (Amazonas), cada uma extraindo, ilegalmente, cerca de R$ 130 mil por mês em ouro (Foto: Avener Prado/Repórter Brasil)

Seis dias por semana, Alzira, de 48 anos, prepara café da manhã, merenda, almoço e jantar para a tripulação de seis homens a bordo de uma balsa de dragagem, que cruza o rio Madeira garimpando ilegalmente por ouro. Aos domingos, quando a arrecadação de ouro da semana é contabilizada e os salários pagos, ela volta para sua casa em Humaitá, no sul do Amazonas. 

“Você ganha muito melhor [aqui] do que na cidade”, disse ela à Repórter Brasil, enquanto preparava um café na cozinha, que fica no andar de cima da balsa. Alzira começou a trabalhar como cozinheira nesta embarcação ilegal há três anos. Hoje, ganha um salário fixo de R$ 5,5 mil por mês – um aumento de 1.000% desde que abandonou o trabalho de doméstica na cidade, quando ganhava R$ 500 mensais.

A cozinheira Alzira aumentou em 1.000% seu salário desde que começou a trabalhar numa balsa de garimpo (Foto: Avener Prado/Repórter Brasil)

A cozinheira é a única trabalhadora na balsa com salário fixo. Os garimpeiros trabalham como “porcentistas”: eles recebem, em dinheiro, uma parte do ouro retirado a cada semana. O dono da balsa fica com a maior parte. Geralmente, como é o caso aqui, o dono – que assume os custos dos insumos (diesel, mercúrio e alimentação) – fica com 70% do lucro e os trabalhadores dividem os 30% que sobram, a forma de pagamento mais comum em garimpos ilegais.

Para Alzira, porém, a alta remuneração não vem sem riscos. “O vento, a chuva. É muito arriscado”, diz. “Ontem foi assustador: a balsa ao nosso lado quase alagou”. Não foi a primeira vez. Segundo ela, esse tipo de acidente é comum. Há um mês, conta, “o vento entrou” na balsa e arrancou o telhado “como uma lata de sardinhas”.

Em novembro de 2020, a Repórter Brasil visitou a balsa onde ela trabalha, apenas uma entre as cerca de 20 outras semelhantes enfileiradas no rio, lançando vapores escuros de diesel e resíduos de mercúrio nas águas barrentas do Madeira. 

Acredita-se que possivelmente centenas de outras embarcações ilegais estejam dragando ao longo do rio Madeira – a segunda hidrovia mais importante da região norte do Brasil. A maioria das embarcações opera ilegalmente; muitas empregando ribeirinhos na região, frequentemente em condições arriscadas e precárias. 

Um cenário que não combina com as cifras bilionárias do setor. Apenas no ano passado, a exportação de ouro no Brasil movimentou US$ 4,9 bilhões (cerca de R$ 25 bilhões) – dos quais estima-se que 17% tenham origem ilegal, segundo recente estudo do Instituto Escolhas.

“O grande problema no caso do garimpo no rio Madeira é a captação das economias locais por essa atividade ilícita”, diz Ana Carolina Haliuc Bragança, procuradora da República no Amazonas. 

Mas não só. A questão ambiental é igualmente grave: “No caso do rio Madeira, a hipótese é que há um acúmulo de mercúrio no leito do rio e ele vai sendo incorporado à cadeia alimentar”, afirma Bragança. Os peixes terminam ingerindo o metal tóxico, que chega ao corpo humano por meio da alimentação, apresentando riscos à saúde.

Enfileiradas, as balsas funcionam a base de diesel, responsável pela fumaça; já no rio, são despejados as sobras de mercúrio – metal altamente tóxico (Foto: Avener Prado/Repórter Brasil)

‘É cansativo, mas você se acostuma com tudo’

O cunhado da Alzira é o dono da balsa em que ela trabalha, feita com tábuas de madeira, avaliada em torno de R$ 90 mil. No andar de baixo, os membros da equipe trabalham entre máquinas e motores que ficam zumbindo e batendo sem pausa. O barulho dos motores é tanto que é difícil falar sem gritar. Há muita fumaça, e o cheiro de diesel é espesso no ar.

Em equipes de quatro pessoas, os homens trabalham girando um objeto em forma de roda com quatro cabos, conhecido como “sarinho”, em turnos de 6 horas cada, dia e noite.

A maioria dos sistemas era operada por rapazes sem camisa, outros por homens na casa dos 40 ou 50 anos, alguns dos quais são os proprietários das balsas. Muitos usam jóias de ouro.

“É muito cansativo”, diz nosso guia, um jovem magro de 20 e poucos anos, que opera um barco e que já serviu no Exército. “Mas você se acostuma com o barulho, com tudo.”

Marcos, de 44 anos, que diz ser de uma família de comerciantes da cidade, afirmou que em uma semana boa chega a ganhar até R$ 3 mil com o seu percentual, enquanto em uma semana ruim cai para R$ 1,3 mil. 

Ele conta que é um ex-viciado em drogas. Mostra uma cicatriz na perna que ele ganhou trabalhando na balsa. “Isso não vai te salvar”, diz ele, apontando para máscara de proteção anti-covid usada pelo repórter. “Só a fé pode salvar as pessoas”.

O sarinho controla o fluxo de água e o sedimento que é sugado por uma chupeta. A mistura cai em um tapete que recolhe as partículas de ouro.

A cada vinte horas, o carpete é limpo e esvaziado; as partículas de ouro são deixadas em um balde. O mercúrio – substância altamente tóxica, conhecida por provocar grandes danos ao meio ambiente e às pessoas – é adicionado ao balde e, em seguida, filtrado com uma camiseta. Quando a amálgama está completa, o excesso de mercúrio no ouro é queimado – o restante, a parte que não pode ser recuperada, é lançada no rio. 

Se as condições são boas, a balsa pode puxar entre 80g e 100g de ouro por semana, o que resulta em R$ 31.800 por semana (ou quase R$ 130 mil por mês), com o preço do ouro em R$ 318 o grama. Os gastos com insumos, entretanto, são altos. 

As balsas carregam todo o diesel que será usado – cada barril de 200 litros custa R$ 700 e dura pouco menos de um dia. Os custos do diesel somados giram em torno de R$ 3,5 mil por semana. 

“Quando começar a ficar fraco, a gente vai para outro canto”, diz um dos operadores.

‘Quando começar a ficar fraco, a gente vai para outro canto’, diz um dos operadores (Foto: Avener Prado/Repórter Brasil)

No entanto, devido à natureza ilegal da atividade, o ouro vendido sem documentos geralmente é comercializado por valor inferior, até 20%.  Então, o ouro é “esquentado”; gíria para legalizar por meio de fraude.

A maior parte desse ouro ilegal, segundo fontes locais, é vendida em Porto Velho, na vizinha Rondônia, a cerca de duas horas de carro. É também de onde vem grande parte do equipamento – especialmente motores para as balsas de garimpo.

“Os caras de Rondônia ajudam muito”, diz Alzira.

Neste ano, o governador de Rondônia, Coronel Marcos Rocha, apresentou um decreto que regulamenta o garimpo nos rios do estado.

Cada balsa chega a extrair R$ 130 mil por mês (Foto: Avener Prado/Repórter Brasil)

Pandemia e crise social

Um mês depois de o vento arrancar o telhado de madeira e alumínio da balsa, Alzira conta que, agora, está tudo consertado. “Mas chuva molhou documentos, colchões, tudo”. Além da cozinha, o deck superior também tem quartos com camas e uma televisão.  

O filho adolescente de Alzira – um de seus seis filhos – está dormindo numa rede com um boné cobrindo o rosto. Na época em que estivemos na balsa, sua escola estava fechada por causa da pandemia do coronavírus. 

“As aulas estão paradas… ele não gostava das aulas online”, conta. Dois de seus outros filhos também trabalham com garimpo.

Alzira, porém, planeja deixar esse trabalho de cozinheira em breve. Do dinheiro que economizou, ela usou R$40 mil para montar uma pequena balsa (dos quais R$ 20 mil só para o motor) para o marido, que atualmente trabalha como “porcentista” em outra embarcação mais abaixo do rio. 

Mas enquanto ela pretende sair, há uma extensa fila de mulheres querendo trabalhar como cozinheiras no garimpo, que ficou ainda mais longa diante dos altos índices de desemprego deflagrados na pandemia.

“Há uma crise social que precisa ser destravada”, diz Ricardo Gilson da Costa Silva, geógrafo da Universidade Federal de Rondônia. “Mas o garimpo é uma atividade que, em termos ambientais, é muito destrutiva pro rio. E, do ponto de vista social, é uma atividade que gera muita violência, prostituição, tráfico de drogas”, diz ele.

Nas redes sociais, em grupos dedicados à atividade garimpeira, são inúmeros os pedidos feitos por mulheres perguntando sobre vagas de cozinheiras nos garimpos da Amazônia. São frequentes ofertas de trabalho para “mulheres” e “meninas” no garimpo – com forte alusão à prostituição. 

Recentemente, Valmir Clímaco, o prefeito de Itaituba no Pará, um dos pólos de garimpo ilegal mais conhecidos do Brasil, disse em áudio que mulheres que trabalham no garimpo, se forem solteiras, “além de cozinhar e lavar as roupas para garimpeiros, têm grandes chances de  ganhar um dinheirinho”. “Se elas quiserem arrumar namorado lá são livres”, ele afirmou posteriormente ao jornal O Globo.

Procurado, Clímaco disse que a sugestão foi referente aos garimpos legais, localizados fora das terras indígenas. “Qual o problema da mulher ir trabalhar cozinhando para os garimpeiros? Se ela for bonita pode ganhar um dinheiro na boate também”, afirmou.

Em Humaitá, moradores contam que mulheres, incluindo adolescentes, são levadas até balsas de garimpo em pontos mais distantes do Rio Madeira nas madrugadas.

Além da prostituição, uma atividade presente nos garimpos ilegais, também são comuns denúncias de trabalho em condições degradantes. 

Em 2018, a Repórter Brasil presenciou o resgate de 38 homens e mulheres, entre elas oito cozinheiras, em um garimpo de terra ilegal na Floresta Nacional do Amana, comandada por Raimunda Oliveira Nunes, no Pará, em situação análoga à de escravos.    

Raimunda foi novamente autuada por trabalho escravo em 2020, em um garimpo no mesmo estado.

Um levantamento feito pelo Observatório da Mineração mostra que desde 2008, 333 trabalhadores foram resgatados em garimpos no Brasil em condições análogas à escravidão, sendo o Pará o estado campeão. 

Ibama e ICMBio destruídos

Os garimpeiros do Rio Madeira chegaram às manchetes nacionais no final de 2017, quando uma multidão enfurecida atacou e destruiu os escritórios e carros do Ibama e do ICMBio em Humaitá, ataques que aconteceram após uma operação em que várias balsas foram apreendidas e destruídas.

O que sobrou da antiga sede do Ibama em Humaitá (AM) após ataque de garimpeiros em 2017 (Foto: Avener Prado/Repórter Brasil)

Na época, o então prefeito Herivaneo Seixas, que participou dos protestos, chegou a ser preso. Ele negou envolvimento com os ataques. Também foram presos o vice Rademarque Chaves e três vereadores da cidade. Até hoje os escritórios dos órgãos ambientais destruídos permanecem fechados.  

Pouco depois dos ataques em 2017, o então governador do Amazonas, Amazonino Mendes, concedeu e renovou Licenças de Operação Ambiental (LOA) para cooperativas de garimpo, sem estudo sobre resíduos de mercúrio, como foi relatado pela Amazônia Real.

Pouco depois, em dezembro de 2017, a Justiça Federal suspendeu as licenças ambientais concedidas pelo governador, e em agosto de 2021 as anulou, atendendo a pedido do Ministério Público Federal (MPF) em ação civil pública. A decisão, no entanto, afeta apenas alguns garimpos legalizados – a atividade ilegal seguirá firme, ainda mais com a crise econômica gerada pela pandemia e com a valorização do ouro nos últimos anos.

Alzira, a cozinheira, não demonstra muito carinho pelos políticos locais que se dizem do lado dos garimpeiros.

“Aquele prefeito diz que ‘eu fui preso por conta dos garimpeiros’ mas ele não fez nada para a gente,” conta ela, que diz esperar que mais licenças sejam concedidas para a atividade se tornar legal.



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