Chocadas com o resultado do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que absolveu o coronel e hoje deputado estadual Ubiratan Guimarães, as dezenas de organizações de direitos humanos que estavam no plenário sequer conseguiram se manifestar quando o presidente do Tribunal anunciou o resultado da votação. Cerca de 30 minutos depois do final da sessão, já do lado de fora do Palácio da Justiça, foi que os defensores de direitos humanos falaram.
“O principal órgão judicional do Estado de São Paulo acaba de absolver o principal responsável pelo massacre do Carandiru. Isso gera uma vergonha internacional e certamente expõe a imagem do Brasil no exterior”, disse o advogado Ariel de Castro Alves, coordenador estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos. “Agora qualquer grupo de policiais pode invadir unidades da Febem ou presídios e matar adolescentes ou presos porque tem uma licença para matar, estarão agindo no estrito cumprimento do dever legal, com base na decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo”, protestou Alves, um dos poucos que ficou no local após o resultado.
As entidades lembraram os parentes das vítimas e os sobreviventes do massacre do dia 2 de outubro de 1992, apontando a sensação de impunidade que será gerada na sociedade. Elas pretendem comunicar a decisão do Órgão Especial à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), que em 2000 determinou que o Brasil deveria acabar com a impunidade nesse caso, condenando os responsáveis pelo crime do Carandiru. Uma denúncia também deve ser apresentada à Corte Interamericana, esfera superior à Comissão, o que pode colocar o Brasil novamente no banco dos réus do sistema internacional de direitos humanos.
A Anistia Internacional disse que o resultado do julgamento foi um choque para a comunidade de direitos humanos, afirmando que o sistema de Justiça brasileiro falhou em proteger os padrões internacionais de direitos humanos, permitindo que sérias violações permaneçam impunes. Em seu relatório sobre o massacre, divulgado em 1993, a organização identificou diversas falhas no comando da operação para garantir que o uso da força fosse evitado. Entre elas, ignorar os códigos internacionais de prática no uso da força e de armamentos, permitir policiais entrarem no presídio sem a identificação de seus nomes nos uniformes, e escolher tropas com recordes de ações com vítimas fatais para conter uma rebelião.
O Centro de Justiça Global também divulgou uma nota pública, onde afirma que o entendimento equivocado de 20 desembargadores “se constitui em mais uma estratégia para garantir a impunidade dos responsáveis pelo maior massacre de presos do Brasil”. Lembrou que os Policiais Militares dispararam contra os presos com metralhadoras, fuzis e pistolas automáticas, visando principalmente a cabeça e o tórax, e que a perícia concluiu que só 26 detentos foram mortos fora de suas celas, sendo que vários detentos mortos estavam ajoelhados, ou mesmo deitados, quando foram atingidos.
Ao final da operação policial foram encontrados 111 detentos mortos: 103 vítimas de disparos e 8 que morreram devido a ferimentos promovidos por objetos cortantes. Não houve policiais mortos. Um levantamento das vítimas também mostrou só 9 presos tinham recebido penas acima de 20 anos. 66% dos detentos recolhidos na Casa de Detenção eram condenados por assalto. Os casos de homicídios representavam 8%, contrariando a tese da defesa de que “homens de alta periculosidade” tinham enfrentado a polícia naquele dia.
A organização cobrou ainda a responsabilização dos demais envolvidos no massacre, nominalmente o ex-governador Luiz Antônio Fleury Filho e o então Secretário da Segurança Pública, Pedro Franco de Campos, que sequer foram investigados. Segundo o deputado estadual Renato Simões, membro da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo – e colega de plenário, portanto, do coronel Ubiratan – o resultado do julgamento se constituirá numa das principais páginas da trágica história da impunidade no país.
“Filigranas jurídicas produzidas a partir de chicanas das defesas dos oficiais e policiais acusados se sobrepõem à busca da verdade dos fatos e da exemplar condenação dos responsáveis”, disse Simões. “No Brasil, massacres contra pobres, índios, negros, sem-terra e outros segmentos marginalizados são fadados a permanecer impunes, e o Judiciário brasileiro ainda não conseguiu quebrar essa cadeia da impunidade que envolve investigação policial, perícia criminal, falhas da legislação penal e dos tribunais”, declarou o deputado petista.
“A alegação de que o Coronel agiu no estrito cumprimento do dever é inaceitável diante da caracterização de 111 execuções sumárias. Ao acatar essa argumentação, o Poder Judiciário deixa de contribuir com o aperfeiçoamento das instituições policiais e com o combate da violência cometida por seus membros”, diz a Justiça Global.
Para a presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, a deputada Iriny Lopes (PT-ES), à luz da Constituição Federal, dos compromissos assumidos pelo Brasil em convenções internacionais e leis internas, “essa absolvição é aberrante e contraditória, reforçando a necessidade de o Poder Judiciário incorporar em sua estrutura e nos seus métodos instrumentos capazes de garantir, em suas decisões, o respeito aos fundamentos da Justiça”. “Nenhuma razão técnica sobre a forma do juri justifica tamanha impunidade. Nunca é demais lembrar que os direitos humanos são de todos, e o fato de as vítimas serem sentenciadas por crimes não justifica que policiais cometam assassinatos. Violações contra os direitos humanos como essa afrontam toda a humanidade e exigem que as instituições de Estado restabeleçam os princípios de dignidade humana desrespeitados”, disse em declaração pública divulgada nesta quinta-feira.
Mobilizações
Na sexta-feira (17), às 19 horas, durante o lançamento da quarta edição do Guia de Direitos Humanos da Cidade de São Paulo, na Câmara Municipal, ocorrerá um ato de repúdio à absolvição do Coronel Ubiratan Guimarães, com a presença do ministro Paulo Vanuchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH).
Já na próxima segunda-feira (20), acontecerá nas escadarias da Catedral da Sé, em São Paulo, às 15h, outro ato público de repúdio à impunidade no massacre do Carandiru e aos demais cujos responsáveis ainda não foram condenados.
Na quinta-feira, dia 23, a Comissão de Direitos Humanos da Assembléi
a de São Paulo também vai debater a questão, em reunião no Plenário José Bonifácio, às 14h30. Serão convidados juristas, ativistas dos movimentos de direitos humanos, entidades e movimentos sociais. “É preciso que nos mobilizemos, sempre, contra decisões como essa que colocam nosso país no execrável patamar de campeão da impunidade”, declarou o presidente da Comissão, deputado Ítalo Cardoso, para quem o reconhecimento do estrito cumprimento do dever legal do comandante do massacre significa um apoio explícito às ações de policiais violentos, prepostos do Estado.
Da Agência Carta Maior