Reforma agrária, hoje, é muito mais que distribuir terra. Fundamental para a formulação de políticas agrárias, o recorte de diversidade ganhou espaço de destaque em seminário realizado nesta segunda-feira (6) que antecedeu a abertura oficial da II Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (CIRADR) da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que conta com o apoio do governo brasileiro.
A construção de políticas de Estado que possam garantir o reconhecimento e a reprodução sociocultural de povos quilombolas esteve no centro do debate “Economias e Desenvolvimento Rural das Comunidades Quilombolas”. De acordo com Renata Leite, coordenadora do Programa de Promoção de Igualdade de Gênero, Raça e Etnia do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o governo definiu, dentro dessa perspectiva, duas linhas mestras de ação: uma voltada para a questão da posse das terras – mais concentrada no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – e outra mais ligada ao incremento de atividades produtivas.
No tocante à segunda linha, uma pesquisa sobre demanda por assistência técnica entre quilombolas, feita ainda em 2003 dentro do contexto do Programa Fome Zero, atestou a força das matrizes produtivas já existentes nas comunidades: 43% dos pedidos se concentraram em projetos de capacitação para atividades de artesanato e agroextrativismo que já vêm sendo desenvolvidas. Não obstante, o levantamento apontou também fragilidades em diferentes segmentos como na comercialização (ausência de estudo de mercado, atuação exploradora de atravessadores, falta de certificação) e no que se refere a créditos (falta de informação, desinteresse dos agentes financeiros, falta de documentação).
Existe ainda uma dificuldade central no que se refere ao modelo de sustentabilidade econômica. “Os técnicos da Emater [Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural] rechaçam a construção de Casas de Farinha, mas mais da metade das comunidades pedem a instalação desses estabelecimentos. A demanda ainda é grande. Aí vem a pergunta: qual é o tipo de assistência técnica que se quer?”, coloca Renata.
Às incertezas de rumo, somam-se incongruências conceituais importantes. “Temos dificuldade nessa discussão sobre agricultura familiar. De qual família estamos falando? A família quilombola não é nuclear [pai, mãe e filhos], é extensiva; ultrapassa o limte da casa, do lar”, adiciona Oriel Rodrigues, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). “Quilombos não são assentamentos. Muitos projetos no passado não deram certo porque não respeitaram a dinâmica própria dos quilombolas. Técnicos exigem urgência na produção e parece que os quilombolas são desinteressados”, emenda. A própria idéia de desenvolvimento, para Rodrigues, é “meio estranha”, por trazer um componente implícito de acúmulo material. “Queremos apenas garantir a nossa reprodução socio-cultural”.
O representante dos quilombolas chama atenção também para o assédio que eles vêm sofrendo de prefeituras espalhadas pelo País. Isso porque o reconhecimento da existência de territórios tradicionais garante o recebimento de subsídios para serviços sociais. “Estamos em evidência e precisamos tomar cuidado, inclusive no controle dos pesquisadores de quilombolas, que vêm se multiplicando nos últimos tempos”, afirma. Liderança do povo Ivaporunduva, do Litoral Sul de São Paulo (região de Eldorado), Rodrigues reivindica uma maneira de regular o acesso aos conhecimentos tradicionais e às técnicas de manejo ambiental – objeto de debate na 8a Conferência das Partes sobre Diversidade Biológica (COP-8) da Organização das Nações Unidas (ONU), que terá início no próximo dia 20 de março.
Para representantes quilombolas, no entanto, os problemas principais ainda residem na questão da posse da terra. “Houve avanços, mas a política de reparação do Estado ainda não foi assumida. O que vemos é uma política deste governo, e não de Estado”, completa o representante da Conaq. Representantes dos estados de Sergipe, Pernambuco, Maranhão e Bahia endossam a visão dele de que foi aberto espaço para participação, mas os resultados esbarram no problema da desintrusão (retirada de invasores privados) das terras. Apenas três títulos de terras desintrusadas foram concedidos nos últimos três anos.
“É pouco porque a demanda é muito grande. São cerca de cinco mil comunidades”, reconhece Renata, do MDA. Ela explica, porém, que até 2003, não havia instrumentos normativos a respeito de quilombolas. “Foi feito todo um trabalho para a capacitação do corpo técnico do Incra. Contratamos antropólogos no último concurso. Alguns desses processos de estruturação foram concluídos apenas no final do ano passado. Mas já recebemos 406 processos e 27 já foram reconhecidos”. A coordenadora sublinha também o investimento de R$ 12 milhões – dos quais 70% foram repassados diretamente para entidades para serem utilizados em regime de autogestão. “É pouco, mas há três anos não havia um só centavo. Desconsiderar tudo isso é desrespeitar a própria luta quilombola”. A meta para 2006, segundo ela, é de 80 reconhecimentos e 20 titulações desintrusadas.
Além do corpo técnico, Renata observa que a consolidação de espaços democráticos participativos, como os conselhos em seus diferentes níveis, deve garantir a política de Estado para os quilombolas, os quais certamente reagiriam às ameaças de retrocesso. Ela admite, porém, que a alterações legislativas (como a isenção de Imposto Territorial Rural (ITR) e o estabelecimento de regras para resolução de casos de sobreposição) precisam avançar. Enquanto isso, o PFL mantém no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra o decreto 4.887, de 2003 (que regulamentou o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por quilombolas).
Da Agência Carta Maior