O ministro Miguel Rossetto (Desenvolvimento Agrário) fez nesta quinta-feira (9) um duro discurso contra a lentidão da Câmara dos Deputados para votar em segundo turno a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438, que prevê o confisco de propriedades onde for encontrada a prática de trabalho escravo.
Ao falar no Seminário Internacional “Trabalho Escravo Contemporâneo, Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural”, que ocorre durante a Conferência da FAO, em Porto Alegre, Rossetto afirmou que o governo está empenhado em pressionar o legislativo a acelerar a tramitação da medida.
“Uma das coisas que mais me dá perplexidade é a sensação de impotência frente à absoluta irresponsabilidade de um setor do Congresso que flerta com essa situação e que cria condições políticas para que a PEC não seja avaliada em segundo turno”, disse o ministro.
Considerada medida fundamental para o combate ao trabalho escravo, a PEC já foi aprovada no Senado, em 2003, e na Câmara, em primeiro turno, em agosto de 2004, mas desde então a bancada ruralista tem atuado para barrar sua tramitação. Depois de votada em segundo turno, a proposta terá de voltar ao Senado porque houve alterações em seu texto final, também por exigência dos ruralistas.
Mas não há prazo para que isso aconteça. Há cerca de 30 dias, os ministros Luiz Marinho (Trabalho e Emprego), Paulo Vannuchi (Direitos Humanos) e Jacques Wagner (Articulação Política) se reuniram com o presidente da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), e solicitaram que a PEC fosse apreciada. Defensor da proposta, Rebelo chegou a pedir à assessoria da presidência da Casa que deixasse tudo pronto para a PEC entrar na ordem do dia de votação. Mas o “sim” não veio até hoje.
Dentro do Congresso, a avaliação é que ainda faltam votos para que não haja um fiasco e a proposta seja recusada. Quarta-feira (8), em Brasília, a bancada ruralista, comandada por deputados como Ronaldo Caiado (PFL-GO) e Kátia Abreu (PFL-TO), promoveu uma reunião em que discutiu a PEC 438. Ficou decidido que os deputados não darão apoio à votação em segundo turno.
Segundo o deputado Tarcísio Zimmermann (PT-RS), relator da PEC na Câmara, sem a benção desses parlamentares, é improvável que os líderes do PSDB, do PFL e do PP entrem em acordo para que a proposta seja votada. É nesses partidos que se concentra a maioria dos ruralistas.
Trajetória
A história de tramitação da PEC 438 revela o tipo de obstáculos que ainda podem vir pela frente. A proposta de confiscar terras com trabalho escravo foi apresentada, pela primeira vez, em 1995 na Câmara, e em 1997 no Senado.
Depois da aprovação dada pelos senadores, em 2003, a PEC encontrou um terreno minado na Câmara. Só obteve impulso após o assassinato de três auditores fiscais do trabalho e de um motorista em Unaí (MG), em janeiro de 2004.
O relato que segue é de Zimmermann. Segundo ele, esse trágico episódio possibilitou a criação de uma comissão especial da Câmara para discutir a PEC. A idéia inicial era preservar a redação do Senado, “que não era tão boa, mas era razoável”, para que a proposta não tivesse de retornar àquela Casa.
“Mas na hora de votação em segundo turno, a bancada ruralista decidiu bloquear”, recorda o deputado. “Alegou que o texto não contemplava imóveis urbanos, apenas rurais, e eram contrários a que as terras expropriadas fossem destinadas às famílias vítimas do trabalho escravo. E na verdade isso era apenas uma recomendação, não uma obrigação”.
Foi então preparada uma nova redação em uma emenda aglutinativa, e finalmente firmado um acordo para que a proposta fosse votada em segundo turno. Mas, segundo Zimmermann, os ruralistas continuaram impondo obstáculo para uma apreciação definitiva.
“Eles protestaram contra a publicação da lista de empregadores punidos por uso de trabalho escravo e disseram que tinham receio de que as propriedades flagradas tornassem-se alvos do MST”, disse o petista, que também participa do seminário internacional sobre o tema aqui em Porto Alegre.
Mas não foram apenas os ruralistas que criaram obstáculos. Ao tentar mudar as regras legislativas e se reeleger para a presidência da Câmara, no início de 2005, o deputado João Paulo Cunha (PT-SP) reduziu seus esforços em prol da PEC, diz Zimmermann, numa tentativa de obter votos dos ruralistas.
A vitória do hoje ex-deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) à presidência da Câmara, em fevereiro daquele ano, dificultou ainda mais as coisas. E o estouro das denúncias sobre o mensalão tiraram definitivamente a PEC da ordem do dia.
“Não podemos desistir. O governo tem de dar prioridade, a presidência da Câmara está disposta, e a pressão popular em ano eleitoral é mais valorizada dentro do Congresso”, afirma o petista.
Segundo o ministro Rossetto, é fundamental combater a impunidade. Para ele, as causas estruturais do trabalho escravo não tiram a responsabilidade “desses criminosos, que devem ser punidos com rigor”. “A Câmara alterou o texto do Senado e ele terá de voltar, num mecanismo claramente protelatório. O país tem o direito de ter um instrumento forte para erradicar o trabalho escravo. A PEC é traz uma punição adequada para punir esses crimes contra a humanidade”, finalizou.
Ao longo do seminário, também falou a inglesa Angelika Berndt, representante da ONG Anti-Slavery. Criada em 1839, na Inglaterra, sua associação nasceu para combater o tráfico negreiro há dois séculos, e hoje luta contra o que ela chama de “escravidão moderna”.
Para Berndt, a existência de “punição rigorosa” para quem pratica trabalho escravo é fundamental para o combate a esse crime. Ela estima em 12 milhões o número de pessoas, entre homens, mulheres e crianças, forçadas a trabalhar no mundo hoje.
Marcel Gomes é membro da ONG Repórter Brasil
Da Agência Carta Maior