A vida não é fácil na terra do povo pankararu, encravada no sertão pernambucano. Lá a natureza deixou a seca, enquanto outros problemas o homem se encarregou de trazer. Homologada em 1987, sua área corresponde a quase metade da delimitada originalmente pelo Estado. E com as melhores terras nas mãos de posseiros, aos indígenas restou plantar nas serras. Conflitos tornaram-se uma realidade constante.
Aquela situação foi marcando a vida de Manoel Alexandre Sobrinho, o Bino Pankararu. Até que um dia, conta ele, tomou a decisão: "se for para arriscar a vida, melhor arriscá-la pelo mundo." Deixou mãe chorando na aldeia e, após 15 dias num caminhão pau-de-arara, desceu na cidade de São Paulo. No início estranhou bastante; tinha medo de se perder, medo das pessoas. Mas, entre idas e vindas, foi se acostumando. No final da década de 70, instalou-se definitivamente na favela do Real Parque, zona sul paulistana.
A vida difícil na aldeia empurrou Bino Pankararu para a cidade grande, realidade comum entre os índios da sua etnia |
Sua história não é exceção entre os indivíduos da etnia. Nesta mesma favela vivem cerca de 500 pankararus, segundo ele próprio diz. São pedreiros, seguranças, empregadas domésticas. E, quando conseguem algum espaço, reúnem-se para realizar os rituais e danças da etnia. Bino Pankararu é o presidente da Associação Indígena SOS Comunidade Indígena Pankararu, que representa os anseios desses índios que vivem na cidade. Entre outras reivindicações, buscam atualmente um espaço na favela para manifestarem sua tradição cultural. A Associação estima que mais de mil pankararus estejam morando na região metropolitana de São Paulo. Esta é apenas uma das, no mínimo, dez etnias indígenas com representantes na capital paulista.
Também não é exceção a história dos pankararus frente à realidade atual dos povos indígenas brasileiros. A Fundação Nacional do Índio (Funai) estima que existam entre 100 e 190 mil índios vivendo fora das terras indígenas, porém os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram o quanto distante podem estar esses números em relação à realidade atual. Seguindo o critério da auto-identificação, o IBGE registrou, no Censo 2000, 383 mil índios vivendo em zonas urbanas, o que corresponde a 52% do total. A auto-identificação, contudo, muitas vezes é apontada por antropólogos, gestores e até mesmo por indígenas como critério insuficiente para ser o único na definição da condição de índio de uma pessoa.
Discussões à parte, algumas estimativas regionais ajudam a dimensionar a amplitude da questão. São 18 mil em Manaus, segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), enquanto outras fontes apontam para até o dobro desse número. Em Boa Vista, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) estima mais de dez mil índios ou descendentes, inclusive morando no lixão da cidade. E a lista vai longe: kaingangues em Porto Alegre (RS) e Chapecó (SC); apurinãs, kaxinawás e manchineris em Rio Branco (AC). Jurunas, mundurukus e outros em Belém (PA). Isso sem contar tantas outras e um sem-número de cidades onde quase nada se sabe sobre as etnias presentes.
Para o antropólogo Stephen Baines, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), há um crescimento na quantidade de pessoas assumindo sua identidade indígena nas cidades. "É um fenômeno recente, relacionado a fatores como o aumento da politização em várias comunidades de índios urbanizados", afirma. O pesquisador Raimundo Nonato, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), acompanha as mais de 15 etnias em Manaus há anos e também nota sinais dessa mudança. "Pessoas que sempre se identificaram pelo nome em português agora pedem para serem chamadas pela sua denominação indígena", revela.
Cada vez mais, comunidades de índios nas cidades buscam meios para serem reconhecidas como populações diferenciadas e terem, conseqüentemente, acesso a políticas atentas às suas especificidades em áreas como saúde, cultura, trabalho e educação. Tal situação vem atraindo a atenção de outros segmentos sociais, e aumentando a pressão para que os índios urbanizados passem a integrar a pauta das políticas indigenistas do país. Um desafio para gestores e também para a sociedade, que, em face desta recém-descoberta realidade, se vê obrigada a repensar seus conceitos sobre o que significa ser índio e sobre como estas populações devem ser tratadas.
Índio na cidade?
Explicar as razões do deslocamento indígena para a cidade não é tarefa simples. Pesquisadores e lideranças de diversas etnias apontam para um amplo mosaico de fatores, associados a diferentes situações de contato com sociedades regionais. Busca por trabalho, por melhores condições de acesso à saúde e educação, perda de terras tradicionais e conflitos internos nas aldeias – estimulados, muitas vezes, pelo crescimento populacional – são apenas alguns exemplos. Também são diversas as formas de inserção dessas populações em território urbano; há desde indivíduos que migram isoladamente até grupos familiares que se deslocam inteiros para bairros específicos, seguindo uma ampla rede de parentescos. Nesse mar de diversidade, existem inclusive os casos de terras indígenas que foram "engolidas" pelo crescimento urbano, tendo seu cotidiano relegado a uma série de peculiaridades. A aldeia de Dourados (MS), que abriga 11 mil índios – principalmente guaranis kaiowás – e que vive às voltas com suicídios e desnutrição infantil, talvez seja o exemplo mais visível dessa situação.
Na favela do Real Parque, vivem cerca de 500 índios da etnia pankararu, que lutam, entre outras coisas, por um espaço para realizar suas danças e rituais |
Quando se pensa em índio, natureza é quase sempre uma associação imediata no imaginário nacional. Um estereótipo que, ligado a outros como o da nudez e do corpo pintado, colabora com a idéia de que o índio "deixa de ser índio" quando vem para território urbano. Para Baines, a dúvida popular quanto a ser possível preservar a comunidade indígena no contexto da cidade "baseia-s
e no preconceito humilhante de que o índio pertence à mata e deve permanecer em sua aldeia." Nesta discussão, o próprio termo `índios urbanos` – designação normalmente utilizada para estas populações – é criticado por alguns sob a alegação de reforçar a associação da identidade indígena com o pertencimento a este ou aquele lugar.
Baines acredita a falta de estudos sobre estas populações é, em grande medida, reflexo deste preconceito. "Criou-se assim uma situação de invisibilidade, como se os índios urbanizados simplesmente não existissem", raciocina. A internalizarão desta mentalidade, motivada pela discriminação, colabora com este quadro: são comuns, em várias cidades, histórias de indígenas que buscam dissimular sua origem se dizendo bolivianos, peruanos ou japoneses. "Cheguei a conhecer uma índia pareci em Cuiabá que fazia permanente para deixar o cabelo crespo, numa tentativa de dissimular sua origem étnica", afirma Maria Fátima Machado, pesquisadora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Para ela, toda essa conjuntura tem influência na lacuna de políticas públicas para estas populações. "A Funai é omissa, não aceita que eles sejam realmente índios", afirma. "Mesmo porque reconhecer isso significa apontar para a necessidade de uma redistribuição dos seus já escassos recursos."
Tanto Funai quanto Fundação Nacional de Saúde (Funasa), os dois principais órgãos governamentais de assistência às populações indígenas, são constantemente cobrados pela lacuna de ações que levem em conta os chamados "índios desaldeados". Além disso, é possível contar nos dedos as iniciativas federais, estaduais e municipais em andamento focalizadas nessa realidade específica.
A discussão sobre o reconhecimento dos índios urbanizados no Brasil começa logo na esfera mais elementar: a emissão pela Funai da carteira de identidade indígena também para aqueles que vivem na cidade, assim como do registro de nascimento indígena para os índios nascidos em território urbano. Apesar de existirem hoje alguns grupos urbanizados articulados com a entidade para estes procedimentos, há ainda um grande número de índios nas cidades denunciando a recusa da Funai em fornecer documentos comprobatórios quanto a sua identidade étnica. Definições em relação ao tema tornam-se cada vez mais urgentes, devido inclusive ao crescimento de políticas de cotas e bolsas de estudo para índios em concursos públicos e instituições de ensino.
O Estatuto do Índio estabelece que é indígena "todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional." Desde 2002, o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), documento que estabelece a auto-identificação como critério fundamental na determinação da identidade indígena de um grupo.
Ainda sobre a documentação, há também os casos daqueles que, vindos de aldeias, enfrentam problemas para terem sua carteira de identidade indígena – muitas vezes o único tipo de identificação que possuem – aceitas na hora de abrir contas em bancos, fazer compras ou mesmo acessar serviços públicos. Um maior esclarecimento quanto à validade do documento para tais situações é tema de debates constantes entre lideranças de índios e poder público.
Para o advogado Raul do Valle, do Instituto Socioambiental (ISA), a legislação indigenista brasileira foi concebida para ser aplicada a comunidades que vivem em seus territórios tradicionais, e portanto há incongruências e muitas lacunas quando se discute a situação dos que moram em centros urbanos. "Isso fica evidente, por exemplo, quando se discute o papel da Funai na assistência dessas populações", comenta. A Funai trabalha atualmente na elaboração de um censo indígena nacional, iniciativa inédita no país. A idéia é, a parir dele, construir critérios mais sólidos para atuar no reconhecimento de quem é índio no Brasil e na formulação de uma política indigenista mais abrangente.
Aldeia urbana
O Estado do Mato Grosso do Sul detém hoje a segunda maior população de índios do país, situação que se reflete em Campo Grande, a sua capital. Uma das cidades de mais notória presença indígena no país – segundo lideranças locais, lá vivem entre sete e nove mil índios – Campo Grande destaca-se também pela implementação de políticas públicas pioneiras envolvendo índios urbanizados. Lá foi criado, no final da década passada, o Loteamento Social Marçal de Souza, hoje com cerca de 170 famílias da etnia terena. Com casas cujo telhado lembra o das ocas tradicionais deste povo, um memorial de cultura indígena, escola com projetos de resgate cultural e até mesmo uma rádio comunitária, Marçal de Souza é popularmente conhecida pela desafiadora qualificação de a "primeira aldeia urbana do Brasil".
O Loteamento Social Marçal de Souza, em Campo Grande, popularmente conhecido como a primeira aldeia urbana do Brasil, abriga cerca de 170 famílias indígenas |
De acordo com Enir Bezerra, líder terena do movimento pela criação de Marçal de Souza, a história da comunidade remonta à década de 70, quando foi doado à Funai um terreno em Campo Grande para a construção de um hospital indígena. "Nada tinha sido feito, posseiros haviam entrado na terra e eventualmente iriam ganhá-la na justiça", conta ela. "Foi quando surgiu a idéia de invadir." Em 9 de junho de 1995, às 4 horas da manhã, 20 famílias terenas ocuparam o local, número que em poucos dias subiu para 70. Sem água ou estrutura, a área tornou-se uma verdadeira favela indígena. Nos anos subseqüentes, a prefeitura construiu casas e regularizou a situação.
Para Enir Bezerra, a aldeia urbana resgatou a auto-estima de seus moradores |
Para Enir, a aldeia urbana foi importante no resgate de diversos valores culturais dos índios da cidade, e também da auto-estima dos seus moradores. "Muitos, que tinham vergonha de serem índios, hoje têm orgulho", afirma. Ela l
embra com carinho de experiências como, por exemplo, a cozinha coletiva que durante algum tempo funcionou na comunidade. "Eu sempre digo que, para o índio, tudo é o hoje, e o hoje no coletivo", diz. "É uma característica muito importante da cultura indígena."
Além de Marçal de Souza, Campo Grande também possui, na periferia da cidade, uma outra experiência habitacional semelhante: a aldeia Água Bonita – esta criada pelo Governo do Estado – que abriga cerca de 60 famílias de cinco etnias distintas. Há também um assentamento indígena no bairro Jardim Noroeste, com 80 famílias que lutam pela regularização da área.
Apesar destes avanços, um estudo realizado na cidade por Vanderléia Mussi, pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq), mostra o longo caminho que, via de regra, os índios urbanizados ainda precisam trilhar para uma inserção mais igualitária no mercado de trabalho urbano. Em Marçal de Souza, aponta o estudo, 71% dos trabalhadores recebem um salário mínimo ou menos. Na aldeia Água Bonita, o desemprego atinge 48% da força de trabalho.
Em maio de 2005, os índios da cidade conquistaram um espaço de atuação política inédito no país, com a criação do Conselho Municipal dos Direitos e Defesa dos Povos Indígenas de Campo Grande. Cabe à entidade, composta por lideranças de nove etnias, elaborar políticas municipais para os índios e orientar o poder público em sua aplicação. "O Conselho é um exemplo para o Brasil", comemora o terena Adierson Mota, presidente da entidade. Agora vamos decidir o que é melhor para a nós e levar as reivindicações diretamente para o prefeito." A contabilização dos índios em Campo Grande, o cotas para indígenas em concursos públicos e na construção de moradias municipais, a regularização de situações relacionadas à documentação de indígenas urbanizados e projetos de capacitação profissional são algumas das reivindicação prioritárias atualmente em discussão.
Autor do projeto que criou o Conselho, o vereador Athayde Nery (PPS) acredita que os índios precisam entender como funciona a distribuição de riquezas do município para, organizados, assumirem a reivindicação e formulação das políticas indigenistas. "Não se pode mais monitorar e tutelar", defende. "Nós estamos conclamando para que o índio deixe de ter um tratamento de criança, de coitadinho."
O índio terena Adierson Mota é presidente da entidade pioneira Conselho Municipal dos Direitos e Defesa dos Povos Indígenas de Campo Grande |
Saúde e educação
Em todo o Brasil, a busca por melhores condições de atendimento à saúde é hoje uma das principais razões apontadas para a fixação de indivíduos indígenas na cidade. Situações como a de Eliete de Oliveira, da etnia terena, moradora de Campo Grande. Hoje mãe de quatro filhos, Eliete perdeu a mais velha, vítima de leucemia, logo após deixar a aldeia. "A doença só foi identificada na cidade, já em estado avançado. Se tivesse trazido mais cedo provavelmente teria sido diferente", lamenta.
O sistema de saúde urbano, porém, nem sempre é acolhedor a essas pessoas. Num verdadeiro jogo de empurra-empurra, são comuns histórias de índios não atendidos em postos do Sistema Único de Saúde (SUS) sob a alegação de que responsabilidade seria da Funasa – entidade que, por sua vez, tem como política oficial não atender os índios da cidade. Além disso, quando se pensa em saúde indígena urbana, é preciso levar em conta algumas peculiaridades como, por exemplo, a resistência cultural apresentada por algumas etnias na exposição do corpo feminino, dificuldades de comunicação, situações de conflito com a medicina tradicional dos diferentes povos e a alta incidência de certas doenças em algumas etnias.
José Maria de França, diretor do Departamento de Saúde Indígena da Funasa, afirma que a entidade realiza, desde 2003 e em todos os Distritos Sanitários Indígenas do país, o treinamento de profissionais do SUS para que os municípios atendam às comunidades indígenas urbanizadas, levando em conta as suas especificidades. Acreditamos que seria inclusive o mais cômodo para eles, ao invés de se deslocarem para postos de atendimento nas aldeias", coloca. França admite, no entanto, que ainda persiste muita desinformação sobre quem deve atuar junto aos índios urbanizados, e situações onde há resistência do SUS local em assumir esse tipo de atendimento.
Segundo José Maria de França, desde 2003 os profissionais do SUS recebem capacitação para atender índios das cidades |
Assim como na área da saúde, comunidades de índios urbanizados também reivindicam políticas educacionais diferenciadas. A Constituição de 1988 garantiu aos povos indígenas o direito a uma política de educação específica, regulamentada hoje em torno de atributos como o uso da língua materna e a construção de currículos adaptados à tradição dos povos. A rigor, não existe no Brasil nenhum tipo de escola urbana que se enquadre nos critérios do Ministério da Educação (MEC) para a questão. A criação de escolas diferenciadas nas cidades é encarada, por índios e não-índios, como estratégia fundamental na reprodução da cultura e identidade dos diversos grupos urbanos. O que exatamente se espera delas em termos pedagógicos, no entanto, permanece uma questão em aberto.
Kleber Gesteira, coordenador-geral de Educação Escolar Indígena do MEC, diz que a entidade está discutindo a melhor forma de lidar com o tema, mas que ainda não existe nenhuma ação concreta neste sentido. O órgão tem como incumbência coordenar e acompanhar a formulação e a implementação de políticas educacionais para as comunidades indígenas, cuja responsabilidade efetiva de implantação é dos estados e municípios. Entre as dificuldades para a definição de diretrizes sobre o tema, Gesteira aponta a falta de identificação sobre a quantidade e localização dos índios urbanizados, a diversidade de etnias e os diferentes graus de domínio da lí
ngua materna e portuguesa existentes entre os índios das cidades. "Temos orientado os gestores que nos procuram a se guiarem pelos parâmetros do MEC para a educação escolar indígena, e, na medida do possível, estabelecerem ações que confluam com eles", diz.
Isto é o que tenta fazer atualmente a Escola Municipal Sullivan Silvestre Oliveira, fundada em 1997 dentro da aldeia urbana Marçal de Souza. Ela possui atualmente 385 alunos – sendo aproximadamente 30% da comunidade – e três professores indígenas. Segundo Lucimar Marques, a sua diretora, um dos principais enfoques da escola é trabalhar questões que envolvam diversidade cultural. "No início, se perguntávamos na classe quem era índio, ninguém se manifestava", revela a terena Maria Auxiliadora Bezerra, professora de educação infantil. "Hoje em dia até quem não é índio levanta a mão."
Há alguns anos, a escola chegou a ter a matéria Língua e Cultura Terena inclusa na sua grade horária. Hoje oferece aos alunos indígenas uma oficina sobre o tema fora do horário de aula. As vagas, porém, ainda são bastante limitadas, e há problemas como a falta de material didático. Em outros tempos, uma oficina do gênero também era ministrada à noite para os adultos da comunidade, mas foi interrompida.
Todos os anos, no Dia do Índio, a escola realiza a Feira Cultural Indígena, onde os alunos fazem apresentações artísticas e expõem trabalhos envolvendo artesanato, plantas medicinais, comidas típicas e outros aspectos envolvendo culturas indígenas.
Escola Municipal Sulivan Silvestre Oliveira, que atende Marçal de Souza. Ela oferece uma oficina de língua e cultura terena, mas faltam vagas e material didático |
Em Manaus, o prefeito Serafim Corrêa (PSB) assumiu durante a campanha, em 2004, o compromisso de implantar uma política educacional indígena na cidade, iniciativa inédita no país. Um levantamento da Secretaria Municipal de Educação e Cultura (Semed) identificou 273 crianças índias fora das escolas, em cinco comunidades urbanizadas. A proposta é criar oito escolas diferenciadas para elas, além de três centros de revitalização lingüística e cultural para os alunos matriculados nas escolas regulares freqüentarem fora do período de aulas. Foi anunciada para este ano a contratação de dez professores indígenas que trabalharão no projeto. De acordo com a pedagoga Lúcia Maia, responsável pela condução dos trabalhos, objetivo é iniciar 2006 com proposta curricular, material didático e plano de ação já definidos.
Cidade ou aldeia?
Se, por um lado, recentes conquistas pontuais são amplamente comemoradas, há também, entre lideranças de várias etnias, uma apreensão sobre o impacto que a adoção de políticas sistemáticas nas cidades talvez gere na realidade indígena do país. "A construção de aldeias urbanas pode ter uma conseqüência muito ruim, que é a saída de pessoas das terras tradicionais", afirma Hilário da Silva, da etnia kadiweu, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena do Mato Grosso do Sul.
Enir Bezerra reconhece que a criação de Marçal de Souza gerou desaldeamento. "E é isso o que os fazendeiros querem", coloca. Ela diz que, nos dias de hoje, não faria mais um outro trabalho do gênero na cidade. "Minha luta agora mudou, está na hora de discutirmos uma política para que o índio não precise sair da sua aldeia", diz. Para ela, a vida na aldeia é de uma grande liberdade, enquanto na cidade o índio está sempre confinado a um pedacinho de terra. "Se houvesse condições, eu mesma voltaria para a minha."
O vereador Athayde Nery (PPS): “Não se pode mais monitorar e tutelar. Estamos clamando para que o índio deixe de ter um tratamento de criança" |
Jecinaldo Saterê Mawé, coordenador-geral da Coiab, argumenta que a vida do índio na cidade muitas vezes é pior do que no campo, estando ele sujeito a perigos como a prostituição e as drogas. "É preciso fortalecer o atendimento na outra ponta, nas aldeias. Senão vamos criar um problema sério", atesta. Para o vereador Athayde Nery, é necessário, mais do que nunca, desenvolver uma política que envolva todas as esferas do governo, "de forma que o índio seja tratado com dignidade na cidade e tenha condições de permanecer no meio rural, caso deseje."
*Colaborou Carolina Motoki