O inesperado surto de febre aftosa em rebanhos do Centro-Oeste do Brasil, no final de 2005, despertou no mundo uma onda de preocupação que foi bem alem do fato em si. Mais de 50 países fecharam suas portas à carne bovina brasileira. Num setor que ia bater mais um recorde de exportação, o clima despencou da euforia para o desespero. Pela primeira vez, o ‘mercado’ externou sua desconfiança em termos que ultrapassam a mera precaução face ao risco sanitário. Grandes jornais internacionais não pouparam manchetes para concentrar numa única reprovação o desastre ambiental, o descontrole sanitário e a vergonhosa escravização praticada por expoentes do latifúndio brasileiro.
Por ter sido um dos primeiros países da comunidade internacional a reconhecer a existência da chaga do trabalho escravo neste início do século 21, o Brasil tem assumido, interna e externamente, uma colossal responsabilidade, explicitada inclusive em política de Estado bem como em compromisso internacional: com a aprovação do Plano Nacional de Erradicação de março de 2003, a eliminação do trabalho escravo passou a ter status de meta presidencial, a ser alcançada até o final do atual mandato. Mesmo compromisso foi firmado perante a Corte de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), e confirmado em Genebra perante a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ONU. Nos últimos dez anos e mais firmemente nos últimos três, o Brasil tornou-se referência internacional na luta contra a escravidão contemporânea, adotando programas considerados inovadores, elogiados pela OIT.
O que tem de tão inovador no “louvado esforço” do Brasil para acabar com o mal do trabalho escravo é, pela primeira vez, uma abordagem integrada do problema, visando quebrar na raiz uma cadeia sistêmica que produz e reproduz o trabalho escravo. Que alicia populações assoladas pela miséria a serviço de empregadores calculistas, obcecados pelo lucro a qualquer custo, e inacessíveis ao rigor da lei. Ao tripé vicioso da impunidade, da ganância e da miséria, a idéia é de contrapor o tripé virtuoso da fiscalização, da repressão e da prevenção, e de articular ações do Estado e da sociedade. No que pese as insuficiências do Plano aprovado (falta de propostas concretas na área de prevenção e de políticas efetivas de inclusão social), este é o bojo do dispositivo esboçado, e ainda em construção, pelo esforço conjugado das várias instituições do Estado e da sociedade civil.
Embora parabenizados por muitos, os resultados do plano ainda são mitigados. Pior: são sujeitos a sofrerem um revés se determinadas tendências negativas já observadas não forem rapidamente combatidas. Entre elas estão: a resistência do legislador em aprovar textos importantes como a proposta de emenda constitucional determinando o confisco das terras onde forem flagradas práticas escravistas; a impotência do judiciário, preso a jurisprudências superadas, para pôr na cadeia os criminosos envolvidos nessas práticas; o pensamento suicida de setores patronais que continuam negando o óbvio; as limitações da máquina burocrática, espremida na ditadura do superávit primário e incapaz de atender a contento à demanda existente.
O caso da fiscalização é um bom exemplo. Nos últimos três anos foram libertados cerca de 13.000 trabalhadores encontrados em situação de escravidão em mais de 400 fazendas, geralmente denunciadas por fugitivos. Isto representa 69% dos quase 19.000 trabalhadores resgatados desde 1995, quando foi criado o Grupo Móvel de Fiscalização. Certo: a fiscalização ganhou inegável fôlego a partir de 2003. Certo: cerca de 180 proprietários acabaram sendo incluídos na temida ‘lista suja’, como é conhecido o Cadastro dos Empregadores flagrados, criado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE): por dois anos no mínimo, os incluídos tem barrado o acesso a financiamentos públicos subsidiados. Certo: vários deles amargam hoje uma merecida rejeição pelo mercado, na medida em que vem sendo desvendada a cadeia produtiva escravista. Certo: depois de concluída a maioria dessas operações de resgate, o Ministério Público do Trabalho, presente em todas, tem acionado a Justiça do Trabalho, pleiteando e conseguindo a condenação do infrator por danos morais coletivos com pagamento de indenizações não pequenas. Certo: isso tem contribuído sumamente a melhorar nosso conhecimento do perfil e das demandas dessas vítimas, jogando bases para futuras ações positivas de prevenção e inserção. Certo: isso tudo mudou realmente o clima preexistente de total impunidade, incentivando as vítimas da escravidão moderna a correrem, com certa expectativa de resultado, o risco de denunciar.
Aqui justamente está um dos pontos críticos a ser destacados. Nos últimos três anos, as denúncias de trabalho escravo envolveram mais de 21.300 trabalhadores (de um total de 34.600 trabalhadores envolvidos desde 1996), em 700 casos identificados por meio de denúncia formalizada ou de fiscalização. Foram 426 fiscalizações exitosas do Ministério do Trabalho e Emprego, libertando 12.800 trabalhadores. É sabido que a maioria das denúncias (dois terços) transitaram pelo movimento social, essencialmente pela Comissão Pastoral da Terra que, há anos, é responsável por uma Campanha Nacional de Combate e Prevenção ao trabalho escravo (“De Olho Aberto para não Virar Escravo”). Os demais casos são detectados por meio de denúncia via outros canais ou, casualmente, por ocasião de fiscalizações de rotina.
Causa estranheza e indignação a constatação de que a taxa de atendimento às denúncias encaminhadas tenha caído nesses três anos de 57% (2003) para 33% (2004) e 29% (2005) – ficando numa média de 40% nesse período. Isso mostra que foi deixado sem fiscalização um número crescente de casos (72 em 2003, 97 em 2004, 113 em 2005), mantendo em situação provável de cativeiro temporário o inaceitável número de 2.500 a 3.000 pessoas a cada ano. Isso malgrado as desesperadas e arriscadas iniciativas tentadas pelos denunciantes (maioria deles fugitivos) para procurar socorro, sendo muitas vezes expostos a ameaças, perseguição e, se interceptados pelos seguranças da fazenda, submetidos a retaliação, humilhação, surra, e até liquidação. Cada denúncia não atendida mina a credibilidade do Estado, torna inúteis os custosos e também arriscados esforços de centenas de agentes do movimento social e das Igrejas para acolher e amparar as vítimas, e abala a esperança destas de sair do inferno que lhes é imposto, contrariando precisamente o chamado que todas as campanhas – promovidas pelo Estado, pela OIT, pela CPT – tentam popularizar entre os trabalhadores: ‘Diga não à escravidão! Denuncie!’
Motivo dessa falta de atendimento? O empenho da Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE, que coordena as operações do Grupo Móvel, está acima de qualquer suspeita, como está o dos fiscais – todos voluntários e cumprindo com louvável abnegação sua missão. Eles compõem as sete equipes existentes de fiscalização (por sinal três a mais que antes de 2003). Dificuldades recorrentes permanecem em relação à disponibilidade e agilidade da Polícia Federal que até hoje não se estruturou de forma a priorizar essas ações, nem tem orçamento específico para isso. Mas o problema essencial é mesmo o do descompasso gritante entre a altura da demanda e a estreiteza dos meios disponibilizados pelo Estado. Uma meta mínima de curto prazo deveria ser a de elevar para 70% a taxa de atendimento das denúncias encaminhadas ao Grupo Móvel. Para isso se faz necessária uma estruturação adequada dos serviços responsáveis e uma conseqüente dotação de recursos humanos, materiais e financeiros.
Faltando menos de doze meses para ‘erradicar’ o trabalho escravo de acordo com a meta presidencial estabelecida, os recursos orçamentários do MTE destinados ao combate a esse crime, submetidos à apreciação do Congresso, sofreram corte de 20% pelo Ministério do Planejamento. O número de auditores fiscais do trabalho solicitado para o novo concurso de 2006 que era de 300 fora rebaixado para 100 no cálculo orçamentário – um número que não compensa nem a metade das saídas naturais do quadro funcional. Só depois das manifestações indignadas da CONATRAE, foram reestabelecidos os valores iniciamente reivindicados pelo MTE (R$4.412.000), os quais incorporam um reajuste de 25%: mesmo assim não deve possibilitar ampliação significativa da fiscalização. É que depois de muitos anos de cobrança para um merecido reajuste, os custos operacionais da fiscalização devem incorporar em 2006 a elevação em 50% do valor das diárias pagas aos fiscais no exercício de suas missões.
Embora longe de ser perfeita, a arquitetura do Plano de Erradicação é um conjunto coerente. A ação repressiva por si só é incapaz de eliminar as práticas escravistas. É evidente que a prevenção – e com ela, a educação, a geração de emprego, e de forma cabal a reforma agrária – tem papel preponderante do ponto de vista do tratamento das causas estruturais. Mas é claro que o alicerce de todo o edifício reside na efetividade da fiscalização. Só com ela não se erradica, sem ela não se faz mais nada.
Questão: a timidez do engajamento governamental não seria mais um preço a pagar para os donos do agronegócio continuarem de bem com a ‘base aliada’ do governo?
De fato o governo não parece muito interessado em aprovar algumas das medidas que poderiam gerar irritação entre estes. É o caso da Proposta de Emenda Constitucional do confisco das terras de escravistas (PEC 438). Apesar do compromisso formal assumido pelo Governo Lula em 13 de março de 2003, quando lançou o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, a impressão é que somente alguns setores do Governo, sem influência decisiva e peso suficiente, têm torcido a favor dessa PEC: o ministro do Desenvolvimento Agrário, o ministro do Trabalho e o Secretário Especial de Direitos Humanos que, em algumas ocasiões, se manifestaram explicitamente sobre o assunto. Dos outros, só ouvimos o silêncio. Nem a chacina de Unaí e a comoção que provocou conseguiram mudar o quadro. Na época foi preciso cobrar do governo que incorporasse a matéria da PEC na pauta da sessão extraordinária. Espontaneamente a idéia não lhe tinha vindo. A pauta da controvertida sessão extraordinária do final de 2005 também não comportou essa matéria.
Entre os poucos setores mobilizados podem ser citados particularmente, além da Secretaria Especial de Direitos Humanos (que priorizou o apoio a vários projetos de prevenção e combate), a Fiscalização Móvel (mas nem em todas as Delegacias Regionais do Trabalho); o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que entrou em 2005 com um plano específico de combate ao trabalho escravo; o Ministério Público do Trabalho e setores da Justiça do Trabalho; alguns setores do Ministério Público Federal. Entre os pouco mobilizados continua a Polícia Federal, que até hoje não tem nem orçamento próprio para esse combate específico. E boa parte do Judiciário: não fosse a atuação corajosa de juízes do Trabalho nas ações de indenização por danos morais promovidas pelo Ministério Público do Trabalho, a impunidade continuaria total: permanece até hoje, quanto à competência para julgar, a mesma indefinição que prevalecia no início do Plano de Erradicação. Por incrível que parece ainda não se sabe quem deve julgar penalmente os escravistas deste país: se a Justiça comum ou se a Justiça Federal. Por efeito de um pedido de vistas do ministro Gilmar Mendes no processo que iria dirimir essa questão no Supremo Tribunal Federal, a decisão tão esperada continua atolada há mais de um ano.
Tambem continuou parado no STF o caso emblemático do deputado Inocêncio Oliveira denunciado em 16/10/2003 pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles (caso que seu predecessor, Geraldo Brindeiro, havia arquivado e colocado sob sigilo). A ministra Ellen Gracie não aceitou a denúncia considerando que o crime não era de trabalho escravo, porque eles não estariam “algemados”. O ministro Eros Grau votou também a favor do deputado e o ministro Joaquim Barbosa pediu vistas. Por fim: passados mais de 4 anos após o crime, os ministros do STF resolveram, no dia 27/03/06, por maioria de votos, arquivar a denúncia, sem nem examinar o mérito da questão. A justificativa do STF foi de que Fontelles não poderia ter denunciado novamente o deputado, pois não havia novas provas. A ministra Elen Gracie, relatora do processo, não aceitou como novas evidências a tomada de depoimento dos auditores fiscais do trabalho que fiscalizaram a fazenda de Inocêncio e ali libertaram 56 escravos. O arquivamento, portanto, não absolve Inocêncio, já que o deputado não foi nem levado a julgamento. Vale frisar que, na esfera trabalhista, a condenação do deputado foi confirmada, em segunda instância, pelo TRT do Maranhão. Mesma situação em relação ao senador João Ribeiro: com condenação confirmada no TRT do Pará, embora com pena atenuada, o senador foi denunciado perante o STF em junho de 2004, sem julgamento até agora.
Neste contexto, não há de estranhar que até hoje ninguem foi para a cadeia pelo crime de trabalho escravo (art. 149CP).
Na condução do país, o peso do setor do agronegócio é desmedido: considerado salvador da pátria, para ele tudo vale e a ele tudo é permitido. A opção do governo tem sido por este modelo de desenvolvimento `exógeno´, de enorme custo social e ambiental.
Escreve a editorialista Miriam Leitão(1): “Vários casos de trabalho escravo foram encontrados em fazendas que grilam, desmatam e queimam a floresta, para depois a área ser utilizada para a produção pecuária. Pior do que isso: a maioria absoluta dos integrantes da lista suja do Ministério do Trabalho é pecuarista. Esses empresários da era da pedra lascada são grandes produtores do Sul do Pará, de Mato Grosso, Rondônia, Maranhão e Tocantins. Os relatórios dos fiscais, mesmo quando não registram trabalho análogo à escravidão, revelam uma escala de valores totalmente invertida.
‘O gado tem ração controlada, vacinação garantida, pasto separado por idade, água tratada, e os trabalhadores não têm água potável, quase nunca se alimentam adequadamente. Quando têm o direito de comer mais de uma vez por dia pagam valores muito maiores pela alimentação do que o salário inicialmente acordado. Muitos estão desnutridos ou doentes. Foram encontrados vários casos de malária ou de trabalhadores acidentados ou intoxicados pelos produtos utilizados’. Produtores modernos, que cumprem suas obrigações patronais e ambientais, fingem não ver seus companheiros da pedra lascada. Assim estão cavando as próprias barreiras comerciais mais adiante. Como a aftosa, a denúncia de trabalho escravo ou maus-tratos aos trabalhadores também contamina a todos. A solução não é calar a denúncia, acusar o fiscal ou reclamar do jornalista. A única solução é mudar a atitude e as práticas trabalhistas.”
Escreve o jornalista Augusto Nunes(2): “uma inspeção nas terras da Gameleira, incrustada em Mato Grosso, localizara [no início de junho de 2005] mais de mil brasileiros submetidos ao trabalho escravo. Diferentemente dos fazendeiros do século 19, os escravagistas modernos não chegam a acorrentar empregados, nem colocam à venda os que rendem pouco. Mas, como os antepassados, revogam a liberdade dos trabalhadores, violência que fundamenta a conceituação da Organização Internacional do Trabalho. Segundo a OIT, a supressão desse direito fundamental resulta da convergência de quatro perversidades: a apreensão de documentos dos trabalhadores, a presença de guardas armados ou jagunços promovidos a carcereiros, a imposição de dívidas ilegais e as sufocantes características geográficas do lugar. As distribuidoras de combustíveis suspenderam a compra de produtos da Gameleira. E então Severino recorreu a ameaças, espertezas e moedas para conseguir o recuo das distribuidoras. O pernambucano Armando Monteiro Filho não é o primeiro parlamentar punido por manter uma bota no Brasil anterior à Abolição. Pilhados em práticas escravagistas, o senador João Ribeiro (PFL-TO), o deputado federal Inocêncio de Oliveira (PMDB-PE) e o deputado estadual Jorge Picciani, presidente da Assembléia Legislativa do Rio, perderam o direito a crédito em instituições oficiais. Juram inocência, como todos os que mantêm subjugados cerca de 40 mil trabalhadores espalhados pelo Brasil. Os delinqüentes agem em silêncio. No ano passado (2004), grupos que lutam pela Segunda Abolição fizeram caminhar no Congresso uma proposta de emenda constitucional (PEC) indispensável à erradicação da monstruosidade: escravocratas comprovados seriam punidos com o confisco das fazendas. Aprovada no Senado, a PEC pousou na Câmara. Duas votações bastariam para que entrasse em vigor. Retocada por deputados conservadores, foi bem no primeiro turno. Na segunda rodada, previsivelmente, a bancada ruralista mudou de idéia. O que não se previa era que o governo cruzasse os braços. Ainda na chefia da Casa Civil, o ministro José Dirceu ignorou os apelos para entrar em ação. A PEC foi engavetada.”
É um verdadeiro escândalo que, 188 anos após sua promulgação, a abolição da escravidão possa ainda ser um tema de debate partidário, com seus prós e seus contras.
Os grupos ruralistas teimam ainda em vender seu tradicional discurso negacionista, apelando para argumentos insustentáveis para tentar derrubar as evidências mostradas diariamente pela fiscalização: dizem que as normas impostas no campo são abusivas e importadas da realidade urbana, dizem que esta ‘maneira antiga’ – segundo as palavras do senador João Ribeiro em discurso perante o Senado – é a maneira de trabalhar no campo, que os peões vivem em casa realidades ainda mais cruéis. Ou seja, numa demonstração de cinismo impressionante, tentam justificar o tratamento que dão pela miséria que “já” prevalece entre as vítimas (quando a miséria evidentemente se perpetua graças a essas práticas de dominação secular)(3). Suicida cegueira! Quantas matérias da BBC ou do Daily Telegraph serão necessárias para acordar nossos exportadores de carne bovina e levá-los a tomar a iniciativa de mudar?
Poucos setores produtivos são tão cegos. Porém algo já está mudando: o Grupo Amaggi anunciou em dezembro passado que vai assinar o Pacto Nacional contra a Escravidão proposto pelo Instituto Ethos e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a partir do estudo da cadeia produtiva do trabalho escravo realizado pela ONG Repórter Brasil. Interessante para um grupo cujo maior expoente – o governador do Mato Grosso, Blairo Maggi – costumava dizer até agora que nunca encontrou escravidão no MT.(4) Segundo o cientista político Leonardo Sakamoto, ‘mais de 60 grandes empresas já assinaram o pacto até agora, se comprometendo a adotar medidas para manter suas cadeias produtivas longe do trabalho escravo. Com varejistas, atacadistas, industriais e exportadores negando-se a comprar produtos que tenham trabalho escravo na origem, outros fornecedores intermediários, como os próprios frigoríficos, estão se mobilizando para excluir o produtor que utiliza essa prática. Dessa forma, o corte de custos trazido ao empresário rural pela utilização desse tipo de mão-de-obra vai deixar de ser um bom negócio.’ O mesmo observa ainda que ‘as operações de libertação de trabalhadores do governo federal demonstram que quem escraviza no Brasil não são proprietários desinformados, escondidos em propriedades atrasadas e arcaícas. Pelo contrário, são grandes latifundiários, que produzem com alta tecnologia para o grande mercado consumidor interno ou para o mercado internacional. E essa pequena fração de grandes propriedades rurais monocultoras está inserida em nossa economia. É difícil lutar contra a apropriação do discurso desenvolvimentista que prega a expansão, a qualquer preço, da área plantada de soja, algodão e pimenta, do aumento da pastagem e da produção de álcool, do carvão para a exportação do aço. Na maioria das vezes, é a defesa cega do agronegócio, repetindo a já desgastada justificativa de que o combate ao trabalho escravo vai gerar prejuízos à balança comercial do país.’
Erradicar o trabalho escravo neste contexto exige mudanças mais profundas do que se imaginava. Pena que não entraram ainda na ordem do dia.
Em recente solenidade no Palácio do Planalto, por ocasião do lançamento de nova fase da Campanha da OIT e CONATRAE ‘Trabalho escravo: Diga não!, o público presente emocionou-se com o contundente depoimento de um trabalhador ex-escravo no Iriri, hoje precariamente assentado no Tocantins, quando apelando para o presidente, o conclamou: ‘Olha para nós, Sr presidente!, vista essa camisa!’.
O presidente entrou mudo e saiu calado.(5)
Xavier Plassat é frei dominicano e membro da coordenação nacional da Campanha Nacional de Combate e Prevenção da Comissão Pastoral da Terra
Notas
(1) Coluna de Miriam Leitão, O Globo, 28/10/2005
(2) ‘Escravos do Terceiro Milênio’, 28/11/2005: Grupo Móvel terá menos verba em 2006, site No Mínimo
(3)No recente acordão do TRT do Pará que resultou na redução em 90% do valor da condenação do senador João Ribeiro (indenização por danos morais coletivos), os desembargadores usam do mesmo argumento: para descaracterizar a existência de trabalho escravo, listaram uma série de condições que configurariam um trabalho ‘somente’ degradante. Na lógica do relator, o desembargador Lúcio Castiglioni, “as condições da fazenda eram semelhantes às condições do restante do distrito, não podendo caracterizar a intenção do empregador em submeter os seus empregados à condição análoga à de escravo”. Ora, como bem lembrou o Ministério Público do Trabalho, que deve entrar com recurso contra a decisão: “Para efeitos penais, as condições degradantes de trabalho hoje se equiparam a trabalho em condições análogas a de escravo, conforme o artigo 149 do Código Penal. Às vezes, as situações degradantes são até mais ofensivas aos direitos humanos do que o próprio cerceamento de liberdade”. (Dr Lóris Rocha Pereira, PRT).
(4)O mesmo Estado de Mato Grosso que, no início de 2006, chegou ao extremo de deixar que sua polícia militar enfrente a bala as forças federais envolvidas na fiscalização de uma denúncia de trabalho escravo (policiais federais, fiscais do MTE e procurador do trabalho, integrantes do Grupo Móvel de Fiscalização do Trabalho Escravo em missão de inspeção na Fazenda Sankara, município de Nova Lacerda).
(5) Cf Leonardo Sakamoto: ‘Vive la France !’, 03/02/2006. Setores do governo vem fazendo sua parte, mas o silêncio ainda constrange. Em dezembro do ano passado, o presidente Luís Inácio Lula da Silva esteve presente no lançamento da nova fase da campanha nacional de combate ao trabalho escravo. Entrou mudo e saiu calado. Apesar das entidades governamentais e da sociedade civil presentes esperarem uma manifestação de apoio do presidente a uma série de assuntos relacionados ao tema, como o projeto de lei que prevê o confisco de terras em que escravos forem encontrados, ele preferiu não se pronunciar. É triste constatar que o discurso que Lula deveria ter feito ficou a cargo de Chirac: ‘Cabe a nós, enfim, vigiar para que as empresas ocidentais, quando investirem nos países pobres ou emergentes, respeitem os princípios fundamentais do direito do trabalho tais quais constam no direito internacional. As empresas que, conscientemente, tenham recorrido ao trabalho forçado devem poder ser processadas e condenadas pelos tribunais nacionais, mesmo em relação a fatos ocorridos no exterior.’).
Publicado no “Caderno de Conflitos no Campo – Brasil 2005”, lançado nesta terça (18)