Duas incontestes constatações podem resumir, de forma simbólica, o desequilíbrio que domina o campo brasileiro: enquanto os latifundiários ligados ao agronegócio fazem todo tipo de pressão para impedir o avanço da proposta de atualização dos índices de produtividade (que poderia facilitar desapropriações para reforma agrária ao invalidar parâmetros definidos ainda na década de 1970 e ainda aguarda deliberação por parte da Presidência da República), a exigência de outra produtividade – a dos chamados bóias-frias no trabalho braçal em monoculturas como, por exemplo, a da cana-de-açúcar – aumentou de uma média de oito toneladas/dia, justamente nos anos 70 e 80, para aproximadamente 12 a 15 toneladas/dia nos dias de hoje.
Com o intuito de quantificar, qualificar, contextualizar e analisar esse retrato, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou, nesta terça-feira (18), a edição 2005 do caderno Conflitos no Campo, documento divulgado anualmente que compila dados relativos à violência no meio rural. “O relatório provavelmente consegue captar apenas 20% a 25% do total real dos conflitos”, estima Antônio Canuto, um dos organizadores da obra. Muitos casos de violência ocorridos nos grotões do País, reitera, não chegam sequer ao conhecimento das pastorais. “É um pequeno espelho da realidade”.
Em 2005, houve 38 assassinatos diretamente relacionados a conflitos agrários, um caso a menos que em 2004. Em compensação, a lista de mortes indiretas, em conseqüência de problemas de desamparo enfrentados pelos excluídos do campo, aumentou mais de 100% – de 31 mortes, em 2004, para 64, em 2005. Fazem parte deste último grupo, aliás, as 13 pessoas mortas por excesso de trabalho no interior de São Paulo (leia: Ministério Público quer acabar com remuneração por produção e Investigação reafirma ligação entre mortes e excesso de trabalho) e os impressionante número de 28 crianças indígenas de até 3 anos de idade que faleceram por desnutrição no Mato Grosso do Sul (leia: Confinamento de índios no MS não tem solução no curto prazo).
Outro fato marcante, o assassinato da irmã Dorothy Stang, em 2005, tampouco pode ser considerado uma exceção. Só no Estado do Pará, de 2000 a 2005, foram registrados 97 assassinatos pela CPT. Estendida a toda Amazônia Legal e compreendida ao longo do mesmo período de tempo, a soma sobe para 154 nomes. Uma das principais raízes desse saldo vergonhoso de mortes, segundo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, professor de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo (USP) e autor de análise sobre a questão da grilagem de terras no caderno, consiste na deficiência da atuação do Estado (União, estados e municípios), que “não realiza a sua função precípua e primeira”.
Especialmente nas regiões mais isoladas e de difícil acesso, o poder político funciona de modo invertido, salienta o professor. O triunvirato formado por grileiros, madeireiros e pecuaristas transgride a lei, ocupando áreas devolutas – dessa forma definidas desde a primeira Constituição republicana de 1891 – que nada mais são que terras públicas que ainda não foram discriminadas. De posse ilegal da terra e da conseqüente exploração da mesma, esses transgressores se constituem como forças políticas locais. Forma-se então o ambiente propício para o desmando e a impunidade em nome da manutenção do poder e da acumulação econômica, que estão diretamente relacionados com a questão da violência.
Em Anapu, no Pará, localidade em que a Irmã Dorothy foi executada, por exemplo, 87% da superfície total de 1,1 milhão de hectares, de acordo com dados oficiais, se encaixam na categoria de terra devoluta. O cadastro de latifúndios mostra, no entanto, uma “mordida” de 326 mil hectares (30% do total, sendo que oficialmente apenas 13% estariam “disponíveis”), resultado da soma das áreas de 381 latifúndios. Como medida essencial, Oliveira pede o cumprimento de um dispositivo da Constituição de 1988 que prevê a revisão de todos os títulos fundiários acima de três mil hectares, concedidos de 1962 a 1987. Na questão do acesso à terra, prioriza, está a “origem da barbárie”.
“O governo não quer enfrentar aqueles que se dizem donos das terras”, analisa, em caráter pessoal, Dom Tomás Balduíno, representante e ex-presidente da CPT. “Nossa crítica é de que a intervenção do Estado no campo é muito lenta e insatisfatória”. Ele mesmo pondera, no entanto, com relação ao desempenho do governo Lula. “A atuação não foi ‘zero’. Podemos notar um visível esforço e uma coisa louvável: o fim da perseguição aos movimentos sociais”. O número de conflitos em 2005 aumentou 4,4% (1.881) em comparação com 2004 (1.801). Aparentemente negativo, esse aumento, nas explicações dadas por Canuto, esconde fatores positivos como a maior liberdade de mobilização, a ampliação do acesso a informações, em geral, e até uma abordagem mais ampla da própria CPT, que ampliou o seu “olhar” para questões deixadas de lado no passado como o conflito por água.
Dom Tomás Balduíno salienta, em complemento ao tema conjuntural, que os militantes camponeses “estão morrendo de medo que o país volte a ser governado pela direita” que, segundo ele, nas próximas eleições serão representadas pela candidatura do ex-governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, do PSDB. Por isso, existe uma tendência de apoio à reeleição de Lula, do PT. O “golpe de última hora” de impedimento (impeachment) do presidente é, avalia o religioso, “uma iniciativa daqueles que sempre estiveram no poder”.
Contudo, a prevalência do “monstro” do agronegócio, lembra Dom Tomás, perpetua a lógica da confirmação dos tombamentos daqueles que foram “selecionados para morrer”. Há 30 anos, foi-se o Padre João Bosco Penido Burnier, exatamente 20 anos atrás morreu o Padre Josimo Morais Tavares, o massacre de 19 trabalhadores sem terra em Eldorado de Carajás (no Pará) completou 10 anos (leia: Protestos em todo Brasil marcam os 10 anos do massacre de 19 sem-terra) e o assassinato da Irmã Dorothy completou recentemente um ano. Publicado desde 1985, o caderno de “denúncia e memória” com informações e contextualizações sobre conflitos no campo busca, segundo o religioso, “recolher o protagonismo [dos camponeses] e lançá-lo diante da sociedade como um eco do dom da vida, para que a causa [da luta pelo acesso à terra] seja mantida”.
Francelmo e Dom Luiz Cappio
Nesta edição referente ao ano de 2005, a CPT enfatizou a questão ambiental co
mo pano de fundo da violência. Além da Irmã Dorothy, norte-americana naturalizada brasileira, outros dois personagens foram homenageados no documento Conflitos do Campo – Brasil 2005. A imagem do ambientalista Francisco Anselmo de Barros, o Francelmo, aparece na capa do caderno. No dia 12 de novembro de 2005, ao final de uma manifestação contra a implantação de usinas de álcool na região do Pantanal, realizada em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, ele ateou fogo em seu próprio corpo e não resistiu às chamas. Familiares de Francelmo estiveram presentes na capital federal para a coletiva de imprensa sobre o relatório da CPT, inclusive a sua esposa, Iracema: “Ele entregou-se em prol da vida”, relatou Iracema.
Formado em administração de empresas, Francelmo enveredou para a área de jornalismo ecológico e vinha se dedicando ao trabalho junto a uma organização ambientalista com atuação no Pantanal. “Para nós, restou a lembrança da dignidade dele”, disse a esposa do ativista. Ela anunciou também que em breve Serpa lançado um livro com artigos escritos por Francelmo
A greve de fome de Dom Frei Luiz Cappio, bispo de Barra, na Bahia, contra o início imediato do projeto de transposição do Rio São Francisco também foi citada com destaque no relatório, que traz um trecho de carta enviada ao Palácio do Planalto no final do ano passado. “Quando cessa o entendimento da razão, a loucura fala mais alto. Em meu gesto não existe nenhuma atitude anti-Lula neste momento delicado da vida nacional. Pelo contrário. Quem sabe seja uma maneira extrema de ajudá-lo a entender pelo coração aquilo que a razão não alcança”.
Da Agência Carta Maior