No dia 1o de abril, dois policiais civis foram mortos por indígenas na aldeia Passo Piraju, a 25 quilômetros da cidade de Dourados, no Mato Grosso do Sul. A versão dos policiais e de outras autoridades locais, prontamente encampada por grande parte dos meios de comunicação, conta que eles entraram na área do acampamento indígena para investigar o paradeiro do autor de um assassinato e foram vítimas de uma emboscada. A versão dos indígenas é completamente diferente. Eles disseram que apenas se defenderam dos policiais, que teriam chegado atirando, sem nenhuma identificação, numa área que é palco de sérios conflitos fundiários. A Promotoria de Justiça de Dourados denunciou nove indígenas pelas mortes, entre eles o cacique Carlito de Oliveira, e todos estão detidos.
No dia 6 de abril, menos de uma semana depois desse incidente, a Justiça Federal decidiu pela reintegração de posse da área num prazo de trinta dias. Os indígenas guarani-kaiowa que vivem em Passo Piraju afirmam que vão resistir à remoção até a morte e alguns ameaçam até mesmo cometer suicídio coletivo, caso sejam obrigados a sair da terra onde moram desde 2004, com permanência autorizada pela Justiça. A Fundação Nacional do Índio (Funai), em parceria com o Ministério Público Federal, está apelando dessa sentença.
"A partir das mortes, criou-se um clima de grande temor e tensão no ar. Como sempre os indígenas se sentem mais do que nunca fragilizados e com sua sobrevivência ameaçada. Isso foi agravado pela decisão de reintegração de posse, que para os guarani é de extrema violência. Diante dessa ameaça, dessa situação-limite, sem saber para onde vão, sentindo-se tangidos como animais de um canto para outro, é compreensível do ponto de vista humano que surjam perspectivas de saídas de negação da vida", justifica Egon Heck, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no Mato Grosso do Sul.
Para ele, a decisão da Justiça logo após a morte dos policiais civis está ligada a esse acontecimento. "Eles querem simplesmente criminalizar os indígenas, sendo que é uma situação provocada pela omissão do Estado. A versão da polícia penaliza mais uma vez os indígenas. Ficou como se tivesse sido uma ação traiçoeira e brutal, sem nenhuma razão", avalia.
O procurador-geral da Funai, Luiz Fernando Villares, concorda que, apesar de não haver uma ligação direta entre os dois fatos, existe uma relação política. "A juíza pode ter sido pressionada para tomar essa decisão ou ter se sentido à vontade para sentenciar esse processo, as mortes deram chance de ela fazer isso. Isso reforça o clima de preconceito e intranqüilidade na região, porque além de presos, estão ameaçados de despejo", completa Villares. A Funai acredita que seja possível reverter essa decisão judicial e quer trabalhar com todas as alternativas antes de pensar num possível confronto. Em último caso, se não conseguirem revogar a decisão, pretendem tratar com a Polícia Federal sobre a forma que o despejo vai ser feito, para evitar violência e mortes. Além disso, o órgão, responsável pela defesa dos indígenas presos, está tentando transferi-los para Campo Grande, capital do Estado, onde eles estariam mais seguros, já que o preconceito, os conflitos e tensões na região ameaçam suas vidas.
De acordo com o relato dos indígenas sobre as circunstâncias das mortes dos dois policiais, três homens armados entraram na aldeia, num carro comum, perguntando pelo cacique Carlito. "Na volta vieram atirando e atiraram numa casa onde dois indígena Kaiowá estavam cobrindo sua casa com sapé e um deles foi atingido por um projétil 9 mm, no dedo do pé. (…) Quando os homens não-índio chegaram no local onde os Kaiowá estavam reunidos eles começaram a ameaçar com arma de fogo atirando para o alto, por isso que os Kaiowás que ali estavam investiram contra os não-indios para desarmá-los foi quando todo o episodio ocorreu", contam os moradores de Passo Piraju, em depoimento escrito, entregue à Comissão Indígena Guarani-Kaiowá, formada por lideranças de aldeias pertencentes ao Núcleo da Funai de Dourados. Segundo eles, o cacique estava tomando banho do outro lado do rio nesse momento e não estava no confronto. Eles contam que, depois disso, chegaram mais de vinte policiais ameaçando todos, invadindo as casas e falando que iam matar todos.
Essa investigação policial ocorreu dessa forma ainda que, em fevereiro deste ano, o grupo de trabalho de segurança pública de Dourados, composto por representantes da prefeitura municipal, da Funai, da Funasa, do Ministério Público Federal e dos órgãos de seguranças pública do Estado, tenha decido que qualquer intervenção policial em áreas de conflito e em terras indígenas deveria ser acompanhada pela Funai. No entanto, tal acordo foi totalmente desconsiderado pela polícia civil nesse caso, com a justificativa de que não se trata de uma terra indígena oficial.
Omissão do Estado
Em carta aberta, os antropólogos Rubem Thomaz de Almeida, Fabio Mura e Alexandra Barbosa da Silva afirmam que nos últimos anos, principalmente desde 2003, o nível dos conflitos locais entre fazendeiros e índios tem se acirrado, com "os primeiros procurando cada vez mais se articular para que sua própria política seja mais eficiente, enquanto que os segundos multiplicam as reivindicações para recuperar seus territórios tradicionais". O que parece surpreendente, segundo eles, é o papel do Estado, a falta de um posicionamento claro, enérgico e ético, para enfrentar a situação e dar solução ao problema fundiário local.
Eles acreditam que o fato da mídia passar uma imagem dos índios como selvagens e truculentos "permitiu que determinados preconceitos e estigmas sobre os índios se manifestassem com extrema virulência", o que pode colocar em risco "toda a população guarani, inclusive as que não têm qualquer ligação com o episódio". Os antropólogos ressaltam ainda que o modo de proceder dos kaiowa contemporaneamente mostra que eles "priorizam a via diplomática a arroubos belicosos diante das muitas ocasiões em que são agredidos pelo ‘branco'".
Na carta aberta, eles insistem na necessidade premente do Estado brasileiro se envolver profundamente com o problema Guarani do Mato Grosso do Sul. "É seu dever Constitucional assumir e decidir com firmeza e rigor uma dinâmica para fazer respeitar direitos e investir na composição de uma instância específica e que unifique organismos de Estado; é seu dever viabilizar recursos financeiros e humanos, refletir e planejar estratégias que culminem em soluções efetivas aos problemas fundiários e de produção de alimentos da população aqui focada", dizem.
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ot;Até quando vai continuar tendo que assistir violência, mortes, em função de um quadro que já devia ter sido resolvido constitucionalmente pelo governo? A Funai diz que essa etnia do Mato Grosso do Sul é prioridade, mas por que é uma prioridade se não faz nada?", questiona Heck, coordenador do Cimi-MS. "No Mato Grosso do Sul, praticamente 90% das terras indígenas precisam de regularização ou desintrusão. Esperamos que a Justiça possa entender a situação e a Funai agilize o processo de regularização, determine um grupo de trabalho", conclui.
De acordo com o órgão governamental, a urgência da identificação das terras indígenas do Brasil é programada anualmente pela Funai e a de Passo Piraju está marcada para ser iniciada este ano. O processo é longo, pode durar de dois a vinte anos, dependendo da resistência dos fazendeiros e das decisões judiciais.
Fernanda Sucupira é membro da ONG Repórter Brasil