Uma megaoperação com 105 ações de fiscalização, envolvendo 50 equipes em pelo menos 65 municípios de 23 unidades da federação, resgatou 337 pessoas de condições análogas às de escravo em 15 estados. Desses, cinco eram crianças e adolescentes e seis, trabalhadoras domésticas – uma delas, no serviço desde os nove anos. Os números podem subir porque ainda há ações de andamento.
A “Operação Resgate 2”, desencadeada no dia 4 de julho, reuniu mais de 100 auditores fiscais da Inspeção do Trabalho, 44 procuradores do Ministério Público do Trabalho, dez procuradores do Ministério Público Federal, 150 agentes da Polícia Federal e 80 da Polícia Rodoviária Federal e 12 defensores da Defensoria Pública da União.
As informações foram divulgadas, na manhã desta quinta (28), em coletiva à imprensa na sede da Procuradoria-Geral da República, em Brasília, com a presença das instituições. A operação está sendo considerada a maior para o combate ao crime na história do país, não pelo número de resgatados (em 2007, 1.064 foram libertados em uma fazenda de cana em Ulianópolis, no Pará), mas pela estrutura envolvida e a diversidade de ações.
Desde 1995, quando o Brasil reconheceu diante das Nações Unidas a persistência de trabalho escravo, mais de 58 mil pessoas foram resgatadas por grupos de fiscalização com a participação dessas instituições. A diferença é que a Operação Resgate realiza um ataque ao crime de forma simultânea, tanto na área urbana quanto na rural.
“Houve resgate nas cinco regiões do país, demonstrando que o trabalho escravo ainda é uma realidade presente infelizmente em todo o território nacional”, explica o procurador Italvar Medina, vice-coordenador de erradicação do trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho.
Entre as unidades da federação com maior número de resgatados, está Goiás, com 91 trabalhadores, seguido de Minas Gerais, 78, Acre, 37 e Rondônia, 27. Considerando o número de ações de fiscalização, Minas teve 21, Bahia, 11, Espírito Santo, 9, Goiás, 8, e Mato Grosso do Sul, 7.
Não houve ações de fiscalização apenas nos Estados do Amapá, Rio Grande do Norte, Roraima e Sergipe. Trabalhadores foram resgatados no AC, BA, CE, ES, GO, MS, MG, MT, PB, PE, PA, PI, RO, RS e SP.
“O número de resgatados apenas no mês de julho na Operação Resgate 2 já é quase metade de todos os resgatados este ano”, afirmou Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) da Secretaria de Inspeção do Trabalho.
O cultivo de café foi a atividade em que 77 dos trabalhadores foram resgatados e a colheita de palha de milho (usada na alimentação de gado, na produção de etanol e na confecção de cigarros), outros 77. Na criação de bovinos para corte, foram flagradas 49 pessoas escravizadas.
Além das cinco crianças e adolescentes encontrados em situação análoga à de escravo, outras 13 crianças foram retiradas do trabalho infantil.
Além dos resgates, a operação tem o objetivo de fiscalizar o cumprimento da proteção ao trabalho, permitir a coleta de provas para responsabilizar, na esfera criminal, os responsáveis pela exploração dos trabalhadores e assegurar a reparação dos danos individuais e coletivos causados aos resgatados.
Os empregadores envolvidos terão que pagar R$ 3,82 milhões em verbas rescisórias e direitos devidos aos trabalhadores, que também vão receber três parcelas de um salário mínimo do seguro-desemprego especial para resgatados da escravidão, criado em 2003. Foram aplicados mais de 700 autos de infração pelos auditores fiscais do trabalho.
Operação resgatou irmãs que foram escravizadas como domésticas na PB
Fiscalizações para verificar denúncias de trabalho escravo doméstico foram realizadas em oito unidades da federação, culminando com seis mulheres resgatadas: duas na Paraíba e uma em Pernambuco, Minas Gerais, Pará e São Paulo.
As trabalhadoras da Paraíba eram duas irmãs. De acordo com a fiscalização, uma de 37 anos trabalhava desde os nove como doméstica em João Pessoa para a filha da empregadora da irmã – que tinha 57 anos e ficava no município de Alagoa Grande. A fiscalização ainda está calculando o tempo em que esta foi submetida exploração.
Quando crianças, elas moravam com os pais nas terras do engenho da família que veio a ser empregadora, segundo as entidades envolvidas no resgate. Quando os pais das meninas faleceram, a empregadora ficou com a mais velha e “deu” para a filha. Como a fiscalização ainda está em curso, os dados sobre os empregadores não foram divulgados.
“Isso lembra muito a escravidão colonial, em que as trabalhadoras escravizadas eram passadas entre gerações de uma mesma família”, analisa Italvar Medina.
Na capital paulista, a trabalhadora de 61 anos estava havia 31 no mesmo local, em uma casa na Zona Leste, com jornada das 8h às 22h, sem férias ou descanso. Vindo do interior de São Paulo, ela foi contratada inicialmente como babá, mas seguiu prestando serviços domésticos.
No primeiro ano, ela recebeu salários – de forma eventual, sem periodicidade. Mas quando ela quebrou uma máquina de lavar roupa, passaram a descontar o conserto do que ela deveria receber. Desde então, nunca mais teve remuneração. As verbas rescisórias e direitos não pagos devem alcançar R$ 1 milhão e o Ministério Público do Trabalho ainda negocia o pagamento, razão pelo qual mais detalhes sobre o caso não foram divulgados.
Em Patos de Minas (MG), um resgate ocorreu em uma clínica terapêutica que supostamente atuava na recuperação de pessoas com dependência de drogas. Na prática, ela aliciava trabalhadores usuários de drogas e pessoas situação de rua em Belo Horizonte e em cidades do interior para trabalhar na venda de peças de artesanato. As vítimas não recebiam nenhuma remuneração pelo serviço.
De acordo com a fiscalização, os trabalhadores estavam o tempo todo sob ameaças. Um deles que deixou de bater a meta foi agredido fisicamente, tendo costelas e o nariz quebrados por conta das agressões. Os alojamentos e banheiros eram precários, superlotados e sem condições mínimas de higiene.
Dos 337 resgatados, 149 também foram vítimas de tráfico de pessoas
A Operação Resgate 1 foi realizada em janeiro de 2021, mês em que é celebrado o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo devido à memória dos quatro funcionários do Ministério do Trabalho mortos na Chacina de Unaí. Naquele momento, foram realizadas 128 fiscalizações em 22 unidades da federação e no Distrito Federal, que resgataram 136 pessoas.
Desta vez, a Operação Resgate 2 escolheu o mês de julho, pois é celebrado o Dia Mundial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no próximo sábado (30). Pelo menos 149 dos 337 resgatados também foram vítimas do tráfico de pessoas, entre eles quatro migrantes paraguaios e venezuelanos.
Os Estados com maior número de trabalhadores escravizados que também foram vítimas de tráfico de seres humanos foi Goiás, com 77 pessoas, dos quais 40 oriundas de Minas Gerais para trabalhar na produção da palha de milho. Na sequência, temos Rio Grande do Sul (26) e São Paulo (18). Os principais estados de origem foram o Maranhão, Minas e Bahia.
Trabalho escravo contemporâneo no Brasil
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Ao mesmo tempo, o artigo 149-A do Código Penal define o crime de tráfico de pessoas, como o ato de agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; submetê-la a qualquer tipo de servidão; adoção ilegal ou exploração sexual.
O crime está previsto no artigo 149-A do Código Penal, inserido em 2016, após o Brasil ratificar o Protocolo de Palermo que trata do tema.
O grupo especial móvel de fiscalização, que completou 27 anos neste mês de maio, e é composto pelos órgãos que participam da Operação Resgate, é a base no combate a esse crime no país.
Os mais de 58 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.
A pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.