Com apoio do governo de MT e da Funai, prefeitura desmata ilegalmente área indígena para plantio de grãos

Prefeitura de Campinápolis (MT) desmatou, sem aval do Ibama, área equivalente a 420 campos de futebol na TI Parabubure. Máquinas e combustível foram fornecidos pela gestão Mauro Mendes, governador favorito à reeleição
Por Ahmad Jarrah e Bruna Obadowski
 12/09/2022
Área equivalente a 420 campos de futebol foram desmatados na Terra Indígena Parabubure para implementar lavoura mecanizada. Retirada da mata foi feita pela prefeitura de Campinápolis sem o aval do Ibama (Foto: Bruna Obadowski)

O governo de Mato Grosso cedeu máquinas agrícolas e doou combustível para a prefeitura de Campinápolis desmatar, sem licença ambiental, cerca de 300 hectares de mata nativa dentro da Terra Indígena (TI) Parabubure, a 610 km de Cuiabá, para o cultivo de grãos. A ação teve apoio do chefe da Coordenadoria Regional Xavante da Funai (Fundação Nacional do Índio), mas é questionada por servidores que atuam na fiscalização e apontam possível crime ambiental.

A derrubada da mata ocorreu em março e abril e foi identificada por agentes locais da Funai, segundo despacho do Segat (Serviço de Gestão Ambiental e Territorial) da regional Xavante, obtido pela reportagem. “Este Segat desconhece qualquer atividade autorizada de desmatamento na referida área”, diz o documento, que considera a situação “grave”. “Os tratores presentes no local do desmatamento estão identificados com adesivos do governo do Estado de Mato Grosso”. 

A prefeitura de Campinápolis reconhece que desmatou o local sem autorização do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), mas diz que a licença ambiental não seria necessária neste caso, pois a ação faz parte de uma política do governo Jair Bolsonaro (PL) de implementar lavouras mecanizadas em terras indígenas e teria o apoio da Funai e das secretarias de meio ambiente e agricultura de Mato Grosso. O estado é governado por Mauro Mendes (União Brasil), um dos governadores mais próximos de Bolsonaro, ambos candidatos à reeleição em 2022 e entusiastas do plantio mecanizado em TIs.

“Só se eu estiver muito louco, mas pelo que eu apurei disso aí, não precisa de todo esse processo [de licenciamento ambiental junto ao Ibama]”, diz o secretário de Assuntos Indígenas de Campinápolis, Epaminondas Conceição da Silva. Ele admite ainda que houve abertura de estradas para chegar ao local, feitas também sem aval do Ibama. “Vai dar uns 176 hectares [de lavoura] de cada lado da pista”, para plantio de milho, arroz e algodão, afirma.

Desmatar áreas protegidas como terras indígenas é ilegal, a menos que haja autorização do Ibama, segundo a lei 140/2011. O órgão ambiental publicou em 2018 norma que lista uma série de atividades que dispensam o licenciamento em terras indígenas, como construção de moradias e abertura de roça não mecanizada.

A reportagem flagrou em julho abertura de novas estradas dentro da terra indígena, feitas também sem aval do Ibama (Foto: Bruna Obadowski)

Na gestão Bolsonaro, porém, a Funai e o Ibama expediram nova instrução que abriu brecha para não indígenas explorarem essas áreas, mas apenas se eles fizerem parte de organizações mistas compostas majoritariamente por indígenas. O texto estabelece ainda que os indígenas sejam os empreendedores e beneficiários principais das iniciativas, e que as associações fiquem responsáveis por pedir autorização ao Ibama. 

Na TI Parabubure, contudo, tais exigências não foram respeitadas. A implantação da lavoura foi proposta pela prefeitura de Campinápolis, que decidiu também por conta própria retirar a mata sem o aval do Ibama, usando servidores municipais e com apoio do governo estadual. 

Além disso, a associação indígena que daria ares de legalidade para a iniciativa sequer foi criada, e apenas não indígenas participaram da empreitada até agora. “Nessa primeira parte, a prefeitura entrou com a cara e a coragem. O que nos travou foi a criação da cooperativa”, conta o secretário. Ele diz que o projeto foi paralisado, mas a reportagem constatou em julho máquinas da prefeitura trabalhando na abertura de novas estradas.

Lideranças Xavante que apoiam a lavoura mecanizada confirmam que a proposta partiu da prefeitura e que o financiamento até o momento foi do governo estadual. “Não foi o índio que pediu [a lavoura]. O prefeito colocou o projeto na prefeitura e, quando ele explicou, eu aceitei. Mas não são todos que aceitam. A maioria dos indígenas é contra”, diz Amércio Owedeiwawé, cacique da aldeia São Paulo, a mais próxima da futura lavoura. 

“O governo estadual já investiu 200 e poucos mil reais com máquinas e principalmente combustível”, conta Geninho Tseredzapriwe, da aldeia São Pedro, também próxima ao empreendimento. Vereador em Campinápolis pelo PSDB, ele diz que a Cooperativa dos Indígenas de Parabubure está em fase de criação.

Questionado sobre o desmatamento sem aval do Ibama, o governo de Mato Grosso informou que cedeu as máquinas a Campinápolis e que sua utilização é “inteira responsabilidade” da prefeitura. 

Governador de MT, Mauro Mendes apoia a implementação de lavouras mecanizadas em terras indígenas do estado, projeto encampado pela Funai na gestão de Bolsonaro (Foto: Mayke Toscano/SECOM-MT)

O chefe da Coordenadoria Regional Xavante da Funai, Álvaro Peres, capitão aposentado do Exército, diz conhecer e apoiar o projeto em Parabubure, “mas apenas do ponto de vista administrativo”, o que inclui consultoria aos indígenas para formalizar a cooperativa. Ele não comentou sobre as suspeitas de violação ambiental. A sede da Funai em Brasília disse que a regional Xavante “acionou os órgãos competentes, entre eles o Ibama, para apuração dos indícios de desmatamento identificados pela fundação durante os meses de março e abril de 2022”. O órgão não comentou sobre o apoio do chefe da regional ao projeto.

Procurados para comentar as possíveis irregularidades, o Ibama e o Ministério Público Federal em MT não se manifestaram.

Alimentar gente ou gado?

Parabubure é parte do que restou do território original Xavante, que até 1940 ocupou quase toda porção central de Mato Grosso. A TI faz parte de um conjunto de seis territórios demarcados na década de 1980, que inclui ainda Areões, Pimentel Barbosa, São Marcos, Sangradouro e Marechal Rondon. 

(Foto: Bruna Obadowski)
O desmatamento ameaça locais sagrados para os Xavante, como a Lagoa Encantada e a caverna “Amre Danhoroã” (Foto: Ahmad Jarrah)

Os cerca de 300 hectares desmatados equivalem a 420 campos de futebol e representam menos de 1% de Parabubure, que tem ao todo 224 mil hectares (2.240 km²). A reportagem esteve no local em meados de julho e ouviu relatos de que a área derrubada ameaça locais sagrados para a etnia, como a Lagoa Encantada e a caverna “Amre Danhoroã”, em razão da proximidade e dos possíveis impactos gerados pela lavoura.

Além das violações ambientais, o plantio de grãos em Parabubure carece também de apoio da maioria dos indígenas que ali vivem. O cacique Amércio Owedeiwawé, um dos poucos a aceitar o projeto, reconhece que apenas 20 das 176 aldeias de Parabubure manifestaram interesse na iniciativa. 

Ele conta que seu pai, o antigo cacique da aldeia São Paulo, era contra a lavoura mecanizada pois foram muitos anos de luta até a conquista da terra “sagrada” pelos Xavante. Mas o atual líder diz que mudou de ideia em razão da insegurança alimentar do povo, problema que teria se agravado durante a pandemia de Covid-19. “A criança nasce e vai comer o quê?”, questiona.

Amércio Owedeiwawé é o cacique de uma das aldeias mais próximas à futura lavoura. Ele defende o projeto em razão da insegurança alimentar da população (Foto: Ahmad Jarrah)

Embora o objetivo declarado da prefeitura seja plantar grãos como milho, arroz e algodão, os críticos do projeto temem que a área seja destinada ao cultivo da soja com fins de exportação, que é um dos focos do agronegócio mato-grossense. “A ideia sempre foi plantar soja, e isso compromete a nossa alimentação”, critica um cacique, que pediu para não ser identificado por temer represálias. 

“Infelizmente eles acham que podem resolver o problema de um povo sem elaborar essa forma de desenvolvimento junto com os indígenas. Não deveriam impor um modelo”, diz ele, que reclama da falta de diálogo com a prefeitura e da não participação dos Xavante no projeto. “A mão de obra e a condução do projeto é terceirizada. Bom seria se a própria comunidade, dona da terra, fosse executar, com seus bens, equipamentos, aplicando todos os seus conhecimentos. Produção 100% para a comunidade”, continua.

Ele é contra destinar a terra para a monocultura e defende a agricultura familiar com cultivos variados como resposta às necessidades dos Xavante, mas reclama da falta de apoio da prefeitura. “O secretário Epaminondas me prometeu um trator para plantar mandioca. Eu entreguei ofício, esperei e já passaram dois anos e ele nunca foi arar nossa roça”, desabafa, em entrevista concedida diante do secretário, que não rebateu a crítica. 

Outro cacique diz, também de forma anônima, que o secretário e o assessor dele foram ao local coletar assinaturas, mas sem explicar de que se tratava. “Muitos acharam que era para a prefeitura doar cestas básicas. Mas eu falei que só iria assinar se eu lesse o documento. Sem ler, não posso assinar”. 

“Este tipo de projeto reforça as brigas e divisão do povo Xavante. Nenhum dinheiro no mundo vai pagar essa destruição. Por isso nós somos contra”, afirma Hiparidi Toptiro, liderança da Associação Xavante Warã.

Secretário de assuntos indígenas de Campinápolis (MT), Epaminondas Conceição da Silva admite que a mata foi retirada sem o aval do Ibama, o que é ilegal (Foto: Ahmad Jarrah)

Com apoio de políticos e empresários do agronegócio, as lavouras mecanizadas estão se espalhando pelas áreas do povo Xavante. Dos nove territórios onde vivem cerca de 20 mil indígenas, existem ao menos três projetos de monocultura.

O mais conhecido deles é o projeto “Independência Indígena”, desenvolvido pela cooperativa mista Cooigradesan, em parceria com produtores rurais, na Terra Indígena Sangradouro/Volta Grande, em Poxoréu (MT). O grupo já colheu a segunda safra de soja e arroz neste ano, mas há um impasse entre os Xavante a respeito dos lucros da lavoura, já que o acordo prevê que 80% do rendimento fique com os fazendeiros e apenas 20% com os indígenas.

Essa divisão desproporcional e o estabelecimento de um valor fixo por hectare são indícios de arrendamento de terra indígena, o que é ilegal, explica Fernando Vianna, antropólogo e presidente da INA, a associação de servidores da Funai. “O modo como esses processos são desenvolvidos e a divisão dos recursos geram problemas. Projetos desse tipo, muitas vezes, vêm encobrir a realidade de que os principais beneficiários não são indígenas, e isso é proibido”, afirma.

O cacique Domingos Sávio, da TI Sangradouro, abriu uma conta bancária na esperança de receber os mil reais por família prometidos pelo projeto “Independência’. No entanto, até o mês passado nem um centavo havia sido depositado. A Cooigradesan não explicou por que o pagamento não foi feito.

Esta reportagem é publicada com apoio do Rainforest Journalism Fund, Pulitzer Center


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