Leilão de térmicas a gás marca avanço de fonte mais cara e poluente

Implementação de usinas é criticada por analistas, pelo risco de gerar custos que deixariam conta mais cara para o consumidor e por alavancar de maneira desnecessária emissões de gases de efeito estufa
Por Roberto Rockmann
 29/09/2022
Contratação de termelétricas movidas a gás foi determinada na lei da privatização da Eletrobras por meio de um ‘jabuti’, como é chamada uma emenda parlamentar sem ligação com o texto principal  (Foto: Agência Petrobrás)

O Brasil irá realizar nesta sexta-feira (3) o primeiro leilão de contratação de térmicas a gás sob a lei que autorizou a privatização da Eletrobras. Marcado por uma expectativa de baixa concorrência diante do cenário internacional, o evento pode ser apenas o primeiro de uma série de leilões, já que está prevista a contratação de 8 GW de térmicas a gás natural fóssil nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, em alguns locais onde não há gasoduto.

Os custos tanto para a construção de infraestruturas para escoamento como dos próprios leilões podem, segundo analistas, ser repassados para os consumidores com tarifas mais altas. Além disso, a contratação das térmicas a gás neste leilão geraria um aumento, desnecessário, de 74% nas emissões de gases de efeito estufa, segundo um estudo do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor).

Para esse primeiro leilão, prevê-se a contratação de 2 GW, sendo 1.000 MW na região Norte, para início de suprimento em 31 de dezembro de 2026, e outro volume igual para o Nordeste (Piauí e Maranhão), cujo início de suprimento se dará em 31 de dezembro de 2027. O valor de referência será o preço-teto para geração a gás natural: cerca de R$ 450/MWh. As empresas participantes têm de informar que contam com o insumo ao longo do prazo do contrato. 

A baixa competitividade esperada se dá pelo contexto internacional: a ameaça de racionamento na Europa está levando à demanda forte dos países europeus pelo insumo, o que tem elevado preços e reduzido a disponibilidade de gás em todo o mundo. 

Crédito: Débora De Maio

Como muitas empresas que operam no país trabalham com gás importado, sua competitividade é limitada. Isso poderá levar a um cenário em que projetos não contratados sejam colocados em novas licitações ou tenham seus preços-tetos elevados nos próximos certames, segundo consultores. Outro problema é que os futuros leilões poderão ser feitos em locais em que não existem gasodutos, o que poderá ampliar os custos e ter impacto sobre as tarifas. 

No início do ano, deputados tentaram usar recursos da PPSA – Pré-Sal SA, estatal criada para gerenciar os contratos no pré-sal e cujos royalties poderiam ser direcionados para saúde e educação – para financiar os gasodutos. A estimativa é a de que a comercialização dos contratos de partilha poderá movimentar US$ 116 bilhões entre 2022 e 2031, o que mostra como a estatal se tornou geradora de caixa. A ideia, no entanto, foi deixada de lado por ora.

Aumento na tarifa?

Para a Frente Nacional dos Consumidores de Energia, o leilão para contratar 2 GW dos 8 GW termelétricos a gás terá um custo anual estimado em R$ 4,7 bilhões a ser cobrado dos consumidores. A conta poderá ser ainda mais alta ainda maior porque a lei de privatização da Eletrobras (14.182) prevê a contratação de 8 GW de potência. Estima-se que as futuras usinas termelétricas possam custar ao Brasil R$ 52 bilhões até 2036, apenas no que diz respeito à operação. Analistas calculam que isso pode representar 10% de aumento na tarifa de energia.

Nas contas do professor Edmar de Almeida, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com todos os leilões, a capacidade de geração termelétrica saltará dos atuais 12 GW para 20 GW até 2030. Já a demanda de gás do segmento de geração termelétrica deverá dobrar. Isto porque os 8 GW que serão agregados terão um fator de capacidade mínimo de 70%, bem acima do fator de capacidade médio do parque de geração atual, que é de cerca de 40%. “Considerando um despacho mínimo de 70%, a demanda destes novos 8 GW de térmicas seria, no mínimo, de 25 MMm³/dia, podendo atingir em torno de 36 MMm³/dia de gás natural no pico”, apontou em estudo de 2021.

Futuras termelétricas podem custar R$ 52 bilhões até 2036, o que pode representar 10% de aumento na tarifa de energia, segundo estimativas de analistas

A lei determina que 6 GW dos 8 GW das térmicas sejam construídos em locais onde hoje não existe capacidade de transporte de gás. Almeida aponta que, no caso da região Norte, existe a exigência de levar gás doméstico para duas capitais que atualmente não têm suprimento de gás. “Caso Porto Velho seja contemplada, por exemplo, seria necessário construir um gasoduto de cerca de 520 km conectando a cidade às reservas de Urucu ou Juruá, no Amazonas”, afirma o professor em um texto sobre o tema. “Não está claro qual outra capital do Norte se encaixa nas exigências Atualmente, já existe um projeto em implantação de levar o gás do campo de Azulão, no Amazonas, para Boa Vista em Roraima por caminhão de GNL. O projeto da térmica de Boa Vista abastecido por caminhão de GNL se justificou pelos altos custos da geração elétrica nos sistemas isolados. A implantação de um projeto como o de Boa Vista numa cidade interligada ao SIN (Sistema Interligado Nacional de energia elétrica) não teria sido viável. Para as outras capitais da Região Norte (Belém, Palmas, Macapá, Rio Branco), não há possibilidade clara de abastecimento por duto a partir das reservas provadas de gás da Região Amazônica.”

O problema não está apenas no Norte. Almeida aponta que as térmicas para a região Centro-Oeste também vão requerer a construção de novos gasodutos. O caso de Brasília é parecido com o de Boa Vista. “Hoje Brasília recebe gás por caminhão. Não está claro se isso se configura como ponto de recebimento. Caso Brasília fosse contemplada, seria necessário a construção de um gasoduto de 905 Km conectando a cidade ao duto da TBG (Gasbol).”

O professor complementa: “A implementação de novos gasodutos é uma empreitada de enorme complexidade do ponto de vista regulatório, ambiental e econômico. O país não constrói novos gasodutos desde 2010 e o processo regulatório e de licenciamento para novos projetos de transporte envolve procedimentos que ainda não foram testados. Do ponto de vista de contratação, será necessário realizar o leilão de contratação das térmicas antes mesmo de haver a contratação do transporte.”

Impacto no bolso e no pulmão

Uma das decisões mais importantes do setor elétrico sobre o bolso e sobre os pulmões dos brasileiros foi decidida não por um órgão que determina as políticas do segmento, o planejador ou o operador do sistema, mas por parlamentares. Sancionada em julho de 2021, a lei 14.182 autorizou a privatização da Eletrobras, processo concluído em junho desse ano, quando a União reduziu sua presença na maior geradora e transmissora do país, e a empresa se tornou uma companhia com controle pulverizado com a maioria de acionistas privados.

Crédito: Débora De Maio

Além de permitir a privatização da Eletrobras, a lei recebeu alguns “jabutis” – nome dado a emendas parlamentares que não têm ligação direta com o texto principal colocado em discussão no Congresso Nacional e são vistas como “contrabandos” quando são colocadas em votação. Um deles se refere à contratação de 8 GW de termelétricas movidas a gás natural no interior do Brasil.

‘À la Saramago’

O jabuti ainda contou com uma originalidade: o artigo da lei que autorizou a capitalização da Eletrobras e a contratação das térmicas não recebeu nenhuma vírgula, apesar dos pouco mais de três mil caracteres. Apelidada de emenda “à la Saramago”, referência ao autor português que escrevia em períodos longos, ela não foi separada por vírgulas para evitar que pudesse ser vetada pelo presidente. O veto derrubaria também o processo de privatização da Eletrobras, tentado desde 1996, no primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso.

A interferência do Congresso sobre o setor elétrico, primeiro, cria ruídos sobre a governança. O modelo da área foi sancionado em 2004 pela lei 10.848. Depois do racionamento de energia elétrica de 2001, fez-se um diagnóstico sobre o que levou o país à crise histórica. Um dos pontos levantados foi a falta de planejamento, que teria ficado à deriva. Em 2004, criou-se a Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE), um órgão com sede no Rio de Janeiro e cuja missão é desenvolver estudos sobre o planejamento do setor. Anualmente, elabora premissas que baseiam a contratação de energia elétrica.

Congresso e Senado, ao contratarem 8 GW de capacidade de térmicas a gás natural, interferiram nessa governança e impuseram essa contratação. “O Congresso impôs essa contratação, uma medida de cima para baixo. Não se estudou o problema, não se atendeu aos interesses do setor. Esse caso de imposição de térmica com gás importado é um insulto à racionalidade técnica e econômica. Não sou contra térmica, acho que, com a evolução da matriz com fontes intermitentes e resistência à construção de novas hidrelétricas, as termelétricas são essenciais, mas térmicas despachadas pelo Operador Nacional do Sistema. Esse jabuti criou térmicas despachadas pelo Congresso. Essas térmicas irão operar com 70% de inflexibilidade. O que é isso? Isso significa que essas usinas irão operar 70% das horas do ano, uma hidrelétrica com reservatório cheio opera 60% a 65%. Isso não vai sair barato. Em uma matriz tão limpa quanto a brasileira, com sol, biomassa, vento, recurso hídrico, teremos térmicas que operarão muito tempo. Isso não faz sentido”, observa Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica e ex-presidente da Associação Brasileira dos Grandes Consumidoras de Energia (Abrace).

Interferência do Congresso e do Senado sobre o setor elétrico foi criticada por especialistas: ‘Esse caso de imposição de térmica é um insulto à racionalidade técnica e econômica’, disse Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Foto: AEN/Governo do Paraná)

Essas termelétricas irão operar em tempo integral com capacidade mínima de 70% por pelo menos 15 anos. “Consequentemente, as emissões anuais de gases de efeito estufa representarão um acréscimo de 17,5 MtCO₂e ou um aumento percentual de 32,7% em relação às emissões de todo o setor elétrico registradas em 2019”, aponta a atualização da nota técnica sobre os impactos ambientais dessas termelétricas publicada pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). As emissões anuais resultantes da inserção de 8 GW em usinas termelétricas a gás natural previstas pela Medida Provisória estão escalonadas entre os anos de 2026 e 2030, atingindo o pico entre os anos de 2030 e 2040 quando todas estiverem em operação. 

Em uma matriz tão limpa quanto a brasileira, com sol, biomassa, vento, recurso hídrico, teremos térmicas que operarão muito tempo. Isso não faz sentido”, diz Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica

Além de um aumento das emissões, a imposição dos parlamentares também afetará a dinâmica de preços do setor elétrico, elevará subsídios e intensificará desequilíbrios estruturais. “Esse é o custo do Congresso, muita oferta foi decidida para entrar em operação independente da necessidade do sistema”, destacou Luiz Barroso, presidente da PSR, que divulgou o estudo no Enase (Encontro Nacional de Agentes do Setor Elétrico). 

Sobreoferta de energia

A contratação de 8 GW de térmicas a gás natural irá aumentar a sobreoferta física de energia elétrica entre 2022 e 2030, podendo superar 20% em média em alguns anos nesse período, segundo análise da consultoria PSR. Isso significa o quê? Que haverá mais energia do que o previsto no mercado. O problema é que as distribuidoras operam com sobreoferta desde 2014, por conta da recessão, efeitos da pandemia e crescimento da geração distribuída solar e mercado livre. Resultado: a maior sobreoferta amplia as incertezas para as distribuidoras, que atendem residências e pequenas indústrias.

Isso se alia ao fato de que o risco hidrológico deve permanecer alto nessa década, o que significa que as hidrelétricas, que respondem por mais da metade da eletricidade gerada no país, não conseguirão gerar o valor esperado. A sobreoferta tende a pressionar os preços para baixo, o que pode reduzir margens de agentes que já negociam contratos e “até dificultar (desincentivar) a entrada de novos agentes em geração”, segundo estudo da PSR encomendado pelo Ministério da Economia. Esse ponto poderá ter impacto sobre a futura ideia de expansão do mercado livre de energia, hoje restrito a um universo de 10 mil grandes empresas. Atualmente, discute-se no Congresso o Projeto de Lei 414, que trata da abertura do mercado para as residências, que assim ganhariam a liberdade de escolha do fornecedor. Com maior sobreoferta de energia, os preços no mercado livre tendem a ficar mais atrativos. Isso poderia acelerar a migração para o mercado livre, deixando uma conta bilionária a ser paga.

Pelo modelo de 2004, as distribuidoras são obrigadas a contratar energia em contratos de longo prazo. Hoje algumas mantêm contratos que expiram apenas daqui a 20 anos. São os chamados contratos legados. A abertura total do mercado livre implica resolver esse ponto. Uma saída seria a cobrança de um encargo de transição. 


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