O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) mantém empréstimos de R$ 8,7 milhões a fazendeiros autuados pelo Ibama por crimes ambientais no Cerrado – muitos deles, em condições que, se reproduzidas na Amazônia, inviabilizariam o aporte financeiro. São produtores rurais que tiveram parte ou a totalidade de suas propriedades embargadas e foram responsabilizados por desmatar milhares de hectares de vegetação nativa sem autorização, mas apesar disso tomaram crédito para os mesmos municípios onde os embargos foram registrados.
O Manual de Crédito Rural do Banco Central condiciona empréstimos a fazendeiros na Amazônia à “inexistência de embargos vigentes” por desmatamento nas áreas – embora a Repórter Brasil já tenha revelado casos que parecem descumprir a regra.
Mas não existem freios legais para repasses aos fazendeiros que destroem o Cerrado – que ocupa 40% da área de Mato Grosso, principal produtor de soja e dono do maior rebanho do Brasil. Em 2022, o desmatamento nesse bioma cresceu 25,29% em relação ao mesmo período do ano passado, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) – é a maior área desmatada nos últimos seis anos.
“Esse quadro é grave, porque o Cerrado é a savana mais biodiversa e antiga do planeta. Cerca de um terço da biodiversidade brasileira está neste bioma”, afirma Frederico Machado, especialista em Políticas Públicas e líder da Estratégia de Conversão Zero do WWF-Brasil. Conhecido como “o berço das águas”, oito das 12 principais bacias hidrográficas do país nascem ali.
Em alguns casos identificados pela Repórter Brasil, parte da produção dos fazendeiros financiados com dinheiro público acabou na cadeia produtiva de gigantes como a JBS, Cargill e Bunge – quadro que ganha maior importância diante da aprovação, pela União Europeia, de uma lei que proíbe a entrada de produtos agrícolas importados pelo bloco quando produzidos em áreas desmatadas em seus países de origem. Mas o desmatamento na maior parte do Cerrado brasileiro ficou de fora desse veto, o que pode levar a uma aceleração das derrubadas por lá, segundo avaliação do Observatório do Clima.
Grandes bancos falham na fiscalização
Os empréstimos milionários rastreados pela Repórter Brasil utilizaram dinheiro do BNDES mas foram intermediados por instituições financeiras parceiras do banco público: Santander, Bradesco, Sicredi, Banco de Lage Landen Brasil e os braços financeiros das fabricantes de máquinas agrícolas CNH e John Deere. Um financiamento de mais de R$ 4 milhões, já quitado e intermediado pelo francês BNP Paribas, engrossa a lista de casos que deveriam obrigatoriamente passar por análise mais rigorosa e até poderiam ser bloqueados, caso a norma do Banco Central para a Amazônia fosse também aplicada ao Cerrado.
Nesta modalidade de financiamento — chamada indireta automática — são os intermediários que devem analisar o financiamento e garantir que seus clientes respeitem padrões exigidos pelo banco de desenvolvimento, que assegura “não conceder crédito à pessoa jurídica ou física que cometa algum crime ou irregularidade jurídica”.
Pelas boas práticas internacionais vigentes, é um “absurdo financiar proprietários com áreas embargadas no Cerrado”, explica Fábio Pasin, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), organização que integra o Fair Finance International – uma coalizão que busca fortalecer o comprometimento de bancos e instituições financeiras com questões socioambientais e de direitos humanos. “Isso vai contra o nosso cenário de emergência climática e de perda de biodiversidade”, completa o advogado, que defende que o Banco Central crie uma normativa específica para o Cerrado.
Na primeira semana de dezembro, o ex-ministro do Meio Ambiente e integrante da equipe de transição do governo Lula, Carlos Minc, defendeu que “os bancos têm a obrigação de cortar o crédito das unidades que estão desmatando”.
“Isso deveria valer para qualquer bioma brasileiro pois é um incentivo ao crime e à expansão deste tipo de prática”, apoia Machado, da WWF. Segundo ele, os bancos possuem sistemas e recursos que permitiriam verificar, com o auxílio de imagens de satélites dos sistemas de monitoramento, se um determinado fazendeiro derrubou parte da mata. “Aí é ver se a derrubada foi autorizada ou não”, diz.
Em nota, o BNDES reforçou que as instituições financeiras parceiras são as responsáveis pela análise e acompanhamento do uso do recurso até o fim do contrato – e em caso de descumprimento, elas podem ser penalizadas. Já os bancos intermediários afirmaram que não concedem créditos para áreas embargadas e reiteraram seus compromissos com a pauta socioambiental. A íntegra das respostas pode ser lida aqui.
Duplo equívoco
Um dos casos levantados pela Repórter Brasil é o do pecuarista Edvair José Manzan. Ele recebeu três empréstimos do BNDES, entre abril de 2019 e agosto de 2022, todos para a compra de maquinário agrícola no município de Peixe, no Tocantins, totalizando mais de R$ 1,4 milhão. As operações foram intermediadas pelo Banco CNH Industrial Capital SA.
Só que desde novembro de 2018, um embargo do Ibama por desmatamento ilegal recai sobre suas duas únicas propriedades no município, que são contíguas. Como é preciso apresentar um Cadastro Ambiental Rural (CAR) sem embargos para tomar crédito, essa situação impediria Manzan de obter financiamento caso produzisse na Amazônia.
A Repórter Brasil acessou documentos que comprovam a venda de gado dessas propriedades para outros produtores e também para frigoríficos locais.
Mas os problemas de Manzan com a fiscalização ambiental não se restringem à cidade de Peixe. Ele teve outra fazenda embargada por desmate ilegal em junho de 2018, em Talismã (TO), também no Cerrado. Meses depois do embargo, em outubro daquele mesmo ano, contratou um empréstimo do BNDES, no valor de R$ 96 mil, endereçado àquele município, para compra de máquinas. O intermediário é o banco De Lage Landen, subsidiária nacional do holandês Rabobank.
Em maio de 2022, Manzan ainda foi multado pelo Ibama em R$ 135 mil por desrespeitar esse embargo e criar bois na área bloqueada.
A Repórter Brasil tentou contato com Manzan por meio de seu advogado e empresa, mas não houve resposta até o fechamento da reportagem. O espaço permanece aberto para comentários.
O Banco CNH Industrial, que intermediou as operações, afirmou que “as análises realizadas à época constatavam que as normas legais e regulamentares estavam atendidas”. O Banco de Lage Landen não respondeu os questionamentos da reportagem até o fechamento do texto, mas o espaço também permanece aberto.
Desmate associado a JBS e Marfrig
Outro dos empréstimos com dinheiro público rastreados pela Repórter Brasil pode ter ajudado um infrator ambiental a produzir e vender gado para os dois maiores frigoríficos do Brasil: JBS e Marfrig.
O pecuarista Carlos Alberto Moreira recebeu R$ 600 mil de uma linha de crédito do BNDES mesmo após o desmatamento ilegal de 476 hectares em uma de suas propriedades em Araguaiana, no Cerrado matogrossense. A Fazenda Moreira II entrou na lista de áreas embargadas do Ibama em abril de 2017, e em dezembro de 2020 o BNDES concedeu o empréstimo para a compra de maquinário. A operação foi intermediada pelo Banco Cooperativo Sicredi e endereçada ao mesmo município da fazenda embargada.
Esta não era a única propriedade de Moreira em Araguaiana, o que permitiria que ele apresentasse um CAR sem embargos na hora da tomada do crédito, validando a operação, caso ela ocorresse na Amazônia. O problema é que ele cria gado nas fazendas, além de plantar soja, e a Repórter Brasil confirmou que houve repasse de centenas de animais da fazenda embargada para as outras propriedades do pecuarista. Estas, por sua vez, venderam mais de mil bois para a JBS em Barra do Garças e Marfrig em Nova Xavantina – ou seja, o recurso do BNDES pode estar ajudando um desmatador a fazer negócios com frigoríficos.
Carlos ainda tomou outros cinco empréstimos do BNDES após o embargo, totalizando quase R$ 3 milhões. Essas operações também tiveram como objetivo a compra de maquinário, mas foram intermediadas pelo banco John Deere SA e destinadas para o município de Novo São Joaquim, onde ele possui outra fazenda, a Moreira III – que desde 2021 foi bloqueada pelo sistema de monitoramento da JBS e não pode mais fornecer ao frigorífico. É um indício de que, embora não constem embargos no site do Ibama sobre este imóvel, há problemas ambientais por lá.
A propriedade é a única pertencente a Carlos neste município, segundo o Sintegra, o sistema do governo para controlar operações interestaduais. E foi justamente ali que o BNDES liberou R$ 950 mil reais em 2022.
A Repórter Brasil falou com a secretária de Moreira por telefone e enviou ao pecuarista um email solicitando seu posicionamento, mas não recebeu nenhum retorno até a publicação do texto. O espaço segue aberto para sua manifestação.
Procurada pela reportagem, a Marfrig disse que realizou apenas um abate, em fevereiro de 2018, de animais de Moreira e que, na época, a fazenda de origem não tinha irregularidades. “O produtor em questão possuía embargo em seu nome, mas em outra propriedade bastante distante daquela de onde originaram os animais abatidos na Marfrig”, explicou a empresa.
Já a JBS disse que a Fazenda Moreira II está bloqueada desde 2020, e que na época das compras, as outras duas propriedades estavam em conformidade com as políticas ambientais da empresa. “A empresa está enfrentando esse desafio setorial de estender aos fornecedores de seus fornecedores seu monitoramento socioambiental por meio de uma plataforma que utiliza tecnologia blockchain”, afirmou, reiterando o compromisso de monitorar a origem do gado abatido – do nascimento ao abate – até 2025.
Envolvimento de banco francês
Recentemente denunciado pela Comissão Pastoral da Terra por financiar crimes socioambientais na Amazônia, o braço brasileiro do banco BNP Paribas, maior banco da França, também intermediou empréstimos do BNDES a um fazendeiro dono de área desmatada ilegalmente no Cerrado.
Em julho de 2016 o produtor rural Claudenor Zopone Junior, dono de várias propriedades em Ribeirão Cascalheira (MT), tomou crédito de R$ 4,2 milhões do banco público em um contrato assinado com o BNP Paribas. Mas desde 2008, uma dessas fazendas, a Campo Azul, está embargada por conta do desmatamento ilegal de 43 hectares de mata nativa. Com prazo de pagamento de cinco anos, o financiamento já foi liquidado.
No mesmo município, coladas às fazendas de Claudenor, há outras de seus familiares. O conjunto se divide em dois grandes núcleos, cada um deles composto por diversas propriedades contíguas, mas declaradas separadamente no Cadastro Ambiental Rural (CAR) – o que contraria as regras do governo federal, que determina que todas as áreas contíguas de um mesmo proprietário devem ser declaradas em um único cadastro. Essa manobra permite que o fazendeiro apresente um CAR sem embargo na hora de tomar o crédito.
Já o embargo sobreposto à Fazenda Campo Azul foi registrado no nome de seu irmão, Cláudio Zopone, sócio de Claudenor em algumas de suas propriedades rurais.
O advogado de Zopone, Gustavo Tanaka, diz que o dinheiro era para uma empresa da família na qual Claudenor Zopone é diretor: “não tem nada a ver com as fazendas”. Mas segundo documentos acessados pela Repórter Brasil, o empréstimo foi concedido dentro do programa “Moderfrota”, a linha de financiamento do banco destinada à aquisição de maquinários agrícolas como tratores e colheitadeiras – e o dinheiro foi destinado ao cultivo de soja, mas o banco público não revela especificamente em qual ou quais fazendas as atividades econômicas seriam desenvolvidas.
Tanaka reforçou que “se foi liberado é porque tinha 100% de certeza que não tinha nada. O BNDES é extremamente exigente, se tiver uma vírgula [fora do lugar], não avança”.
Questionado pela reportagem, o BNP Paribas disse que “por razões de confidencialidade, não comenta informações relativas a seus clientes e ex-clientes”.
Falta de licenciamento
Outro produtor rural que foi agraciado com financiamentos do BNDES apesar de ter fazendas embargadas no Cerrado é Tiago Henrique Cinpak.
Em 2008 sua fazenda Boa Esperança foi embargada pelo Ibama por “não possuir licença ambiental outorgada pela autoridade ambiental competente”. À época ele também foi multado em R$ 10 mil. O caso foi julgado apenas em 2017, e em 2019 dois lotes da Boa Esperança, que fica em Lucas do Rio Verde (MT), entraram oficialmente na lista de embargos do Ibama.
Em 2018, Cinpak contratou três empréstimos milionários com linhas de crédito do BNDES, parte deles para a aquisição de maquinário agrícola no município de Lucas do Rio Verde, onde ficam os embargos. Os financiamentos foram contratados junto aos bancos Santander, Sicredi e Bradesco, somam mais de R$ 2,5 milhões, e ainda não foram quitados. Se a regra do Banco Central que veta empréstimos a fazendas embargadas fosse aplicada a este caso, Cinpak deveria ter sido convocado pelo banco a pagar antecipadamente todas as parcelas que ainda restassem na data da inclusão de sua fazenda na lista de embargos.
Mas isso não ocorreu – não apenas porque a Boa Esperança está no Cerrado, e não na Amazônia, mas porque a normativa do BC não impede contratação de crédito agrícola para ser usado em fazendas sem licenciamento. Ela apenas vale para fazendas desmatadas ilegalmente, o que vai na contramão de outros instrumentos de controle e legalidade da produção, como o TAC da Carne, que considera irregulares as compras de animais criados em propriedades sem licença.
O BNDES também diz que “não concede crédito à pessoa jurídica ou física que cometa algum crime ou irregularidade jurídica”.
Apesar disso, é essa a justificativa de Cinpak: seu crédito não descumpre qualquer regra porque o embargo é por falta de licenciamento e não desmatamento. Segundo o produtor, há um processo dentro do Ibama
para julgar o caso, mas está parado: “o governo te obriga a ter a documentação mas não consegue analisar”.
O Santander e o Bradesco, dois dos intermediários, disseram que não comentam situações específicas de clientes “por questões de sigilo bancário”. Já o Sicredi reiterou que cumpre “rigorosamente” a legislação vigente e as “melhores práticas do mercado em relação às políticas socioambientais do Brasil” (Leia na íntegra).
A soja e o milho plantados por Cinpak na fazenda embargada abasteceram grandes traders do setor. A Repórter Brasil obteve documentos que comprovam a aquisição de grãos oriundos de suas propriedades em Lucas do Rio Verde pelas gigantes Bunge e Cargill em 2019 e 2018, após a infração ambiental mas antes da entrada do produtor na lista do Ibama
A Bunge afirmou, em nota, que “não mantém relação comercial com o produtor citado e não compra grãos de áreas embargadas”, assim como a Cargill, que reforçou que as compras foram realizadas antes do embargo. Por telefone, Cinpak disse que voltou a vender para a Cargill em meados de 2022. Procurada pela reportagem, a Cargill reiterou que não tem negócios com o produtor. (Leia na íntegra)