Dossiê aponta ‘limpeza social’ dos sem-teto em São Paulo

Dossiê do Fórum Centro Vivo detalha despejos, violações e atentados contra os direitos humanos dos sem-teto. Descaso é apontado em várias frentes: massacre de moradores de rua em 2004 ainda não foi esclarecido e Secretaria Municipal de Habitação investiu só 56% do orçado para 2005
Rafael Sampaio
 31/05/2006

Em agosto de 2004, 16 moradores de rua foram surrados enquanto dormiam nos calçadões do centro de São Paulo; sete deles morreram. Quase um ano e nove meses depois deste caso que chocou a população paulistana, os criminosos continuam impunes. As investigações das autoridades levaram a seis suspeitos – cinco são policiais militares e um é segurança clandestino –, mas o trabalho feito por quatro promotores de Justiça, alguns delegados de polícia e o Condepe (Conselho Estadual dos Diretos da Pessoa Humana) foi rejeitado pelo juiz Richard Francisco, do 1° Tribunal do Júri.

A execução dos sem-teto talvez seja o mais dramático exemplo de limpeza social ocorrido em São Paulo. Esta execução está detalhada em um dossiê lançado semana passada pelo Fórum Centro Vivo (FCV). O documento, chamado de “Violações dos direitos humanos no centro de São Paulo”, disseca o processo de limpeza social ou higienização da cidade, que envolve, segundo a entidade, também a gestão do ex-prefeito José Serra.

O dossiê é dividido em sete capítulos e cada um é destinado a um grupo social: sem-teto, catadores de material reciclável, população de rua, crianças e adolescentes em situação de risco e trabalhadores ambulantes. Dois outros capítulos tratam da criminalização da pobreza e dos movimentos sociais; e o retrocesso na democratização do centro da cidade.

O FCV surgiu a partir de um seminário organizado por estudantes da USP e militantes da Central de Movimentos Populares (CMP) em dezembro de 2003, como um instrumento para agregar movimentos por moradia e ONGs de direitos humanos da cidade.

De acordo com a advogada do Centro Gaspar Garcia Luciana Bedeschi, integrante do FCV, o dossiê abre a chance de refazer o pedido de federalização do julgamento dos seis acusados pelo massacre. O primeiro pedido foi rejeitado pela Procuradoria-Geral da República. “O ex-vice-prefeito Hélio Bicudo havia feito o primeiro pedido e vamos procurá-lo para dar continuidade às investigações”, garante Bedeschi.

O Ministério Público, à época, manifestou ter certeza de que os denunciados têm culpa pelo massacre. O juiz Richard Francisco alegou que não leu todo o inquérito e se confundiu com os depoimentos que colheu. Os promotores do MP pediram o afastamento do juiz do caso, por acreditarem que não havia imparcialidade para a conclusão do processo. O pedido foi feito porque houve vazamento de informações para a imprensa, que colocaram em risco o processo e a vida de testemunhas do crime.

CORTES NA HABITAÇÃO
Lançado no Dia de Luta do Povo de Rua, o dossiê veio acompanhado de protestos por moradia em São Paulo. Na segunda (29), a Frente de Luta por Moradia (FLM) organizou um acampamento de 500 pessoas em frente ao prédio da prefeitura de São Paulo para exigir programas habitacionais para famílias de baixa renda (até três salários mínimos).

“São Paulo era um exemplo para outras cidades, porque aqui foram criados programas experimentais de financiamento e preservação para as habitações populares”, afirma Bedeschi. Mas, para a advogada, houve um grande retrocesso político desde o ano de 2005.

O programa Ação Centro, por exemplo, que previa a implantação de US$ 15 milhões em recursos para projetos de Habitação de Interesse Social (HIS), encerrou os canais de participação dos movimentos por moradia e os mecanismos de controle social. Hoje pouco se sabe sobre a real aplicação dos recursos financeiros no programa, que foi criado em convênio com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).

Há, ainda, pelo menos doze obras paralisadas do programa Morar no Centro. Tal programa criou, em 2002, o Conselho Municipal de Habitação e o Fundo Municipal de Habitação, além de garantir uma política de subsídios para as famílias de baixa renda que desejassem construir em terrenos de interesse social no centro da cidade.

O programa Bolsa-Aluguel, que beneficiava famílias pobres com subsídio de R$ 300 para pagamento de moradia, passou a funcionar durante a gestão Serra na base de processos judiciais. Foi o único meio que as famílias encontraram para garantir seu direito: na Justiça. E ainda assim, apenas 730 das 2.039 cadastradas no programa desde que foi criado, em janeiro de 2004, conseguiram garantir que receberiam o benefício.

A paralisação de 31 mutirões de autogestão na cidade prejudica aproximadamente 3.880 famílias com renda inferior a três salários mínimos. Os acordos mais recentes para levar adiante os mutirões datam de 2003 e 2004, antes da posse de José Serra. Maria da Graça Xavier, coordenadora da CMP, explica que existem mais de 107 mutirões de autogestão no estado de São Paulo, e que apenas treze receberam repasse até junho de 2005.

A prefeitura apresentou uma “solução” considerada vergonhosa pelos sem-teto: o que eles chamam de “kit volta-para-casa” ou “kit despejo”. A prefeitura oferece de R$ 1 mil a R$ 5 mil para as famílias que decidirem voltar para suas cidades de origem.

A CULPA É DE QUEM?
Para o FCV, os responsáveis pela limpeza social de São Paulo têm nome e profissão. São eles: o Subprefeito da Sé e Secretário das Subprefeituras, Andréa Matarazzo; o Secretário de Habitação, Orlando de Almeida; e o ex-prefeito José Serra.

A Secretaria de Habitação, por exemplo, investiu somente R$ 197 milhões dos R$ 346 orçados para o ano de 2005. Em relação às verbas destinadas para áreas de risco, somente 42% da verba (R$ 9 milhões) foram gastos. Além disso, o dossiê aponta a omissão do poder público em tentar mediar os conflitos em ocupações de propriedades privadas. Por
último, a gestão Serra é responsável pelo menor orçamento de habitação das últimas décadas – menos de 2% da verba total da prefeitura.

“As políticas habitacionais pertencem aos partidos ou são vitórias da sociedade?”, pergunta a coordenadora do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), Ivonete Araújo. Ela brada: “se são vitórias da sociedade, não podem ser extintos”.

PRESTES MAIA SEM LUZ
Outra reivindicação do acampamento da FLM montado no dia 29 em frente à prefeitura é de que seja religada a energia elétrica da ocupação na avenida Prestes Maia. A luz foi cortada no dia 28 pela Eletropaulo. Os acampados afirmam que só sairão se forem atendidos pelo prefeito Gilberto Kassab (PFL).

Curiosamente, a ocupação Prestes Maia resiste à onda de despejos movidos pela Justiça, com a ajuda da Polícia Militar, que acometeu o centro da cidade no ano passado. O prédio abriga 315 crianças, 380 adolescentes, 561 mulheres e 466 homens; é um imóvel com uma dívida milionária de IPTU
. Sua reintegração de posse já foi marcada e postergada diversas vezes.

O prédio tornou-se símbolo da resistência dos sem-teto que querem morar no centro de São Paulo e que lutam, a todo custo, contra a higienização da área. Diversos grupos organizados da sociedade civil, coletivos de arte, de comunicação têm trabalhado para jogar luz no cotidiano dos habitantes do Prestes Maia. O objetivo é derrubar o mito de que os sem-teto são criminosos, e assim acabar com a discriminação.

No entanto, as manifestações contra a reintegração de posse, sempre pacíficas e bem-humoradas, são alvos de represálias violentas da Polícia Militar. O Programa Especial de Habitação Popular (PEHP), que criava uma parceria entre a prefeitura e o governo federal para investir R$ 18 milhões na desapropriação do Prestes Maia e de outras três ocupações, foi cancelado.

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