EUA colocam Brasil em observação por tráfico de seres humanos

Em relatório anual sobre tráfico de pessoas, o Departamento de Estado norte-americano coloca o país no segundo pior grupo de países, depois de Afeganistão, Ruanda e Timor Leste, que passaram por graves conflitos armados
Por Beatriz Camargo
 08/06/2006

O "Relatório sobre Tráfico de Pessoas 2006", divulgado nesta segunda-feira (5) pelo Departamento de Estado norte-americano, informa que 800 mil pessoas são vítimas do problema em todo o mundo. O Brasil foi colocado em uma lista de países em "estado de atenção", pois ainda deve "potencializar esforços para combater o tráfico, especificamente na falha em aplicar penalidades criminais efetivas contra traficantes que exploram o trabalho escravo", justifica o documento. 

Ao todo são quatro grupos de países – o Brasil, até 2005, encontrava-se no segundo melhor. Hoje, estamos atrás de Afeganistão, Ruanda e Timor Leste, que viveram graves problemas causados por conflitos armados e à frente de um grupo que inclui a tríade que o Tio Sam tachou de "eixo do mal" – Coréia do Norte, Irã e Cuba. A secretária de Estado, Condoleezza Rice, disse, em carta que acompanha o relatório, que o presidente George W. Bush está comprometido em acabar com esse mercado, ajudando os governos a tomar providências e punindo com sanções comerciais os que não derem atenção ao problema. Estão sendo destinados cerca de US$ 3 milhões para o combate à prática.

Ao avaliar os avanços brasileiros em relação ao relatório de 2005, o governo norte-americano diz que o país tem combatido a malha do tráfico de pessoas trabalhando em cooperação com países para onde os brasileiros são levados, o que considera uma vitória. Ele cita que, em 2005, a Polícia Federal investigou cinco casos e prendeu 180 suspeitos de envolvimento no tráfico.

Apesar da má classificação, o documento também aponta avanços. Relata que o governo brasileiro fez propostas de reformas nas leis para deixar mais rígidas as medidas contra certos tipo de escravidão e contra o tráfico de exploração sexual. Entretanto, o texto não cita o motivo dos entraves, como a briga interna com a bancada ruralista do Congresso para aprovar, por exemplo, a PEC 438, que prevê a expropriação de terras de fazendas que comprovadamente utilizaram trabalho escravo.

O relatório avalia que a legislação criminal pode ser aplicada nesses casos, com uma possível prisão de até três anos para quem manteve cativos seus trabalhadores, mas isso raramente acontece na prática. Ele acrescenta que não existe evidência de cumplicidade institucional no tráfico, mas houve casos isolados de pessoas ocupantes de cargos públicos que usaram mão-de-obra escrava em sua fazenda. Em um processo levado à Justiça no período entre 2005 e 2006, "um senador foi julgado por exploração de trabalhadores em condições análogas à escravidão", analisa um trecho do documento, fazendo provável menção ao caso do senador João Ribeiro. "Embora 4.113 trabalhadores escravos tenham sido libertados, os responsáveis pelos crimes permanecem impunes à Justiça", denuncia o relatório.

Não há citação de nenhuma fonte dos dados numéricos fornecidos no informe do departamento do estado norte-americano. A estimativa de que 25 mil brasileiros sejam trabalhadores escravos na zona rural, por exemplo, é um dado da Comissão Pastoral da Terra, origem da maioria dos números citados na parte referente ao Brasil.

Origem e destino
No relatório, o Brasil foi mencionado como um país que é ao mesmo tempo receptor e "exportador" de pessoas. Entretanto, o documento traz informações erradas e pouco específicas, como na referência aos imigrantes que vêm trabalhar em território brasileiro: diz que "algumas vítimas estrangeiras da Bolívia, Peru, China e Coréia são explorados no trabalho em fábricas, mas o número é bem menor que o de brasileiros traficados dentro do país ou para fora". O dado é impreciso, já que chineses e coreanos não são explorados na rede de escravidão urbana, que se concentra nas confecções clandestinas da cidade de São Paulo. Na realidade, os trabalhadores são principalmente bolivianos, mas há também outros sul-americanos como peruanos, paraguaios e uruguaios. As autoridades brasileiras não têm dados para quantificar esses imigrantes, pois trabalham de forma irregular. Segundo dados da Pastoral do Migrante Latino-Americano, há entre 600 e 700 mil pessoas nessas condições em São Paulo, sendo que 60% delas estão no país de forma ilegal.

Principais vítimas do tráfico de pessoas para fins sexuais, mulheres e meninas brasileiras são levadas para países da América do Sul, Caribe, Europa, Japão, Estados Unidos e Oriente Médio. Segundo o documento do governo Bush, aproximadamente 70 mil brasileiros, em sua maioria mulheres, vivem da prostituição no exterior, muitas delas vítimas do tráfico de pessoas. O turismo sexual infantil, concentrado em áreas de resorts e cidades do litoral nordestino, foi citado no como outro problema a ser resolvido.

A definição de tráfico de pessoas hoje, considerada internacionalmente, baseia-se na Convenção da ONU contra o crime organizado transnacional, de 2004. São definidos três momentos: aliciamento, transporte e alojamento para fins de exploração. Esta última pode ser sexual – que afeta principalmente mulheres e crianças; para o trabalho escravo em lavouras e outros tipos de trabalho forçado; para o uso dos órgãos.

Tráfico de pessoas e preconceito
Em relação às pessoas que saem do Brasil, especialistas alertam para o fato do tráfico de pessoas se confundir com mais dois fenômenos: a prostituição de brasileiras no exterior e a migração irregular. "Embora interligados, esses fenômenos são diferentes. É preciso tomar cuidado porque muitos países se utilizam do argumento de combate ao tráfico de pessoas para exercer uma política migratória e barrar a entrada de estrangeiros", explica a assessora da Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), Bárbara Campos.

Bárbara cita casos de mulheres jovens e solteiras que passaram por situações constrangedoras em alfândegas na Europa. Ela aponta Portugal e Espanha como os países mais agressivos nesse comportamento, muitas vezes baseado no preconceito. Uma pesquisa comandada pela SNJ, em agosto de 2005, concluiu que Portugal é o país que mais recusa a entrada de brasileiros, enquanto a Itália é o que mais os deporta.

Políticas para erradicação
Desde sexta-feira passada (2), o governo federal abriu consulta pública sobre a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que está sendo elaborada pelas Secre
taria Nacional de Justiça, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e Secretaria Especial de Direitos Humanos. O documento traz diretrizes e princípios que deverão ser obedecidos no combate ao tráfico de pessoas no Brasil e envolve 11 ministérios, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Trabalho.

As contribuições para o documento podem ser feitas até o dia 25 de junho. No seminário nacional sobre o tema, a ser realizado no dia 29, em Brasília, o texto será concluído e depois enviado à Presidência da República para entrar em vigor por decreto presidencial.

Hoje, a maior dificuldade enfrentada pelos agentes que lutam contra o problema é a falta de verbas. Bárbara Campos acredita que o decreto pode tornar a erradicação do tráfico de pessoas uma prioridade do governo e deve significar um orçamento maior para a área. "O tema passa a ser uma política de Estado e a não depender mais de um governo ou de outro", analisa.

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