Encontro instaura diálogo entre governo e movimentos sobre transposição

Sociedade civil e governo retomaram discussões em torno de um tema mais amplo - o desenvolvimento do Semi-Árido. Encontro emergiu de acordo que pôs fim, em outubro de 2005, à greve de fome do bispo de Barra (BA), Dom Luiz Flávio Cappio
Maurício Hashizume
 11/07/2006

Uma das dezenas de liminares que contestam o início das obras de transposição do Rio São Francisco permanece à espera de julgamento no Supermo Tribunal Federal (STF). A mudança de patamar das disputas em torno de um dos projetos mais polêmicos do governo federal não veio, contudo, de nenhuma nova decisão da Justiça. Reunidos no auditório subterrâneo do prédio que abriga o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) na capital da República, representantes da sociedade civil e gestores governamentais participaram, nos últimos dias 6 e 7, do primeiro encontro de reaproximação entre as partes, como resultado do compromisso assumido desde a suspensão da greve de fome promovida ao longo de dez dias (26 de outubro a 6 de novembro do ano passado) pelo frei Dom Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra, na Bahia.

Assessor da Subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil da Presidência da República e coordenador do grupo de trabalho intergovernamental sobre o projeto de integração do Rio São Francisco com as bacias do Nordeste Setentrional – como o governo denomina o projeto de transposição -, Pedro Bertone reconhece que houve erro na forma como a questão foi colocada anteriormente. Agora, ratifica o assessor, a ordem do Palácio do Planalto é a de intensificar o diálogo com base em referências mais amplas, para além da mera obra de engenharia da transposição. “A obra está integrada a outro projeto maior de desenvolvimento para a região do Semi-Árido. Sem outras ações, como a própria revitalização do Rio São Francisco, a obra deixa de ter sentido”, argumenta.

Uma série de outras ações – como o Programa 1 Milhão de Cisternas, a construção de pequenas barragens e a constituição de assentamentos da reforma agrária, entre outros – fazem parte desse projeto maior de desenvolvimento do Semi-Árido, enfatiza Bertone. Segundo ele, a retomada do diálogo se dará a partir de mapeamentos temáticos “livres de paixões” e o governo está disposto a negociar, reavaliar e rever contornos e linhas do projeto, mas não tem dúvidas sobre a necessidade e o potencial único da obra. “Todos os outros projetos (de desenvolvimento do Semi-Árido) são necessários, mas são insuficientes. Só a transposição garantirá a sustentabilidade (do conjunto de projetos voltados para a região)”, sustenta. A hipótese de engavetamento do projeto, adiciona o assessor da Casa Civil, não existe. “Não seria o projeto com maior orçamento da União se houvesse dúvidas sobre a importância da obra”.

Mesmo assim, o coordenador do grupo de trabalho assegura que o início da obra não depende apenas da retirada de obstáculos judiciais, como chegou a declarar o ministro da Integração Nacional, Pedro Brito. O substituto do ex-ministro Ciro Gomes – que se desligou do cargo para disputar uma cadeira como deputado federal pelo Ceará nas próximas eleições de outubro – disse em seminário organizado por fazendeiros da Região Nordeste que a pasta já transferiu uma primeira parcela de R$ 100 milhões ao Ministério da Defesa para que os batalhões de engenharia do Exército possam dar início às obras da transposição tão logo a liminar seja derrubada. Bertone, por sua vez, afiança que o governo escolheu trilhar, de forma peremptória, o caminho da “prudência”, especialmente neste período de retomada de diálogo.

Dom Cappio participou dos dois dias de conversa, assim como outras personalidades importantes como Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e representantes do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), de organizações como a Articulação do Semi-Árido (ASA) e movimentos sociais com forte atuação no Nordeste. “O encontro foi bastante esperançoso. Pela primeira vez, a sociedade civil está sentada ao lado do governo para discutir não só a questão da obra, mas as possibilidades de ações para o povo que vive no Semi-Árido”, define. Para ele, a primeira oficina – que se desdobrará em encontros posteriores com as populações das regiões envolvidas – teve o mérito da transparência. “Cada um disse o que pensa. Essa é a principal senha para se debater pontos divergentes com clareza e objetividade”, assinala, ressaltando que os acordos que emanarem da interlocução reativada ainda precisam ser cumprido “para que não sejamos apenas instrumentalizados”.

A segurança hídrica – principal justificativa do projeto de transposição – não basta, reitera o bispo, para atender os interesses do povo e da nação. “Lá em Barra, onde vivo, vejo de uma das janelas o Rio São Francisco. Há populações miseráveis que vivem bem próximas da água. Quem garante que essa mesma água vai garantir o desenvolvimento aos de longe se nem quem está perto é atendido?”, questiona. “Desenvolvimento é bem mais do que água”.

O religioso que chegou a empreender greve de fome pela interrupção do projeto de transposição identifica o início de um movimento importante de esclarecimento dos pontos de concordância e divergência entre os atores sociais. “Eu quero acreditar no processo. Esse primeiro encontro não foi importante apenas para o diálogo da sociedade civil com o governo. Foi importante também para o diálogo do governo com setores do próprio governo”.

Depois de muita conversa, foram definidos três grandes grupos de trabalho temáticos – disponibilidade hídrica, revitalização do Rio São Francisco e projetos de desenvolvimento no Semi-Árido. Esses espaços devem ter participação paritária entre integrantes do governo e membros da sociedade civil. Uma comissão formada por 12 representantes de entidades civis e das pastas ligadas ao tema deve marcar uma nova reunião nos próximos meses, antes da agenda pública de debates locais.

Entre os povos indígenas, a mobilização de resistência à obra de transposição nunca esmoreceu, relata Marcos Sabaru, do povo Tingui-Botó, de Alagoas. “Começa na Ilha de Assunção, onde vivem os Truká, e une diversos povos como os Tumbalalá, os Tinguis. etc.”. Para Sabaru, o diálogo foi reaberto pelo governo por causa do calendário eleitoral: para não contrariar indígenas, pescadores, quilombolas, setores da Igreja Católica e diversos outros segmentos que são contra o projeto. “Mas também é importante ouvir as pessoas. Aqui é só conversa. Se tiver validade, tem que aparecer em atos”.

Para Luiz Carlos da Silveira Fontes, coordenador do Baixo São Francisco do CBHSF e professor do Departamento de Engenhari
a Agronômica da Universidade Federal de Sergipe (UFS), a rodada inicial de conversas reabre espaço para questões que haviam sido perdidas: o debate sobre a gestão das águas do Rio São Francisco e a definição da ordem de prioridades dos investimentos públicos. Nos próximos dias 13 e 14 de julho, o CBHSF realiza a sua décima plenária na cidade de Aracaju, em Sergipe. Serão analisados temas relevantes ligados à gestão das águas como a criação da agência do Rio São Francisco, prevista ainda para este ano, e a implementação da cobrança pelo uso das águas da bacia, planejada para 2007.

Bertone, da Casa Civil, admite que o governo está disposto a recolocar na mesa as diferenças de destinação da água: uso para consumo humano ou uso econômico. O plano de gestão da Bacia do Rio São Francisco, aprovada no âmbito do CBHSF depois de um processo longo de consultas públicas, não descarta em absoluto a transposição, desde que seja limitada e exclusivamente para consumo humano. “Neste primeiro momento, não houve tentativa de imposição do governo federal. Ainda não podemos, porém, antecipar o que vai dar no final”, observa Fontes. “Mas está claro que a imposição é o pior caminho. Perpetua o conflito”.

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