Urbanidade suja

Artigo – Uma nhaca paira sobre nós

Quem nunca veio a São Paulo talvez tenha dificuldade em imaginar o que é conviver com uma faixa escura preenchendo o lugar onde estaria o horizonte. Os noticiários salpicam aqui e ali a tal da inversão térmica, mas nada de falar sobre o nosso modo de vida e seu conseqüente modelo de desenvolvimento
Por Leonardo Sakamoto
 14/07/2006

Sou nascido e criado paulistano, ostentando algumas virtudes e todos os vícios do povo do planalto de Piratininga. Um deles, um certo acomodamento perante o que se olha mas não se vê, fez com que eu sempre deixasse para depois esse assunto. Mas, quarta-feira (12), ao chegar a São Paulo pelo alto, a imagem da cidade imersa numa camada marrom e espessa, uma nhaca de centenas de metros de altitude e quilômetros de largura, foi a gota d´água.

Quem nunca veio a São Paulo talvez tenha dificuldade em imaginar o que é conviver com uma faixa escura preenchendo o lugar onde estaria o horizonte – levantado, por ela, alguns centímetros do seu lugar de direito. Talvez pelo fato disso parecer distante, o paulistano não acredita que está imerso nessa coisa. Só cai na real quando os olhos começam a coçar, a asma ataca ou aquele pigarro fica mais comprido que o de costume. De acordo com o ambulatório de doenças respiratórias do Hospital das Clínicas de São Paulo, um dos maiores do país, todo o inverno há um aumento de casos de problemas respiratórios, agravados pela poluição.

A verdade é que nos acostumamos a viver dentro de um fumódromo, literalmente. Pois no longo prazo, quem vive em São Paulo mesmo sem tragar tabaco está mais sujeito a desenvolver câncer de pulmão do que moradores de cidades menos “desenvolvidas”.

Chamam de inversão térmica o maldito efeito que dificulta a dispersão de poluentes nessa época do ano (incrível como a natureza é culpada pelas desgraças que nós mesmos cometemos, como se ela tivesse colocados os poluentes lá). Os noticiários salpicam aqui e ali a inversão térmica, mas nada de falar sobre o nosso modo de vida e seu conseqüente modelo de desenvolvimento – verdadeiros réus pela nhaca que paira sobre nós. Carbono, enxofre, chumbo e uma sopa de produtos químicos expelidos por indústrias mas, principalmente, veículos.

O município de São Paulo tem uma manada de quase um carro a cada dois habitantes, cuspindo fumaça no céu. Culpa em parte do nosso pífio sistema de transporte público, que apesar de ter melhorado um pouco nos últimos anos, está longe ainda de garantir que o paulistano que tem carro deixe-o em casa. Mas também culpa de cultivar um estilo de vida em que o sonho de liberdade desliza sobre rodas.

E não é a inspeção veicular, prometida pelo governo do estado, que vai dar conta de resolver o problema. Vamos expulsar Fuscas, Brasílias, Variants, 147s, caminhões velhos de circulação (ou seja, eliminar o meio de locomoção da ralé) mas as propagandas que anunciam carros grandes e potentes, beberrões de gasolina e diesel na televisão continuarão povoando o imaginário e sendo adquiridos pelas classes abonadas. O Rodoanel, que quando concluído circundará a cidade, vai eliminar parte dos caminhões, mas a frota paulistana vai continuar aqui.

O ritmo de destruição do meio foi acelerado para atender a consumidores, mas não cidadãos. E vem cobrando um preço alto, cuja fatura será paga por aqueles que ainda são pequenos. Florestas tombam, rios são poluídos, camponeses e índios expulsos de suas terras. A cidade está envolta em um bizarro chumaço de algodão marrom. Trocar uma sociedade extremamente consumista, em que o “eu sou” se confunde com o que “eu tenho”, leva tempo. Talvez o meio ambiente não tenha esse tempo.

É um modelo diferente de urbanidade que eu quero. Um em que não tenha que ficar angustiado por causa de um pôr-do-sol estranhamente avermelhado, fruto da poeira suspensa no ar. Por isso, vendi meu carro há muito tempo. Ando a pé e de ônibus, uma carona de vez em quando. Mas, conterrâneo paulistano, não desejo convertê-lo a nada, longe disso…

Só quero o céu da minha cidade de volta.

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