Empresa instala guarita e impede camponeses de acessarem seu território tradicional

Liminar em abril deste ano fez Canabrava Agropecuária recuar do bloqueio a terreno que ela diz ser seu. Desembargador apontou risco de escalada de violência e ameaça a modo de vida tradicional em decisão
Por Gil Alessi
 24/09/2023

Amarolina Alves da Chaga pode não se lembrar exatamente quantos anos tem – “mais de setenta” é a resposta que ela dá quando alguém pergunta sua idade. Mas a senhora de cabelos brancos recorda com clareza o que aconteceu com a casa que construiu dentro do pasto coletivo da comunidade de São Marcelo, em Formosa do Rio Preto (BA). “Colocaram fogo em tudo, queimaram tudo. Perdemos cama, panela, móveis, tudo, tudo”, conta, emocionada. O incêndio ocorreu em julho de 2022 e os destroços chamuscados da casinha e a pilha de tijolos revirados seguem no mesmo lugar.

“Lá era tão calmo, a vida era boa. A gente criava as galinhas, ia pescar. Era tão bom, tão bom”, recorda.

Esse não foi um fato isolado. Em setembro de 2021, moradores que tentavam acessar a área do pasto coletivo em um carro foram alvejados. “Era um casal de idosos com os netos, estavam indo passar o dia de domingo nas ‘gerais’. Foram fechados por duas caminhonetes cheias de homens encapuzados que dispararam sete vezes contra a porta do motorista. Ele escapou por pouco”, relata Aurélio Ferreira Lemos, 28 anos. Ele próprio relata ter sido vítima da violência no final do ano passado, quando acordou com tiros em frente a sua casa.

“Fui até a porta ver o que era, e os pistoleiros estavam lá, com a caminhonete parada, armas para fora”, lembra.

Moradores da comunidade São Marcelo, no oeste baiano, afirmam que ataques de homens armados são recorrentes e atribuem atentados à empresa Canabrava Agropecuária

Os moradores atribuem os ataques a uma empresa chamada Canabrava Agropecuária, que reivindica para si a área utilizada pela comunidade como pasto coletivo. É uma situação que se repete em outras comunidades.

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A Canabrava alega que é a “legítima proprietária” do terreno há mais de 30 anos, que tem todos os documentos de posse registrados em cartório e que tem tomado medidas para proteger seu patrimônio. Mas diz que repudia os atos de violência. “Mesmo que tenha interesse em colaborar com a Comunidade de São Marcelo, a Canabrava não pode permitir que pessoas mal-intencionadas se utilizem de moradores daquela comunidade para praticar danos ambientais e tentar usurpar áreas de terra de sua propriedade”, justifica. A íntegra pode ser lida aqui.

Em novembro de 2022, a companhia instalou uma guarita com cancela na área e passou a bloquear a entrada dos moradores. Segundo a empresa, a iniciativa visava proteger o território de “graves danos ambientais, a exemplo de pesca predatória, desmatamentos e incêndios às margens dos rios” que a Canabrava diz estarem sendo feitos pelos moradores da comunidade São Marcelo – a Justiça da Bahia diz que a empresa não apresenta provas dessa afirmação e emitiu uma liminar em favor dos camponeses.

Empresa diz que guaritas protegem o território de danos ambientais causados por moradores. Decisão na Justiça apontou que a Canabrava não apresentou provas das alegações

Em decisão de segunda instância, que manteve a liminar, o desembargador Josevano Andrade disse que quem sofre “risco de dano grave” não é a Canabrava, mas sim a comunidade de São Marcelo, com uma possível “escalada das violências praticadas” e de “perdas irreversíveis” em relação ao seu modo de vida tradicional.

A reportagem passou pela guarita durante a visita ao São Marcelo em junho. A cancela que bloqueava o acesso estava aberta. Mas seguranças da empresa continuam no local, e fotografaram a placa do carro da Repórter Brasil na entrada. “Eles fazem isso para intimidar. Entram na comunidade em alta velocidade, dão tiro pra cima, querem acabar com nossa paz, pra ver se a gente vai recuar. Mas não vamos”, avisa Lemos.

“Nós somos igual uma pombinha dentro da gaiola. Moramos numa ilha, estamos cercados [por grileiros]. Os caras que moram longe vem querer desalojar os pobres ribeirinhos. Vocês acham que não é triste não, gente?”, indaga Amarolina.


Expediente Faroeste Baiano
Reportagem: Gil Alessi
Fotografia: Fernando Martinho
Edição e checagem: Naira Hofmeister
Pesquisa: André Campos e Poliana Dallabrida
Coordenação: André Campos
Redes sociais: Tamyres Matos


Este especial foi produzido com o apoio da World Animal Protection (WAP)


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