O ouro do Jalapão

No Jalapão, estado do Tocantins, uma das áreas mais ermas do Brasil, a comunidade está trocando as práticas tradicionais da lavoura e da pecuária por uma nova atividade econômica: o artesanato do capim-dourado.
Por Juliana Borges e Maurício Monteiro Filho
 01/01/2003

 

O menino Flávio Ribeiro, da comunidade do Prata, carrega a planta que vira ouro.

O menino Flávio Ribeiro, morador da comunidade do Prata, ignora que carrega nas mãos as raízes de um futuro incerto para as populações da região do Jalapão, estado do Tocantins.

Os habitantes do vilarejo em que vive o garoto, no município de São Félix do Tocantins, têm assistido, nos últimos três anos, a uma verdadeira revolução, que já atinge as principais cidades do Jalapão. Numa das áreas mais ermas do Brasil, um deserto populacional de densidade demográfica menor que a da Amazônia – abaixo de 0,6 habitante por quilômetro quadrado –, os moradores de Ponte Alta do Tocantins, Mateiros, São Félix e Novo Acordo, maiores municípios do Jalapão, estão trocando as práticas tradicionais da lavoura e da pecuária por uma nova atividade econômica: o artesanato do capim-dourado, uma espécie típica da região, que chama a atenção por sua cor de ouro.

Deserto de águas

Situado na porção leste do Tocantins, mas alcançando também os estados do Maranhão, Piauí e Bahia, o Jalapão é uma terra de extremos. Entretanto, ao contrário do que acontece no restante do país, os paradoxos da região são predominantemente de natureza ambiental. Em termos sociais, a miséria e a escassez de recursos são iguais para os habitantes daquela área. E são justamente os contrastes ecológicos as maiores riquezas do lugar. Em oposição ao cerrado ralo que recobre o solo arenoso do Jalapão, as nascentes, rios e cachoeiras são abundantes em toda parte. O resultado é uma imensidão semi-árida recortada por águas límpidas.

Pela exuberância do ecossistema, a região despertou o interesse dos visitantes e, a partir de 1998, passou a ser alvo de agências especializadas em ecoturismo. Assim, na estação seca – o verão, que corresponde, no Jalapão, aos meses de junho e julho –, são numerosos os grupos de turistas de todo o Brasil que enfrentam areia e lama para chegar às principais atrações do lugar: as cachoeiras da Formiga e da Velha, o Fervedouro – pequena nascente de águas cristalinas com fundo de areia – e as dunas.

A vegetação desértica das dunas do Jalapão.

Devido à crescente ação humana, o Jalapão tem sido submetido a uma intensificação do processo natural de erosão. Por causa da fragilidade da vegetação e das características do solo, essa interferência potencializa a desertificação da área. Por isso tornou-se necessária a criação do Parque Estadual do Jalapão, em janeiro de 2001. "A intenção foi conter a exploração desenfreada do turismo", declara Alexandre Rodrigues, diretor de desenvolvimento sustentável do Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), órgão responsável pela gestão do parque.

A diversidade ecológica da região e os impactos que ela vem sofrendo também levaram o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em conjunto com a Conservation International e pesquisadores da Universidade de Brasília, a montar uma expedição ao Jalapão, em maio de 2001. "O objetivo foi estabelecer unidades de conservação (UCs) fora do parque", justifica Miguel von Behr, coordenador do grupo. Ao fim de um mês, a viagem resultou na criação de um corredor ecológico que integra quatro UCs – Áreas de Proteção Ambiental Serra da Tabatinga e do Jalapão, Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, na fronteira entre Bahia e Tocantins, e Parque Nacional Nascentes do Parnaíba, situado na divisa de Piauí, Maranhão, Tocantins e Bahia –, além do parque estadual. Segundo Von Behr, atual gerente do corredor ecológico, a iniciativa se deve ao fato de o Jalapão ser considerado uma das áreas prioritárias de conservação do cerrado.

Do relatório da expedição, publicado em fevereiro de 2002, constam, além de estudos técnicos sobre fauna e flora, avaliações sobre a situação das comunidades tradicionais daquela região. A partir do levantamento humano feito pela equipe do Ibama, foram realizadas oficinas de planejamento com os moradores dos municípios de Ponte Alta, Mateiros e São Félix, com o intuito de identificar suas principais reivindicações. Em todos os encontros, foi unânime a preocupação com o capim-dourado.

O artesanato do campim-dourado.

Progresso dourado

Por meio do artesanato da planta, o mundo chegou às populações nativas do Jalapão. E o fez num turbilhão iniciado há apenas quatro anos. Nesses povoados centenários, cujo número de habitantes não chega a exceder o de seus anos de existência, todas as necessidades da comunidade eram supridas por ela própria, de panelas de barro a chapéus para proteger do sol escaldante que castiga os roçados nos meses de seca, quando a temperatura ultrapassa facilmente os 40 graus.

Nas palavras de Guiomar Ribeiro da Silva, moradora do povoado de Mumbuca, localizado em Mateiros, a nova fonte de sustento de sua comunidade também teve origem naquelas terras. "O capim-dourado foi nascido e criado aqui", orgulha-se. Ela, como a grande maioria das mulheres e alguns dos homens do vilarejo, está trocando a lavoura e as antigas práticas artesanais pelo trabalho com o capim-dourado. Na verdade, no caso de Mumbuca, não se pode dizer se a comunidade criou o capim ou foi o inverso. Certo é que a história de ambos é indissociável.

"Minha mãe aprendeu o artesanato com os índios", conta Guilhermina Ribeiro da Silva, a dona Miúda, de 73 anos, moradora de Mumbuca desde que nasceu e, hoje, a maior liderança da comunidade. Aos 14 anos, começou a praticar a técnica. Naquela época, porém, o artesanato era destinado apenas ao uso doméstico. Das fibras do capim, costuradas com as do buriti, outra espécie típica da região, surgiam os chapéus que protegeriam os lavradores na roça. Além disso, ele era matéria-prima para fabricar cestas, bolsas e utensílios
de cozinha. A arte de trançar suas fibras estava circunscrita a dona Miúda e outras poucas artesãs, que trabalhavam também com a macaúba, a piaçava e o próprio buriti.

A matriarca da comunidade foi a única mulher que buscou outro destino para parte de sua produção. "Eu vi que o capim ia dar progresso", afirma. Com a ajuda dos filhos, viajava até as cidades próximas, e a outras nem tanto – a própria Mateiros fica a cerca de 28 quilômetros de Mumbuca –, para comercializar as peças produzidas por ela. "Ia com o burro de carga, um saco de cada lado, vender o artesanato em Dianópolis (TO), Lizarda (TO), Corrente (PI) e Formosa do Rio Preto (BA)."

Meninas de Mubuca já crescem convivendo com o artesanato do capim-dourado.

Tradição à venda

A partir de 2000, os burros de carga deram lugar a veículos com tração nas quatro rodas, e os destinos do artesanato não mais se limitaram às cidades vizinhas, expandindo-se para os grandes centros urbanos, como Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. O governo do estado do Tocantins, através da Secretaria de Cultura, passou a incentivar a produção. Após uma consulta à comunidade de Mumbuca, foi realizada uma oficina de cinco dias para tornar as peças "compatíveis" com o mercado. "Eles já possuíam a tradição, mas não sabiam produzir com vistas à comercialização. Faziam o artesanato para usar, não para vender", explica Rosane Rodrigues, coordenadora de artesanato e arte indígena da Fundação Cultural, órgão vinculado à Secretaria de Cultura do Tocantins. Segundo ela, após alguma resistência inicial, os moradores de Mumbuca adotaram os formatos ensinados pelo designer paulista Renato Imbroisi, levado ao Jalapão pela Fundação Cultural exclusivamente para aprimorar a técnica que dona Miúda difundira na comunidade. "Hoje, são confeccionados por volta de 50 produtos diferentes", conta Maria da Penha de Faria, consultora de projetos em artesanato do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).

O incentivo do governo fez com que o artesanato ultrapassasse as fronteiras de Mumbuca. A arte dominada por dona Miúda e sua comunidade chegou a Ponte Alta e São Félix. Foi transmitida também aos moradores da cidade de Mateiros e aos povoados de Carrapato, Borá e Boa Esperança, todos no mesmo município. Às margens das estradas da região, a grande maioria das casas sustenta placas de "Vende-se artesanato de capim-dourado".

Na comunidade do Prata, onde mora o garoto Flávio, o ouro das fibras da planta começou a ser explorado quatro anos atrás. A primeira artesã foi Gracy Ribeiro, moradora do povoado há mais de 40 anos. "Antes trabalhava na roça. Agora, só no capim", relata. Ela é a responsável pela casa do artesão de sua comunidade, construída com apoio da prefeitura de São Félix para expor a produção local. Assim como os outros povoados, o Prata recebe, quinzenal ou mensalmente, a visita do carro da Fundação Cultural, que recolhe as peças para revender. "A intenção do governo é fazer com que a febre do capim-dourado não passe", explica Sônia Miranda, gerente do centro de artesanato e arte indígena da instituição e uma das responsáveis pela visita às comunidades. Essa iniciativa, no entanto, não conta com o apoio dos artesãos, que se sentem explorados, uma vez que nos grandes centros o preço das peças chega a quadruplicar.E o retorno?

As hábeis mãos de Dilva Ribeiro, da comunidade de Carrapato, trabalham as fibras do capim.

Tanto o Sebrae como a Fundação Cultural prestam praticamente o mesmo serviço às comunidades. Cedem carros para levar os moradores até os locais de coleta e transportar o material colhido, exercem uma espécie de controle de qualidade do artesanato para melhorar o acabamento das peças e cadastram todos os artesãos. A Fundação Cultural criou diplomas de "mestre-de-obras" para as pessoas que passaram pelas oficinas e estão aptas a trabalhar com o capim. Também foi fundada a Associação dos Artesãos e Extrativistas do Povoado de Mumbuca, da qual participam, além dos moradores locais, os de Borá e de Boa Esperança.

Mas a maior importância da presença dos dois órgãos nos povoados produtores é sentida no destino final das mercadorias. Ambos são os responsáveis pela "exportação" do artesanato a outros estados, através de feiras e exposições. Em Palmas, capital do Tocantins, a Fundação Cultural mantém uma loja especializada em artesanato tocantinense, que vende os artigos confeccionados no Jalapão.

Os dois órgãos garantem que todo o montante arrecadado nas vendas é repassado para os artesãos, isto é, só quem lucra são os produtores. Porém, o artesanato do capim-dourado, em função do aumento do turismo, tem sido objeto de intensa especulação e acaba chegando supervalorizado às grandes cidades. A procura cada vez maior pela arte reluzente do capim-dourado tem gerado um universo de intermediários e atravessadores, contra os quais os habitantes locais não têm defesa. "O dinheiro do turista chama a atenção e é uma necessidade. Mesmo assim, os artesãos já sabem que vender de qualquer jeito é prejudicial a eles", explica Maria da Penha. Na realidade, o turismo crescente desempenha um papel fundamental na consolidação da prática do artesanato como fonte de renda para as comunidades. "Algumas pessoas passaram a ir ao Jalapão exclusivamente para adquirir o artesanato", complementa Rosane, da Fundação Cultural. O problema são os compradores de atacado, geralmente lojistas de outras regiões do Brasil, que terão lucros exorbitantes à custa da produção dos artesãos jalapoeiros. "Vamos cobrar das empresas a repartição dos benefícios gerados pelo artesanato do capim-dourado. Uma proposta é a elaboração de contratos de compra e venda", afirma Suelma Ribeiro, bióloga do Ibama.

É essa também a opinião de dona Miúda. Junto com os termos que passaram a ser comuns no vocabulário das comunidades do Jalapão, como concorrência, lucro e exploração, ela viu chegar a Mumbuca a imprensa, com a saga do capim-dourado reduzida a matérias em revistas de moda e design e fotos de atrizes famosas com bolsas feitas da planta. Ela, melhor do que ningu&
eacute;m, sabe que o dinheiro envolvido no comércio desse artesanato é muito superior aos R$ 200 ou R$ 300, frutos da venda das peças, que complementam a renda mensal quase inexistente das famílias nativas do Jalapão.

Nas alagadiças veredas cresce o ouro do Jalapão.

Futuro incerto

Desde a época em que a mãe de dona Miúda aprendeu o artesanato com os índios, o conhecimento sobre o capim-dourado é o mesmo, isto é, quase nenhum. Somente agora, depois de a planta adquirir importância econômica, tiveram início os primeiros trabalhos científicos sobre o assunto. Entre 2001 e 2002, o Ibama fez um levantamento das áreas de ocorrência do capim e do modo como ele é explorado. Agora, pelos próximos dois anos, em uma parceria com pesquisadores da Universidade de Brasília, o órgão vai conduzir um estudo mais específico sobre o ciclo biológico e o manejo da espécie.

Por enquanto, o que se sabe sobre a planta é que ela cresce em pouquíssimos lugares do país – além do Jalapão, é encontrada apenas no sudeste do Tocantins, próximo à cidade de Rio da Conceição, e no estado de Goiás, no município de São Domingos – e sempre em áreas alagadiças, as veredas. A colheita é feita somente uma vez por ano, entre agosto e outubro, e as sementes não são aproveitadas. Uma vez que a planta é coletada inteira para depois serem extraídos os fios, as tentativas de cultivá-la não alcançaram êxito. Como todo o capim é retirado de reservas já existentes, a falta de conhecimento sobre a espécie é uma grave ameaça ao futuro da planta e do artesanato.

Com o aumento da atividade no Jalapão, em poucos anos a demanda pelo capim-dourado cresceu absurdamente. "No início só havia oito artesãs, todas de Mumbuca. Hoje, são mais de 200", explica Rosane. "Nesse ritmo, não sabemos por quanto tempo o capim resistirá", alerta Alexandre Rodrigues, do Naturatins. Por esse motivo, o Sebrae está buscando alternativas para que as comunidades não dependam exclusivamente do capim como fonte de renda. "Estamos incentivando o uso de outras espécies no artesanato", conta Maria da Penha, do Sebrae. Sobre isso, Suelma Ribeiro é taxativa. "As comunidades não podem viver só do capim", afirma.

A jalapinha, planta típica da região.

Para agravar o problema, a meta da Fundação Cultural para o ano de 2003 é baixar os preços do artesanato. "Para não afastar o comprador, nossa intenção é reduzir o valor das mercadorias", explica Sônia Miranda. Essa atitude, em vez de beneficiar os artesãos, pode ser profundamente danosa. Com o aumento da procura pelo capim-dourado, a queda dos preços pode significar um aumento insustentável nas vendas, a ponto de ameaçar a sobrevivência da espécie.

Entretanto, ofuscados pelo brilho do artesanato, parece impensável aos moradores do Jalapão procurar o sustento em outra atividade econômica. Afinal, numa região onde o dinheiro mal circulava, o capim-dourado se tornou praticamente a única alternativa de renda. Porém, segundo a legislação que dispõe sobre UCs, esse tipo de exploração é proibido em áreas de parque. "É claro que o crescimento do extrativismo do capim-dourado é um dos motivos para a criação da unidade", afirma Alexandre Rodrigues. "Nosso interesse é que a exploração seja adequada, para que possamos garantir a manutenção desse recurso no futuro", complementa.

Para as cerca de cem famílias que moram dentro dos 159 mil hectares do Parque Estadual do Jalapão, exploração adequada é sinônimo de restrição ao uso do capim-dourado e, por conseqüência, diminuição do lucro. "A gente brigou muito para ficar fora do parque, mas não conseguiu", relata Maurício Ribeiro, morador de Mumbuca, criticando a atuação do Naturatins. Além desse povoado, Borá, Boa Esperança e Carrapato também se encontram na mesma situação.

Porém, essa não é a pior ameaça a que estão submetidas as comunidades instaladas em Mateiros. Elas correm o risco de ser removidas de suas terras, uma vez que não é permitido haver pessoas morando em área de parque.

Segundo Isac Braz, presidente do Naturatins, o destino definitivo dessas populações só será conhecido ao fim da elaboração do plano de manejo do parque, o que deve acontecer ainda neste ano. De qualquer forma, ele antecipa a intenção do instituto de "conciliar o ambiental com o social". "O artesanato era uma atividade tímida, mas cresceu rapidamente e agora já exige que seja repensado o formato da UC. Hoje, seria um crime privar aquelas pessoas dessa fonte de renda", declara Braz.

Pôr-do-sol da véspera de Natal no pé da Serra do Espírito Santo, em Mateiros.

Um ano após a criação do Parque Estadual do Jalapão, nada de concreto indica sua existência. Os limites da unidade são controversos até mesmo para o próprio Naturatins. Assim, enquanto não estiver concluído o plano de manejo, permanecerá o medo dos artesãos e de suas comunidades, cada vez mais dependentes do capim-dourado.

Os olhos experientes de dona Miúda são dos poucos que conseguem enxergar através do brilho do artesanato que conheceu há mais de meio século. Evocando as lembranças do tempo em que acompanhou o marido na busca por diamantes no Piauí, ela vê, na febre que mobiliza todo o Jalapão, sua história se repetir. "O capim-dourado é o garimpo que a gente faz aqui", diz.

Jalapão, janeiro de 2003

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