Casa onde patativa nasceu |
“Meu verso rastêro, singelo e sem graça/ Não entra na praça, no rico salão/ Meu verso só entra no campo e na roça/ Nas pobre paioça, da serra ao sertão.” (Poeta da roça)
Antônio Gonçalves da Silva morreu há quase dois anos. Para quem nunca ouviu falar, ele era conhecido como Patativa do Assaré. Se o apelido ainda não é familiar, tratava-se de um dos maiores poetas “populares” – senão o maior – que o Brasil já conheceu. Falecido no dia 8 de julho, aos 93 anos, encontrava-se em pleno vigor artístico, mesmo cego e com a idade avançada.
Ele não foi eleito o cearense do século – título que ficou com o Padre Cícero – e nem é tão aclamado quanto outro poeta nordestino, o pernambucano João Cabral de Melo Neto. Mas hoje a qualidade da obra desse matuto nascido na Serra de Santana, humilde zona rural do município de Assaré (a cerca de 600 km ao sul de Fortaleza), é internacionalmente reconhecida. Patativa já foi estudado por universidades da França e da Inglaterra. No Brasil, seus poemas constam da matéria cobrada no Exame Nacional de Cursos, o Provão de Letras, e também fazem parte do Programa Nacional Biblioteca da Escola, do Ministério da Educação, que distribui milhares de livros do autor para escolas de ensino fundamental de norte a sul do país.
O apelido, ele ganhou depois de uma viagem, nos anos 30, para Belém do Pará. Um jornalista da cidade, José Carvalho de Brito, comparava a espontaneidade dos versos de Antônio à pureza do canto de uma ave típica do nordeste, a patativa. Contudo, naquela época, diversos cantadores usavam o mesmo nome artístico. Então, veio a idéia de fazer referência à cidade de Antônio. E assim ficou: Patativa do Assaré.
Violeiro, repentista, cordelista, poeta. Ele seguiu a trilha dos artistas populares do nordeste e desde jovem já mostrava seu talento, animando festas com versinhos de improviso. Porém, o que dizer de alguém que só freqüentou a escola por seis meses mas, mesmo assim, era capaz de bolar poemas com a complicada metrificação usada pelo português Luís de Camões, em Os Lusíadas?
“Ele é um poeta popular que transitou por esforço próprio, como auto-didata, pela esfera da poesia culta. Mas a identificação dele é com a poesia matuta”, explica Cláudio Henrique Andrade, que defendeu seu mestrado na Universidade de São Paulo sobre a obra de Patativa.
“Enquanto um Guimarães Rosa, um João Cabral de Melo Neto e outros escritores eruditos convertem a matéria-prima da tradição oral em alta literatura, Patativa faz o inverso: serve-se da literatura erudita para enunciar uma linguagem de comunicação direta”, explica o poeta e crítico literário Mário Chamie.
Para se ter uma idéia dessa capacidade de aprendizado por conta própria, Patativa leu o complexo Tratado de Versificação, dos parnasianos Olavo Bilac e Guimarães Passos. “Ele dava muita importância à metrificação. E fazia tudo de cabeça”, comenta Andrade.
É impressionante perceber como um agricultor pobre, sem formação escolar alguma, produzia versos com extrema desenvoltura tanto na língua culta, de academia, quanto na língua falada no dia-a-dia pelo caboclo. “Quando ele escrevia o que chamava de poesia matuta, não fazia isso por ignorância, mas por opção; para chegar mais perto do seu público-alvo”, afirma o professor da Universidade Federal do Ceará, Gilmar de Carvalho.
Existe outra característica fundamental para se compreender sua produção. “A poesia dele é para ser ouvida, e não lida”, aponta Andrade. Mais do que isso, “era uma performance. Quem teve o privilégio de ver, sabe que ela ganhava uma outra dimensão quando era enunciada por ele”, garante Carvalho.
Apesar de ter ganhado muita repercussão nos últimos anos, a obra de Patativa ainda enfrenta resistência por parte da elite intelectual mais conservadora, que a encara como folclore, coisa menor. Mesmo agraciado com o título de Doutor Honoris Causa de três universidades públicas do Ceará, muitos estudiosos ainda torcem o nariz para a poesia desse matuto cearense, que se reconhecia como tal, sem nenhum problema.
Gilmar de Carvalho: estudioso e amigo de Patativa |
“Nasci dentro da pobreza/ E sinto prazer com isso/ Por ver que fui com certeza/ Colega de Jesus Cristo/ Perdi meu olho direito/ Ficando o mesmo imperfeito/ Sem ver os belos clarões/ Mas logo me conformei/ Por saber que assim fiquei/ Parecido com Camões”
18 ingratos quilômetros separam a cidade de Assaré – com cerca de 20 mil habitantes – da Serra de Santana. Foi lá que, em 5 de março de 1909, nasceu Antônio Gonçalves da Silva, segundo filho de um pobre agricultor. Ainda hoje, é onde moram muitos de seus parentes. Todos, assim como fazia Patativa, dedicam-se ao cultivo de milho, arroz e feijão. Na serra ainda se encontra de pé, a duras penas, a casa em que ele nasceu. “Tinha que reformar para preservar”, propõe Joana da Silva, que nela vive com os filhos e o marido, sobrinho de Patativa.
O escritório do poeta era a própria roça. Costumava trabalhar sozinho, compondo versos de cabeça, “batendo os dentes”, como diz Inês Sidrão de Alencar, uma de suas filhas. Por mais longo que fosse o poema, Patativa só o transcrevia para o papel depois que estivesse totalmente lapidado na mente. A memória dele é uma lenda. A família, assim como Cláudio Andrade e Gilmar de Carvalho, garantem que ele sabia de cor a maioria de seus poemas.
Carvalho conta que viveu um dos momentos mais emocionantes ao lado de Patativa justamente na Serra de Santana. “Ele tinha uns 88 anos e me disse: ‘Gilmar, vou recitar para você o meu poema mais longo, O Vim-vim.’ Fiquei muito impressionado”, lembra. Para se ter uma noção, O Vim-vim tem quase 60 estrofes, com dez versos cada. “Ele dizia que a memória antiga dele era petrificada”, completa.
Inês também se recorda das vontades do pai, chamado respeitosamente pela família de “sinhôzinho”, reflexo do típico machismo do matuto. “Às vezes, ele me pedia para ler alguns poemas dele. Então, eu perguntava: ‘o senhor esqueceu?’ Ele respondia: ‘não, é que gosto que você leia para mim’”.
Inês e Mundinho: político nenhum merece elogio |
Patativa se mudou da Serra para o Assaré quando tinha 70 anos. “Minha mãe era muito religiosa e queria ficar perto da Igreja”, explica Inês. Para seu marido e primo, Raimundo Alencar, o Mundinho, também existe outro motivo: um atropelamento, em 1973, que prejudicou os movimentos da perna direita do poeta. “Aí ele não podia mais trabalhar na roça”, argumenta. A casa onde ele morou com a esposa Belinha, em Assaré, fica na praça central da cidade, a poucos metros da igreja.
Mundinho conta que sua mulher Inês era muito querida pelo pai. Patativa, quando fazia novos versos, costumava recitar em primeira-mão para a filha, sempre a postos para satisfazer os desejos do velho artista. O casal conta que apenas uma vez não aprovou o poema: “foi um em que ele elogiava o prefeito (Antônio de Oliveira). Político nenhum merece elogio”, contesta Mundinho.
Mesmo morando na cidade, Patativa não se desligou da sua Serra de Santana. Toda semana, pagava um carro para ver a família que havia deixado no seu “paraíso”, como costumava brincar. Lá ainda vive o primeiro filho do poeta, Geraldo Gonçalves da Silva, a “cópia fiel” do pai, como se fala em Assaré. Durante anos, além de se dedicar à lavoura, Geraldo também vendeu livros e discos autografados pelo poeta, nas cidades da região. Nesses tempos, a vista de Patativa já se encontrava bastante comprometida. “Ele escrevia o nome dele, e eu cortava o ‘t’ e botava o pingo no ‘i’”, conta Geraldo. Quando perguntado se já tentou seguir a veia artística do pai, ele responde: “poesia, a gente nasce sabendo”.
Outro bom motivo para ir até a Serra eram os encontros que Patativa mantinha com seu sobrinho Geraldo Gonçalves de Alencar, o Geraldo Poeta. “A gente ficava a tarde inteira fazendo poesia, como se fosse palavra-cruzada”, recorda. Dessas reuniões surgiu até um livro, chamado Ao pé da mesa. Curioso era a forma com que esses desafios poéticos eram conduzidos. Separados apenas por uma pequena mesa, Geraldo Poeta sentava-se com o papel e a caneta de um lado; Patativa e sua impressionante memória, do outro. E passavam o tempo assim: trocando motes, respondendo em versos.
De acordo com Geraldo Poeta, a Serra de Santana já chegou a ter mais de 30 poetas. Todos influenciados pelo mestre Patativa que, no poema Fonte Patativana, reconheceu sua importância, sem falsa modéstia. “Aos poetas do Nordeste/ Ofereço meus louvores/ Aos que são meu seguidores/ E já passaram no teste”. De acordo com Geraldo Poeta, o tio era muito rigoroso e “se um verso estava mal-feito, ele falava na hora”. Mas se alguém criticava a poesia dele, “aí ele teimava e discutia”.
Geraldo Poeta, à esquerda, e Geraldo Filho: cópia fiel do pai |
Quem o conheceu, admite que Patativa era temperamental. Não chegava a ser rude, como acusado por muitos. Porém, sempre soltava um mal-criado “quem é?” para quem se aproximava sem avisar, como numa espécie de defesa, devido à cegueira. O olho direito, ele havia perdido ainda criança, devido a um sarampo. A outra vista foi escurecendo com o passar do tempo. Também era recatado, “mas capaz de passar o dia inteiro falando de poesia. Sobre outro assunto, nem abria a boca”, comenta Geraldo Poeta.
O humor de Patativa piorava quando ficava sem fumar. “Ele dizia que o cigarro trazia a inspiração”, fala Inês. O álcool foi outro vício. Porém, esse era um assunto tabu, em que ele nem gostava de tocar. Na verdade, beber é um hábito mais do que comum entre os caboclos, única forma de diversão que resta a pessoas tão simples. Portanto, nada condenável. Mas, nas rodas de amigos, “o pessoal gostava de dar bebida a ele. Aí a poesia fluía mais”, brinca Inês.
“Vão no mesmo itinerário/ Sofrendo a mesma opressão/ Na cidade, o operário/ E o camponês no sertão” (O agregado e o operário)
Impossível dissociar a obra de Patativa do seu cotidiano de agricultor pobre, apesar de dono da própria roça. “Para ele, não há utopia. Ele fala da realidade como ela é e que cabe aos homens lutar, para que a situação não continue como está”, explica Chamie. Os protagonistas de sua literatura eram os caboclos sem terra, os mendigos, os operários pobres da cidade. Seus poemas não possuem quase nada de experiência própria, mas transpiram uma consciência social sobre a miséria que o cercava.
“A denúncia que ele faz não é panfletária nem episódica. É uma denúncia de situações que vêm se arrastando ao longo do tempo, sem solução, como a questão da reforma agrária”, explica Carvalho. Porém, o rótulo de “poeta social” veste apenas uma parte da obra de Patativa. “Querer ver só o ‘social’ é empobrecer o olhar sobre a produção dele. Ela se sustenta como matéria poética em si, porque tem musicalidade, rimas ricas, métrica”, completa.
Dessa forma, fica difícil defini-lo. Apesar de considerado um ícone para a poesia popular, sua contribuição para esse tipo de literatura é revolucionária. “Ele foi o primeiro, talvez o único, que fez uso da língua matuta para fins sérios. Para outros poetas populares, ela era um instrumento de ridicularização do caboclo”, explica Andrade.
Para Carvalho, a poesia popular é tradicionalmente conservadora. Poucos são aqueles que conseguem se libertar da influência do poder local, dos coronéis. Porém, Patativa ia na contra-mão, ao denunciar as injustiças sociais. Por isso, a obra dele tem um caráter moralizante muito forte, “mas não aquele moralismo pequeno, que condena a mini-saia e o cabelo comprido dos homens. Ele não ia perder tempo com isso”, afirma.
Cláudio Andrade: Patativa foi o primeiro a fazer um uso sério da língua do matuto |
Outra característica da obra de Patativa é a freqüente polarização entre o matuto do sertão e o “dotô” da cidade. “O matuto fala errado para desafiar o conhecimento do doutor e impor sua verdade. É uma estratégia de valorização do sujeito popular”, analisa Andrade.
As poesias de Patativa são essencialmente narrativas, e ele
se orgulhava de criar os enredos delas. Porém, nos cordéis, é muito comum ver autores que só adaptam em versos alguma trama já feita por outro. Patativa chamava de versejadores aqueles que reproduziam histórias existentes. Mas ele próprio escreveu poucos cordéis. Mesmo quando se dedicou a esse tipo de texto, também o fez de maneira original. “O cordel é calcado na luta entre o bem e o mal”, explica Andrade. Para o pesquisador, o poeta tinha um faro da realidade mais apurado do que outros cordelistas, que quase sempre enaltecem o triunfo do herói. Patativa tinha uma ar mais desencantado, mais pé no chão.
“Não é Deus que nos castiga/ Nem é a seca que obriga/ Sofrermos dura sentença/ Não somos nordestinados/ Nós somos injustiçados/ Tratados com indiferença” (Nordestino sim, Nordestinado, não)
“Apesar de distante, na sua Assaré, ele sempre esteve antenado com a política brasileira.” Carvalho resume bem o espírito engajado de Patativa. Sua obra, como não poderia deixar de ser, foi muito utilizada por partidos políticos. E o engraçado é que essa apropriação se deu tanto por grupos de esquerda quanto pelos de direita. Certamente, Patativa, ao se identificar com os movimentos de luta pela terra, afastava-se dos mais conservadores. Mas, nos anos 40, ele escreveu um poema denominado Glosas contra o comunismo, influenciado por um padre da região.
Os versos foram utilizados por adversários de Tasso Jereissati, durante a campanha eleitoral de 1986 – que o levou ao governo do Ceará. Coronéis daquele Estado plantaram o boato, para amedrontar a população, de que Patativa bradava aos quatro cantos que Jereissati era comunista. Claro que essa não era, e nem é, a opção política do ex-governador. Mas, na época, ele representava “um contraponto às oligarquias”, define Carvalho.
Então, Patativa resolveu por livre e espontânea vontade apoiar Jereissati, fazendo versos em defesa da sua candidatura. A partir daí, iniciou-se uma relação muito próxima entre os dois. Ter o apelo popular do poeta como aliado político é, no mínimo, uma boa estratégia para garantir votos.
Na capital de seu estado, Patativa também subiu no palanque pela anistia dos presos políticos, na época da ditadura, e defendeu o movimento das “Diretas-Já”. Andrade conta que, anos mais tarde, durante a campanha presidencial de 1989, o poeta chegou a gravar uma propaganda a favor do então candidato Luís Inácio Lula da Silva, que não foi ao ar. “Era uma pessoa avançada, de esquerda. Porém, talvez mais apegado a um cristianismo primitivo do que a idéias marxistas”, define Carvalho.
Porém, eu ando sem jeito/ Sem esperança e sem fé/ Por ver no meu Assaré/ Prefeitura sem prefeito (Prefeitura sem prefeito)
Natividade de Paiva, como ela própria diz, é “louca pelo nosso poeta”. Não faz nem um ano que trabalha na Universidade Popular Patativa do Assaré (UPPA), que funciona numa casa pertencente à sua família, herança de seu pai. Patativa também foi padrinho de Natividade, quando ela se formou em uma faculdade de economia.
Até aí, nada estranho. Mais um caso de admiração incondicional pelo cidadão mais ilustre do Assaré. Porém, a história muda de figura se for levado em conta que, na década de 40, o pai dela mandou prender Patativa por escrever o poema Prefeitura sem prefeito, um “desacato à autoridade”.
Eugênio de Oliveira: Patativa colocou Assaré no mapa |
Natividade e a UPPA são alguns exemplos da forte presença de Patativa na cidade. As referências estão em todo lugar. A obra dele é ensinada nas escolas, o futuro terminal rodoviário trará uma menção ao seu nome, assim como já faz uma rádio local. “Não é questão de adoração, mas de reconhecimento pela contribuição que ele tem dado para o crescimento do nosso município”, afirma o Secretário de Cultura e do Desporto do Assaré, Eugênio de Oliveira.
E o papel que Patativa desempenhou no desenvolvimento da cidade é inegável, principalmente, “por suas amizades com o ex-governador Tasso Jereissati e com o ex-senador Sérgio Machado”, diz Oliveira. Mas o poeta nunca se beneficiou dessas ligações com os poderosos. Não é difícil encontrar alguém na cidade que diga ‘Patativa poderia ter ficado muito rico’. Pelo contrário, quando usava de sua influência, buscava melhorias para a sua terra. Prova disso é que a água encanada, assim como a eletrificação da zona rural, só foram alcançados depois de um apelo dele a Jereissati. “Óbvio que essas obras fazem parte dos planos de qualquer governador, mas o pedido pessoal acelerou as coisas”, analisa Carvalho.
A idéia de se construir a UPPA surgiu há dois anos. “Queríamos pôr em prática os pensamentos do Patativa”, resume Palácio Leite, presidente da fundação responsável pela “universidade não-acadêmica”, como ele a define. As atividades visam a gerar trabalho e renda para os jovens da cidade, através de cursos de horticultura, oficinas de carpintaria e a edição de um jornal, patrocinado por comerciantes da região. O presidente da UPPA lembra da última vez que Patativa recitou poesias em público: “foi na inauguração da universidade, em maio do ano passado”, orgulha-se.
Memorial Pativa do Assaré |
Dentre todas iniciativas de preservação da obra do autor, destaca-se o Memorial Patativa do Assaré. Inaugurado no aniversário de 90 anos do poeta, o acervo conta com objetos pessoais, fotos, e trechos da sua obra. “A pedido dele, a família ficou responsável pela manutenção do espaço”, explica Fátima Alencar, neta. Foi lá que o corpo de Patativa também foi velado, depois de deixar a Igreja. Padre Ivo, que cuida da paróquia da cidade, diz nunca ter visto a praça central tão cheia como no dia da morte do autor, 8 de julho. “Ele era uma pessoa muito religiosa, todo dia rezava o terço pelo rádio. Também compôs alguns hinos para a igreja”, rememora.
Foi o padre quem comandou a missa do primeiro aniversário da morte de Patativa. A Igreja ficou lotada, por diversos moradores do Assaré, que também assistiram a outras homenagens. Alguns poetas, violeiros e amigos, que beberam da fonte patat
ivana, como Cícero Batista, Mané do Cego e Miceno Pereira, cantaram versos em reverência ao mestre que tanto os influenciou.
Sou matuto do nordeste/ Criado dentro da mata/ Caboclo cabra-da-peste/ Poeta cabeça-chata (O agregado e o operário)
Muitos poemas de Patativa fizeram sucesso na boca de outras pessoas que não ele mesmo. É o caso de Triste Partida, música gravada por Luís Gonzaga. O rei do baião chegou até a propor a compra da letra, mas Patativa foi irredutível. “Ele ligava muito para a questão da autoria”, revela Andrade. Essa importância dada ao registro também constitui outro importante diferencial para a poesia popular tradicional, que é anônima, de domínio público.
Geraldo Poeta lembra que o tio ficava muito bravo se alguém mudasse alguma coisa em seus versos. Para Chamie, Patativa é o porta-voz de experiências coletivas, “que representam a todos, mas são enunciadas por um. Na verdade, ele fala: ‘não mexa naquilo que o povo disse’”.
Mário Chamie: Patativa convertia a literatura erudita em linguagem popular |
O poeta de Assaré tinha uma boa amizade com o compositor pernambucano Luís Gonzaga. Já a relação com o cearense Fágner… Em 1973, o cantor gravou uma música chamada Sina que, na verdade, não passava de uma versão reduzida do poema O Vaquêro, publicado no primeiro livro de Patativa, Inspiração Nordestina, de 1956. “Não dá para dizer que não sabia, pois estava numa obra antiga, que teve duas edições”, argumenta Carvalho. O mal-estar foi aparentemente superado e Fágner gravou outra música de Patativa, Vaca-estrela e Boi-fubá, já no começo dos anos 80. Os dois também viajaram o Brasil fazendo apresentações. Porém, “por mais de 20 anos, os créditos da composição Sina não foram dados a Patativa”, afirma Carvalho.
Essa apropriação indevida que muitos fizeram, assim como Fágner, “era inevitável pela qualidade da obra, e por Patativa viver longe dos grandes centros de advocacia”, justifica Carvalho. Certa vez, o professor viu o poeta receber pelo correio um boleto correspondente a direitos autorais, “dinheiro que não valia nem o esforço de ir ao banco retirar”, indigna-se.
A obra-prima de Patativa do Assaré, Cante lá que eu canto cá, de 1974, foi o único livro lançado por uma grande editora. E, a partir de então, começou a tomar corpo o sucesso do matuto do interior do Ceará capaz de fazer improvisações e escrever sonetos. Ele também gravou alguns discos, recitando suas composições, e participou da novela global Renascer, já na década de 90. “Ele possui uma força de comunicação irresistível. Não é à toa que a obra dele passa a ser multimídia. Comparece em música popular, em livro, em televisão. Ele usa todos os meios de extensão comunicativa”, conclui Chamie.
Altar em homenagem ao primeiro aniversário de morte de Patativa |
De noite tu vives na tua palhoça/ De dia, na roça, de enxada na mão/ Caboclo roceiro, sem lar, sem abrigo/ Tu és meu amigo, tu és meu irmão (Caboclo roceiro)
José Moisés da Silva tem 82 anos. Há muito tempo, vende cordéis pelas cidades do sul do Ceará. No Assaré, toda segunda é dia de feira. “Em Juazeiro do Norte, procuram muito poemas do Patativa”, conta. Mas o velho vendedor sabe que já foi o tempo desse tipo de literatura. “Os idosos é que compram mais. A televisão acabou com a poesia”, lamenta.
Os versos matutos de Patativa do Assaré parecem mais atuais que nunca, ao denunciar os conflitos agrários, a indiferença dos governantes, entre outros problemas. Se o cordel já cumpriu sua função histórica – “era o jornal de antigamente”, explica Geraldo Poeta – a poesia popular, que narra o cotidiano dos mais humildes com a linguagem própria deles, ainda tem muito a realizar. Principalmente, dar a voz aos que sempre foram tachados de incultos e despreparados.
Romper com esse preconceito elitista, que só enxerga como boa poesia aquela que honra a língua portuguesa correta, parece ser o maior desafio que Patativa enfrentará, mesmo morto. Maior até do que as próprias secas que vivenciou. “Para ganhar o estatuto de poesia, o texto precisa ter qualidade”, sentencia Andrade. O que incomoda é a pobreza: não a dos versos, mas a do autor deles.
Assaré, primeiro semestre de 2004