De 1995 até 20041, 13.563 pessoas foram libertadas em ações dos grupos móveis de fiscalização2, integrados por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, procuradores do Ministério Público do Trabalho e agentes da Polícia Federal. Nesse período, 1.282 propriedades passaram por 312 operações de vistoria. As ações fiscais demonstram que quem escraviza no Brasil não são proprietários desinformados, escondidos em fazendas atrasadas e arcaicas. Pelo contrário, são latifundiários, muitos produzindo com alta tecnologia para o mercado consumidor interno ou para o mercado internacional. Não raro, nas fazendas são identificados campos de pouso de aviões. O gado recebe tratamento de primeira: rações balanceadas, vacinação com controle computadorizado, controle de natalidade com inseminação artificial, enquanto os trabalhadores vivem em piores condições do que as dos animais3.
Graças à dedicação dos integrantes dos grupos móveis, operações de libertação têm sido realizadas com sucesso, sendo esse, até agora, o principal instrumento do governo para reprimir essa prática. Ao longo do tempo, houve uma evolução no número de operações4 de libertação, que saltaram de 11, em 1995, para 71, em 2004. Da mesma forma, a quantidade de libertados foi de 84, em 1995, a 4.879, em 2003, e 2.849, em 20045. O total de libertações de trabalhadores em 2003 foi equivalente à soma das ações entre 1995, quando o grupo móvel foi criado, até 2002. Não há registros de direitos ressarcidos nos primeiros cinco anos de operações, entre 1995 e 1999, enquanto que R$ 14.198.349,08 foram pagos nos cinco anos seguintes.
Um instrumento decorrente da fiscalização é a “lista suja” do trabalho escravo. A sua atualização é semestral, sendo que três relações já foram divulgadas, totalizando 165 nomes6. Segundo as regras do Ministério do Trabalho e Emprego, a inclusão do nome do infrator acontecerá após o final do processo administrativo criado pelos autos da fiscalização. A exclusão, por sua vez, depende de monitoramento do infrator pelo período de dois anos. Se durante esse período não houver reincidência do crime e forem pagas todas as multas resultantes da ação de fiscalização e quitados os débitos trabalhistas e previdenciários, o nome será retirado.
Com base na “lista suja”, já estão sendo impedindo os relacionados de obterem novos contratos com os Fundos Constitucionais de Financiamento7, investigada a situação fundiária dos relacionados e levantadas as suas cadeias produtivas8.
Outra decorrência da fiscalização são as ações civis públicas e coletivas que vêm sendo ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho. Indenizações milionárias são obtidas na Justiça do Trabalho, como pode ser visto adiante, e empresários são obrigados a se adequar às normas trabalhistas.
Mas tudo isso ainda é muito pouco comparado com a realidade da situação. A rede dos que utilizam mão-de-obra escrava conta com respaldo econômico e o apoio de políticos.
A utilização de mão-de-obra não-especializada na condição de escravidão é adotada por empresas e fazendas para diminuir custos de produção, aumentando assim a competitividade nos mercados interno e externo – sem que seja necessária a redução nos lucros dos acionistas. Essa possibilidade existe, pois há uma grande quantidade de mão-de-obra em situação de desemprego, principalmente na região Nordeste9.
É difícil precisar o quanto se ganha com utilização de trabalho escravo, uma vez que as vantagens são obtidas pelas grandes corporações principalmente de maneira indireta. Deve-se considerar a cadeia de produção em sua integralidade, uma vez que os ganhos dos donos de carvoarias são significativamente menores que os da usina siderúrgica. Que por sua vez, estão abaixo dos lucros das indústrias automobilísticas e do próprio comércio internacional.
O modelo de desenvolvimento que se estabeleceu na Amazônia brasileira foi extremamente predatório, visando à maximização do custo-benefício através do não-cumprimento das legislações trabalhista e ambiental10. Em regiões ou estados onde a agricultura está em um processo de inserção numa economia “moderna” de mercado, é que se encontra a maior incidência de trabalho escravo. Basta verificar que o Mato Grosso, segundo colocado nas estatísticas de libertação de trabalhadores reduzidos à condição de escravos (2311 trabalhadores entre 1995 e a primeira quinzena de dezembro de 2004)11, é a ponta de lança da expansão do agronegócio no país. Lá, as áreas destinadas ao pasto e à agricultura aumentam a cada ano, ao passo que tombam mais florestas. Vale lembrar que o governador do estado, Blairo Maggi, é o maior produtor individual de soja do planeta.
Uma extensa pesquisa sobre cadeia produtiva do trabalho escravo, realizada pela ONG Repórter Brasil, a pedido da Organização Internacional do Trabalho e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, revela que nas duas primeiras “listas sujas” divulgadas pelo governo federal, a cadeia produtiva da soja e do algodão daquele estado lucram direta ou indiretamente com a escravidão. Dentre os infratores, há nomes conhecidos na produção, exportação e comercialização no mercado interno12. Na soja, a Agropecuária Tupi, localizada em Tapurah (MT) e a fazenda Vó Gercy, em Campo Verde (MT), que comercializam com o mercado externo (Europa e Ásia) e interno. No algodão, a fazenda Brasília, em Alto Garças (MT), a Maeda Agroindustrial, em Diamantino (MT), fazenda Leonardo, em Itiquira (MT), fazenda Los Angeles, da família Polato, em Primavera do Leste (MT), fazenda Marabá, de José Pupin, em Campo Verde (MT) e a Pinesso Agropastoril, em Dom Aquino (MT) também vendem para a indústria têxtil nacional e exportam para a Ásia.
Mas não é apenas o algodão e a soja. O Mato Grosso também não pode ser apontado como o único culpado. Também temos trabalho escravo na pimenta-do-reino – as fazendas Senor (que possui participação acionária da belga Sipef) e a Pindaré, em Dom Eliseu (PA
), e a fazenda Igarashi, em Açailândia (MA) também produzem para o mercado interno e exportam para a Europa e os Estados Unidos. O café [da fazenda Boa Vista, em Claraval (MG)] é exportado e o álcool [Destilaria Gameleira, da família Queiroz Monteiro, em Confresa (MT)] é vendido como combustível no mercado interno. Algumas carvoarias do Sul do Maranhão, Tocantins e Pará forneciam matéria-prima para as siderúrgicas dependentes do ferro de Carajás, que depois exportam para os Estados Unidos13.
E, por fim, a carne. A pecuária é o ramo de atividade de 80% das fazendas das duas primeiras listas sujas14 e é, ao mesmo tempo, o principal ator do desmatamento da Amazônia brasileira15.
Para ser mais específico, o foco do trabalho escravo no Brasil se localiza exatamente no “arco do desmatamento” da Amazônia – região da fronteira agrícola do país. A mesma linha concentra também assassinatos de trabalhadores rurais em conflitos no campo.
A lista de criadores de gado que foram autuados utilizando escravidão é extensa e possui representantes em um arco que vai de Rondônia, passa pelo Mato Grosso, Tocantins, Pará até o Maranhão. O Pará é o estado com maior número de libertados, com 5695 trabalhadores entre 1995 e a primeira quinzena de dezembro de 200416. A maior parte deles estava em propriedades ligadas à pecuária, derrubando a floresta para aumentar a área ou limpando o pasto. A rede de comercialização na qual estão inseridas essas fazendas escoa a produção de carne para todos os continentes, tendo como importantes compradores a União Européia e a Ásia. O país aumentou sua participação no mercado internacional de forma significativa nos últimos oito anos, passando de 138,6 mil toneladas em 1996 para 800,5 mil toneladas de carne exportada – um salto de 7% para 20% do total mundial17.
Carne, algodão, soja, café são commodities e, como tais, influenciadas pelas cotações do mercado internacional. Há produtores, como já foi discutido acima, que reduzem os custos trabalhistas e ignoram direitos humanos para ganhar posições nesse cenário de grande competitividade. Não se pode ser leviano e afirmar que toda a cadeia produtiva tenha consciência do comportamento criminoso de um de seus elos. Do ponto de vista legal, intermediários, varejistas e exportadores não possuem responsabilidade pelos seus fornecedores. Porém, é interessante ressaltar que tanto o capital nacional quanto o internacional que têm investimentos no setor agropecuário da região Norte têm evitado se manifestar sobre a erradicação do trabalho escravo. A tendência até agora tem sido a de proteger a todo o custo o agronegócio brasileiro voltado ao mercado externo – um dos principais responsáveis pelos resultados positivos em nossa balança de pagamentos.
Os governos federal e estadual temem madeireiros, pecuaristas e o restante do agronegócio, mas tem apenas compaixão por ribeirinhos, pequenos produtores rurais e moradores de reservas de exploração sustentável. Não se vislumbra, no curto prazo, uma mudança no padrão de desenvolvimento colonial, que tem mantido a monocultura exportadora como prioridade, em prejuízo à agricultura familiar. Isso, traduzido em ações, faz com que a meta de uma empresa como a Embrapa seja a de ampliar o apoio aos latifúndios. Mesmo considerando que as propriedades rurais pequenas e familiares produzem a maior parte do alimento da mesa do brasileiro.
As forças econômicas que utilizam trabalho escravo possuem, é claro, respaldo político. Não tem sido difícil encontrar políticos que se opõem às ações de combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Do vereador da pequena cidade da região de fronteira agrícola amazônica a membros da alta cúpula do governo federal, surgem pressões e declarações infelizes que em nada contribuem para a solução do problema, mas, pelo contrário, acabam por dar uma aura de legitimidade ao comportamento de proprietários rurais que insistem em tratar os seus empregados como animais.
Nesse erro, já incorreram o segundo e o terceiro na cadeia de comando do país. O vice-presidente da República e então ministro da Defesa, José Alencar, declarou publicamente que não tem certeza da existência de escravidão contemporânea no Brasil18. Alencar possui fazendas de algodão e é proprietário da Companhia de Tecidos do Norte de Minas (Coteminas)19. Já Severino Cavalcanti (PP-PE), presidente da Câmara dos Deputados, em discurso proferido no dia 02 de março de 2004, atacou o combate ao trabalho escravo que vem sendo realizado no Brasil:
“Ora, senhoras e senhores deputados. Vamos parar de hipocrisia, de fingir que somos a França, os Estados Unidos ou a Alemanha e que podemos copiar as suas avançadas legislações trabalhistas.” (…) “Não vamos resolver os problemas do campo e do desemprego ameaçando produtores e fazendeiros com o confisco de terras no caso das muitas e controversas versões de trabalho escravo.”
Defendendo posições como essa no Congresso Nacional, a bancada ruralista tem conseguido travar o andamento de projetos importantes, como a proposta de emenda constitucional que prevê o confisco das terras em que trabalho escravo for encontrado. Aprovada pelo Senado, ela andava capenga pela Câmara até o fechamento deste texto em fevereiro de 2005. Para se ter uma idéia, a Emenda da Reeleição, que garantiu a prefeitos, governadores e presidentes se reelegerem para mais um mandato tramitou por dois anos na Câmara e quatro meses no Senado. Enquanto isso, o projeto que contribuiria com a erradicação do trabalho escravo demorou dois anos para ser aprovado no Senado e, se nada for feito, fará o seu décimo aniversário sem aprovação neste ano.
Deputados como Kátia Abreu e Ronaldo Caiado não têm precisado de muito esforço para criar entraves ao trâmite da lei, rindo dos esforços de parlamentares progressistas, órgãos governamentais, ministério público e entidades da sociedade civil que lutam pela sua aprovação. Mesmo o Partido dos Trabalhadores já colocou a emenda constitucional que prevê a expropriação de terras na barganha por votos – como aconteceu durante a candidatura derrotada à presidência da Câmara dos Deputados.
Isso sem contar que, nos parlamentos e governos, representantes dos poderes executivo e legislativo são eleitos com doações provenientes dos lucros de fazendas em que foram encontrados trabalhadores em situação de escravidão.
Norberto e Antério Mânica, que estão entre os maiores produtores de feijão do mundo, foram presos e estão sendo julgados com
o mandantes do assassinato de três auditores fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho e Emprego que fiscalizavam fazendas na região de Unaí (MG), em janeiro de 2004. Porém, Antério ganhou a liberdade após ser eleito prefeito em Unaí, pelo PSDB, com 72,37% dos votos válidos. O ex-prefeito da mesma cidade, José Braz da Silva, foi pego com mão-de-obra escrava na fazenda Boa Esperança, em Parauapebas, sudeste do Pará. A ação, que libertou dez trabalhadores no final de 2002, fez com que o nome de Braz aparecesse na segunda versão da “lista suja” divulgada pelo governo federal. Ele foi condenado pela Justiça do Trabalho de Parauapebas, decisão confirmada pelo Tribunal Regional do Trabalho do Pará.
No Rio de Janeiro, o presidente da Assembléia Legislativa, Jorge Sayed Picciani, está tendo que se explicar à Justiça porque, em junho de 2003, uma ação de um grupo móvel libertou 39 pessoas de sua fazenda Agrovás, em São Félix do Araguaia (MT). Apesar de a fazenda ser de criação de gado, os trabalhadores não tinham acesso à carne e estavam caçando animais silvestres, como onças, para se alimentar. Um adolescente de 17 anos foi libertado na ocasião. Os peões estavam submetidos à vigilância armada de “gatos” [contratadores de mão-de-obra que trabalham para os fazendeiros] para evitar fugas. Pessoas lavavam roupa, tomavam banho e bebiam da mesma água.
O senador João Ribeiro (ex-PFL, hoje PL-TO) foi condenado pela juíza da Vara do Trabalho de Redenção, Sul do Pará, por aliciar 38 trabalhadores rurais e sujeitá-los à condição de escravos na fazenda Ouro Verde, de sua propriedade – município de Piçarra, no mesmo estado. O processo originou-se de uma ação civil pública do Ministério Público do Trabalho e também inclui a obrigação de adequar a fazenda às normas trabalhistas. À decisão cabe recurso. Ribeiro também foi denunciado pelo procurador-geral da República, Cláudio Fontelles, ao Supremo Tribunal Federal. Os trabalhadores foram libertados em ação do grupo móvel de fiscalização entre os dias 10 e 13 de fevereiro de 2004. Estavam em alojamentos precários feitos com folhas de palmeiras e sem acesso a sanitários. Segundo Fontelles, “a repugnante e arcaica forma de escravidão por dívidas foi o meio empregado pelos denunciados para impedir os trabalhadores de se desligarem do serviço”. Ao se referir, em discurso na tribuna do Senado, a um outro caso de proprietário autuado por trabalho escravo no Tocantins, Ribeiro apelou: “Senhores fiscais do trabalho, complacência para com aqueles homens rudes do campo que ainda não se adaptaram aos novos tempos”.
Em março de 2002, 54 trabalhadores foram resgatados da fazenda Caraíbas, do deputado federal Inocêncio Gomes de Oliveira (ex-PFL, hoje PMDB-PE), localizada em Gonçalves Dias, no Maranhão. Na ação, a propriedade pagou R$ 30.586,47 de direitos devidos aos trabalhadores. Meses depois, ele vendeu a propriedade, mas isso não o livrou de constar na primeira “lista suja” do trabalho escravo. Com isso, está impedido de receber créditos rurais dos fundos constitucionais do governo.
O deputado já foi condenado em primeira instância pela Justiça do Trabalho do Maranhão, em ação civil do Ministério Público do Trabalho originada da mesma libertação. Até o fechamento deste texto, ele aguardava julgamento de recurso no Tribunal Regional do Trabalho de São Luís. Também estava na espera do julgamento da abertura de um inquérito contra ele no Supremo Tribunal Federal, pela mesma razão. O pedido foi feito pelo procurador-geral da República, Cláudio Fontelles.
Durante a fiscalização na fazenda Caraíbas, uma ordem – cuja origem e razão até hoje não foram bem explicadas – fez com que os policiais federais que acompanhavam o grupo móvel de fiscalização se retirassem, deixando os auditores sem segurança. A libertação dos trabalhadores da fazenda Caraíbas não é a única mancha no currículo de Inocêncio de Oliveira – que já foi acusado de utilizar verbas públicas do então Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS) para a construção de poços artesianos em suas fazendas. No início deste ano, ele foi eleito primeiro secretário da Câmara dos Deputados.
A família Mutran possui três fazendas nas três “listas sujas” do trabalho escravo. A Cabaceiras foi autuada duas vezes: em agosto de 2002, 22 pessoas ganharam a liberdade e, em fevereiro deste ano, outros 13. Em agosto de 2002, 25 pessoas foram libertadas da fazenda Mutamba, de Aziz Mutran, em Marabá. Por fim, em dezembro de 2001, mais 54 na Peruano.
Membros da família Mutran participaram da disputa das terras na região de Marabá durante a farra promovida pela ditadura militar para distribuir lotes da Amazônia às grandes empresas. De acordo com ativistas de direitos humanos que atuavam na época, eles foram responsáveis por massacres de posseiros e desaparecimento de trabalhadores. Segundo dados da CPT em Marabá, quase metade dos registros de conflitos de terra na região, entre 1976 e 1984, envolvem a família.
Com o tempo, a fronteira agrícola tomou rumo oeste – hoje a terra de ninguém se chama Iriri/Terra do Meio. E a antiga fronteira agrícola, hoje quase nua de floresta, região que vai de Marabá a Conceição do Araguaia, ganhou uma estrada, a PA-150, seus vilarejos de madeira se transformaram em cidades de tijolos, e o Estado, perdendo o medo, finalmente entrou. De forma precária, mas entrou. Ainda falta muito para ser respeitado, haja vista as constantes denúncias de trabalho escravo, mortes de sindicalistas e desaparecimentos de posseiros. E com o tempo, os Mutran assumiram postos importantes da política local ou se tornaram empresários de renome. Nagib Mutran o patriarca da família, foi deputado estadual. Ele tem dois irmãos, Jorge e Benedito, cujos filhos são grandes empresários do Pará. Um deles, Evandro Mutran, é dono da fazenda Peruano e dirige a Cabaceiras. O filho de Nagib, Osvaldo dos Reis, o Vavá, foi prefeito nomeado de Marabá e deputado estadual. Dos filhos de Vavá, Nagib Neto foi prefeito de Marabá e Osvaldo Júnior, vereador. Vavá tem dois irmãos, Guido – com um filho vereador (Guido Filho) – e Aziz (proprietário da fazenda Mutamba).
Em agosto de 2004, os proprietários da Cabaceiras aceitaram pagar R$ 1.350.440,00 por dano moral coletivo ao Fundo de Amparo ao Trabalhador após um acordo selado pela Justiça do Trabalho devido a uma ação do Ministério Público do Trabalho. Essa é a maior indenização já paga no Brasil por um caso de redução de pessoas à condição análoga a de escravo.
Mas a situação reincidente na Cabaceiras foi considerada tão extrema pelo governo federal que em outubro de 2004, foi decretada a desapropriação da fazenda para fins de reforma agrári
a. Ao todo, o imóvel de 9774 hectares poderá beneficiar 340 famílias. O proprietário está recorrendo da decisão. Isso abre um importante precedente não só no combate à escravidão e à superexploração do trabalho, mas também para a efetivação da função social da propriedade no Brasil e da própria reforma agrária.
A lista de relacionamentos entre os que utilizaram trabalho escravo e a classe política que os apóia é muito extensa para ser tratada integralmente neste texto. Na maioria das vezes, é a defesa cega do agronegócio a qualquer custo, repetindo a já desgastada justificativa de que o combate ao trabalho escravo vai gerar prejuízos à balança comercial do país. Mas a verdade é que não vai. O número de fazendeiros que se utilizam dessa prática é muito pequeno dentro do total de empresários rurais.
O campo, principalmente as regiões de expansão agrícola, muitas vezes tem leis próprias – como gostam de ressaltar os próprios fazendeiros ao afirmarem que a legislação da “zona urbana” não cabe na “zona rural”. Para manter o lucro fácil vale qualquer coisa, inclusive matar quem cobre multas ou reclame por uma vida mais justa. Foi assim com os sindicalistas de Rio Maria, no Pará, durante a ditadura militar, com os 19 trabalhadores rurais sem-terra em Eldorado dos Carajás, com os auditores em Minas Gerais, com a irmã Dorothy Stang e no dia-a-dia de quem resolve se insurgir contra o status quo do campo. Pois é difícil lutar contra a apropriação do discurso desenvolvimentista que prega a expansão, a qualquer preço, da área plantada de soja, algodão e pimenta, do aumento da pastagem e da produção de álcool anidro, da exportação do aço.
A solução para esse problema passa pelo fim da impunidade, por aprovar mecanismos como a lei do confisco de terras, julgar com isenção aqueles que cometeram crimes, mesmo que poderosos, cortar o crédito de quem comprovadamente usou trabalho escravo. É necessário que se defina de uma vez por todas de quem é a competência para julgar o crime de trabalho escravo, se da Justiça Estadual ou da Justiça Federal, pois o prolongamento da discussão favorece os fazendeiros. Aumentar a pena mínima para impedir que o crime prescreva e que a pena de reclusão seja imposta. Para tudo isso, o governo federal terá que alocar mais recursos do que o pouco que vem sendo empenhado atualmente, realizar mais concursos para auditores, policiais, procuradores, técnicos do Incra. E, acima de tudo, mostrar disposição para mudar a estrutura que favorece, há séculos, quem detém os meios de produção.
Por fim, a erradicação do trabalho escravo só virá com redistribuição. De renda, de terra, de justiça. Levas de migrantes continuam deixando o Maranhão e o Piauí para sangrar no Pará e Mato Grosso, saem de suas casas no Vale do Jequitinhonha e se acabam de trabalhar em usinas do Rio de Janeiro e São Paulo. A justificativa é sempre a mesma: melhor tentar a sorte do que morrer de fome. As raízes do trabalho escravo, mesmo o contemporâneo, estão na estrutura formativa do Brasil. O que aconteceu em 13 de maio de 1888 foi uma mudança de metodologia para se adaptar aos novos tempos e não de mentalidade das elites governantes. E nenhum dos governos após a redemocratização fez algo de substancial para mudar essa estrutura.
A melhoria no combate ao trabalho escravo é visível e os louros são de setores da administração federal e da Justiça engajados na causa e de entidades como a Comissão Pastoral da Terra e a Organização Internacional do Trabalho. Por isso, não se faz aqui uma crítica à fiscalização ou ao ajuizamento de ações civis, uma vez que, apesar dos problemas, elas aumentam a cada dia. Mas o que tem sido feito para evitar que aquele senhor, libertado duas vezes, saia da sua terra novamente? Ou seja, o que tem sido feito de substancial para tirar rapidamente 30 milhões de pessoas que estão abaixo da linha da pobreza? O crescimento econômico é lento, mas o Presidente da República fez um caminho parecido com o de muitos peões libertados da escravidão, saindo de sua terra em busca de vida melhor – sabe que esse pessoal passa fome e não pode esperar.
Enquanto isso não for feito, o “progresso” manterá sua marcha. A BR-163, Cuiabá-Santarém, será ampliada e asfaltada, como assim querem os governadores do Mato Grosso e do Pará. A região do Iriri/Terra do Meio, entre as duas rodovias, com o tempo vai desaparecer, transformando-se de um lado em um pasto gigantesco, com muita juquira para os peões roçarem. E, do outro, numa imensa plantação de soja e raízes de arbustos que só mãos conseguem arrancar. É claro que vozes continuarão se levantando contra tudo isso e serão assassinadas.
Toda a mudança social profunda tem um custo e leva tempo. Uma verdadeira reforma agrária (e não aquela que tem sido feita até aqui), que alteraria as antigas estruturas do país, é muito cara politicamente. Fica a pergunta: o governo federal terá coragem de começar a pagar preços como este antes do final deste mandato?
- Dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho até dezembro de 2004.
- De acordo com dados da SIT/MTE.
- Este contém trechos já publicados de reportagens e artigos do autor.
- Uma operação pode fiscalizar diversas fazendas.
- A greve de 80 dias da Polícia Federal e a sombra do assassinato de três auditores fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho e Emprego, que realizavam fiscalização nas fazendas da região de Unaí, em 28 de janeiro de 2004, contribuíram para a diminuição do número fiscalizações/libertados entre 2003 e 2004.
- Até a primeira semana de março de 2005, nove fazendas estavam suspensas por liminar das Justiças Federal e do Trabalho, diminuindo para 156 a quantidade de propriedades sob sanção.
- Resultados preliminares do Incra e do Ministério do Desenvolvimento Agrário apontam que, dos 52 imóveis constantes na primeira relação da “lista suja”, apenas 16 estão cadastrados. Na segunda, estão registrados 21 dos 49 imóveis.
- A pesquisa vem sendo realizada por Repórter Brasil, Organização Internacional do Trabalho e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos. O objetivo é alertar comércio e indústria para que não comprem produtos com mão-de-obra escrava, minando a sustentação econômica do sistema escravocrata contemporâneo. li>
- As informações sobre economia do trabalho escravo estão baseadas nas pesquisas da ONG Repórter Brasil coordenadas pelo autor e no artigo “Lucro fácil, mão-de-obra descartável – a escravidão contemporânea e economia internacional”, de Leonardo Sakamoto In. COGGIOLA, Osvaldo (org). “América Latina e a Globalização”. São Paulo, FFLCH/PROLAM/Universidade de São Paulo, 2005.
- A relação carnal que se estabelece entre o patrimônio público e a propriedade privada na região amazônica é um problema de difícil solução. Muito similar ao que se enraizou com o coronelismo nordestino da Primeira República, o detentor da terra exerce o poder político, seja através de influência econômica, seja através de coerção física. O já tênue limite entre as duas esferas se rompe. Membros da administração municipal são ao mesmo tempo gerentes de fazendas.
- Dados da Comissão Pastoral da Terra.
- Dados obtidos a partir de pesquisa da ONG Repórter Brasil.
- Um acordo foi firmado entre siderúrgicas, entidades da sociedade civil e governo em 2004 para combater o trabalho escravo nas carvoarias do Sul do Maranhão.
- Dado da ONG Repórter Brasil.
- Esses resultados são provenientes de pesquisa coordenada pelo autor deste texto sobre a relação entre trabalho escravo e desmatamento. Ela contou com a contribuição do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Democratização e Desenvolvimento (Nadd) da Universidade de São Paulo, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e será divulgada em relatório da Organização Internacional do Trabalho.
- Dados fornecidos pela Comissão Pastoral da Terra.
- Os Bilionários da Carne. Revista Exame. São Paulo, Editora Abril, 26 de maio de 2004, pp.21-27.
- Vice-presidente do Governo Lula diz que não existe Trabalho Escravo no Brasil. Rio de Janeiro, Jornal O Dia, 27 de agosto de 2004: “Vice-presidente da República do Governo Lula, que tem a erradicação do trabalho escravo como prioridade, José Alencar afirmou que não existe trabalho escravo no País, ontem, no 6º Congresso de Agronegócio da Sociedade Nacional da Agricultura. "Não posso dizer que haja trabalho escravo. Há trabalho degradante. Escravo é quem não tem liberdade e tem dono. É preciso não haver condenação contra o setor agrícola moderno sem apuração", afirmou o vice-presidente. O mesmo ponto de vista foi defendido pelo presidente da Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil, Antônio Ernesto de Salvo, e pelo ministro da Agricultura no Governo Fernando Henrique, Pratini de Moraes. “Ninguém queima floresta para botar
boi, não acredite nisso. Uma forma de protecionismo estrangeiro das organizações estrangeiras é dizer que tem trabalho escravo aqui”, disse Pratini. Para Salvo, a acusação de trabalho escravo, "além de mentirosa, degrada nossa imagem no exterior" - Vale ressaltar que, ao mesmo tempo, essa empresa está tendo uma atuação modelo, optando por não comprar mais de fornecedores flagrados com trabalho escravo.