No início da década de 80, a implantação do Centro de Lançamentos de Alcântara (CLA), no município de mesmo nome, no Maranhão, expulsou dezenas de comunidades quilombolas de suas terras ancestrais. Ainda que a Constituição de 1988 garanta a esses grupos a posse do território que ocupam, há alguns anos o governo federal vem discutindo a ampliação da base de Alcântara, por causa da localização estratégica do município, o que leva medo e incerteza às 153 comunidades de quilombos que vivem ali. Desde agosto de 2004, foi criado o Grupo Executivo Interministerial (GEI), com representantes de 23 ministérios, para construir um projeto de desenvolvimento sustentável para o local, do qual derivou um subgrupo de regularização fundiária, considerada a questão mais importante pelos quilombolas.
Em julho deste ano, o governo federal apresentou à população local, por meio do subgrupo, uma proposta elaborada pela Agência Espacial Brasileira (AEB) de criação do Centro Espacial de Alcântara (CEA), para o lançamento de foguetes de outros países que manifestem interesse. O convênio com a Ucrânia, por exemplo, já está adiantado e outros países, como Rússia e EUA, já sinalizaram nesse sentido. Apesar da expansão não atingir as casas dos quilombolas, ela inclui as roças de muito deles.
O movimento quilombola e as organizações da sociedade civil que lutam pelos direitos desses grupos consideraram o projeto muito vago e simplório, sem nenhum detalhamento do que realmente vai acontecer com as comunidades. Segundo eles, não é possível iniciar o debate com população sobre o projeto de expansão porque não há informação suficiente para isso, mas até agora não receberam o documento especificando as ações.
“A AEB apresentou uma proposta que não é satisfatória, não contempla os anseios da comunidade, faz os quilombolas perderem território e não discute com clareza que tipo de compensações serão recebidas por conta disso. O governo brasileiro vai ganhar dinheiro com esse projeto, que é comercial, não de utilidade pública. Se vamos perder nosso território, queremos ganhar uma fatia desse bolo. A proposta não diz nada”, avalia Sérvulo Borges, militante do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (Mabe) e da Associação das Comunidades Negras, Rurais e Quilombolas (Aconeruq) do Maranhão.
Além disso, ressaltam que não está claro o que vai acontecer com a população quando houver lançamento de foguetes: não dizem como vai ser o processo de evacuação, onde vai ser o abrigo em que se protegerão, nem que tipo de contrapartida financeira terão por ficarem afastados do local de trabalho e pelos danos psicológicos dessas retiradas. Também não especifica para onde eles devem transferir a roça deles, fundamental para a sobrevivência desses grupos.
Eles exigem um detalhamento mais consistente da proposta e pedem 120 dias, a partir do recebimento do novo documento, para que ela seja discutida com as comunidades antes de darem uma resposta.
“Neste momento, estamos resistindo como sempre, o que é uma característica do povo quilombola, a um mega-projeto do Estado brasileiro que pensa em lançar artefatos de primeira linha e esquece que existe o bicho homem, principalmente o povo negro, que é quem mais sofre com os efeitos dessas ações”, afirma Borges.
Os quilombolas reivindicam ainda que primeiro seja feita a regularização fundiária de todo o território étnico das comunidades, como assegura a Constituição, para que só depois sejam iniciadas as negociações a respeito do projeto da AEB para o município de Alcântara. “Quando tivermos o título da área toda, podemos discutir a concessão de espaço ou não para a base. Mas eles não querem dissociar a regularização fundiária da proposta da AEB, querem fazer um projeto conjunto em que a gente perde parte do território”, lamenta Jô Brandão, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas.
O presidente da AEB, Sérgio Gaudenzi, afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não daria entrevista sobre o tema, já que a proposta não prevê a remoção de famílias quilombolas, como ocorreu na instalação do CLA.
Violações continuam
As comunidades também denunciam que, mesmo com as negociações em andamento, GEI e da apresentação da última proposta, os quilombolas continuam sendo vítimas de agressões, perseguições, prisões e ações arbitrárias por parte dos militares do CLA. “Enquanto as negociações com o governo federal estão em curso, pressupõe-se que nada deveria avançar nem retroceder, mas o CLA começou a proibir roças e a dar ordens para os moradores das agrovilas retirarem suas plantações, além de fazerem novas tentativas de licenciamento de obras de estradas e portos. Eles querem atropelar o processo”, diz Patrícia Cardoso, integrante da equipe do direito à cidade do Instituto Polis e assessora da Relatoria Nacional do Direito à Moradia.
Em março deste ano, Raimundo Petronilio, quilombola de 63 anos conhecido como Seu Dico, teve sua roça invadida por militares da Aeronáutica. Eles destruíram suas plantações de melancia, arroz, feijão e milho e levaram sacas de carvão do local, alegando que a Aeronáutica é a proprietária das terras onde ele planta desde criança e onde seu pai também plantava. Seu Dico ainda foi levado à delegacia, onde insinuaram que ele era ladrão. Deram um prazo para que os mais de 300 lavradores que cultivam essas terras desde muito antes da chegada dos militares limpassem a área.
“Esta é uma estratégia perversa da Aeronáutica no trato das comunidades: a comunicação informal”, avalia a antropóloga e advogada Cíntia Beatriz Müller, pesquisadora do Centro pela Moradia e Contra Despejos (Cohre). No dia 14 de agosto, ela acompanhou Seu Dico ao Ministério Público Federal (MPF) do Maranhão para registrar essa denúncia e pedir que cessem as ameaças e que os lavradores possam continuar trabalhando nessas terras. “Caberia uma intervenção mais enérgica do MPF no caso de Alcântara”, defende Cíntia.
Dentre as ações arbitrárias no território étnico, os quilombolas também destacam, em carta enviada ao governo federal, a detenção “do jovem João Batista, conhecido como Teco e de um menor de idade pelos militares na comunidade de Manival, os quais estavam trabalhando na retirada de pedras para sobrevivência”.
Fernanda Sucupira é membro da ONG Repórter Brasil.