O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) entregou uma medalha de “imbrochável” para o empresário Roberto Katsuda, um dos principais revendedores de retroescavadeiras usadas em garimpos no Pará e em Roraima, com pontos de venda localizados em cidades próximas às terras indígenas Kayapó, Munduruku e Yanomami – as mais devastadas pela exploração ilegal de ouro.
Dias antes, o jogador Neymar recebeu a mesma medalha das mãos de Bolsonaro. Foram confeccionadas 150 unidades, com uma imagem do ex-presidente jovem e as palavras: “imorrível, imbrochável, incomível”.
No vídeo postado por Katsuda no Instagram, Bolsonaro tira a medalha de uma gaveta, diz para o empresário guardar e fala, rindo, que o objeto ficará valioso após o político morrer.
A primeira aparição da medalha foi em agosto de 2021, quando, na saída do Palácio do Planalto, o então presidente mostrou o objeto aos apoiadores.
O termo “imbrochável”, apesar de não constar no dicionário, é uma obsessão antiga do capitão reformado do Exército. Desde 2018, Bolsonaro recorre à expressão para tentar mostrar virilidade. O ápice foi durante as comemorações do 7 de setembro de 2022, quando repetiu a palavra cinco vezes em discurso na Esplanada dos Ministérios.
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Katsuda, agraciado com a medalha, foi investigado pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro. Baseados em relatórios da Abin, que apontavam o financiamento do empresário aos atos golpistas, os parlamentares pediram ao Sistema Integrado de Administração Financeira (Siaf) a quebra do sigilo bancário dele entre junho de 2021 e agosto de 2023.
O empresário, contudo, não figurou entre os 61 nomes que os integrantes da CPMI pedem que sejam indiciados como responsáveis ou financiadores da tentativa de golpe, sendo o principal deles o ex-presidente Bolsonaro.
Katsuda é proprietário da World Tractor, importadora de equipamentos pesados, incluindo escavadeiras e pás-carregadeiras (chamadas de PC’s), que são utilizadas para revolver a terra em busca de ouro nos garimpos. Uma escavadeira realiza em 24 horas o mesmo trabalho que três homens levariam cerca de 40 dias para executar.
A filha do empresário, Bruna Maria Gravena Katsuda, é proprietária da BMG Máquinas, revenda de equipamentos da sul-coreana Hyundai, que foi fundada pelo pai. Tanto a filha quanto a empresa que ela administra também tiveram o sigilo fiscal quebrado pela CPMI, sem serem responsabilizadas no relatório final.
Atuação pró-garimpo
A família tem negócios em Itaituba, no sudoeste do Pará, principal região garimpeira do Brasil. “Já vendemos 600 escavadeiras para os garimpeiros”, disse Katsuda, durante audiência realizada na Câmara Municipal local para discutir a legalização da atividade garimpeira em terras indígenas, que foi acompanhada pela Repórter Brasil, em 2019.
À época da declaração, durante o primeiro ano do governo Bolsonaro, os garimpeiros da cidade se mobilizavam pedindo a liberação do garimpo nos territórios protegidos.
A maioria dos presentes na audiência vestia uma camiseta com os dizeres: “Garimpeiro não é bandido. É trabalhador”. Na estampa, a frase estava ladeada pelo desenho de duas PCs, como as escavadeiras são chamadas.
Durante o evento, o empresário disse que entre 2013 e 2019 os donos de garimpos na região de Itaituba investiram entre R$ 300 e R$ 600 milhões apenas em maquinários. Disse também que somente as máquinas vendidas pela empresa dele eram responsáveis por consumir R$ 288 milhões de combustível por ano na cidade.
“Agradeço à classe garimpeira, pois são vocês que colocam comida na mesa da minha família”, disse o empresário ao salão lotado. À época, ele contou à Repórter Brasil que esteve em Brasília diversas vezes para se reunir com os ministros do governo Bolsonaro e que acreditava no empenho daquela gestão para legalizar o garimpo em terras indígenas. “Tenho gostado bastante do posicionamento do governo Bolsonaro”, afirmou.
Em 2021, Katsuda doou R$ 10 mil para que os indígenas cooptados pelo garimpo fossem a Brasília em uma caravana para tentar falar com o então presidente Bolsonaro.
Procurado, Katsuda não respondeu às perguntas enviadas. A Repórter Brasil também entrou em contato com a assessoria de Bolsonaro, perguntando as razões para a entrega da medalha ao lobista, mas não recebeu resposta.
Devastação e contaminação
No Pará estão as duas terras indígenas mais devastadas pelo garimpo no Brasil, a Munduruku e a Kayapó, que ficam próximas a Itaituba, Jacareacanga e Ourilândia do Norte, cidades com revendas da empresa da família Katsuda.
Em 2002, a Repórter Brasil conseguiu identificar os fabricantes de 17 equipamentos encontrados em atividades ilícitas e flagrados por fiscais do Ibama e ICMBio. São todas multinacionais que assumiram compromissos socioambientais, mas pouco fazem para impedir o uso ilegal das máquinas. O levantamento faz parte do relatório “A arma do crime – Como equipamentos agrícolas e de construção civil estão contribuindo para o desmatamento ilegal da Amazônia”.
Segundo o documento, a marca mais apreendida pelos fiscais do Ibama é a Hyundai, que a família de Katsuda revende nas lojas da BMG.
Além do Pará, a empresa tem unidade em Boa Vista (RR), que serve de base para quem explora o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. As TIs Kayapó, Munduruku e Yanomami são as três mais destruídas pelo garimpo, segundo dados do MapBiomas.
Outro monitoramento, do Greenpeace do Brasil, registrou 176 escavadeiras operando nos territórios Yanomami, Munduruku e Kayapó entre 2021 e abril de 2023, dos quais 75 eram da empresa sul-coreana (42% do total). “Aparentemente a empresa se orgulha de receber uma clientela garimpeira que deseja se manter atualizada com o que há de mais moderno em maquinário pesado”, diz o relatório do Greenpeace, a respeito da BMG da família Katsuda.
Poucos dias depois da publicação do documento, a Hyundai anunciou a suspensão da venda de escavadeiras no entorno dos territórios dos povos Kayapó, Munduruku e Yanomami. No entanto, passados seis meses do anúncio, uma reportagem da Folha de São Paulo constatou que os equipamentos seguiam à venda em Itaituba.
Além de destruir a floresta, o garimpo afeta severamente a saúde dos povos indígenas. Nas TIs Munduruku e Sai Cinza, a Repórter Brasil entrevistou em março pais de crianças nascidas com malformações e atrasos no desenvolvimento, além de adultos cegos e que relatam tremores e fraquezas.
Os relatos foram publicados na reportagem “A floresta doente: as crianças Munduruku que não brincam e podem estar contaminadas por mercúrio”.
A principal suspeita é que eles estejam sofrendo as consequências da contaminação pelo mercúrio, que ocorre principalmente pelo consumo de peixes, base da alimentação do povo Munduruku.
O metal é usado amplamente em garimpos legais e ilegais, sendo despejado em rios e no solo, ou então queimado e evaporado durante o processo de separação do ouro, retornando por meio de chuvas. Nas mulheres grávidas, o mercúrio ultrapassa a placenta e contamina o feto em desenvolvimento até sete vezes mais do que as outras pessoas, causando danos irreversíveis.
Com o cerco aumentando, o empresário Roberto Katsuda está diversificando os negócios. Em suas redes sociais ele divulga outros empreendimentos, como a MK Nelore, de melhoramento genética e criação de bois, com fazendas em Tupã e Presidente Prudente, no interior de São Paulo.
Em outra frente, viajou para África em março e junho. Postou fotos ao lado de crianças em Luanda, capital de Angola, e na legenda escreveu as hashtags: #bmg #novosnegocios #angola.
Na última segunda-feira (4), o empresário foi o anfitrião da festa de aniversário do deputado federal Joaquim Passarinho (PL-PA). “Agradeço à família Katsuda pela calorosa recepção em sua residência em São Paulo”, postou o deputado no Instagram.
*Daniel Camargos é fellow da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center, em parceria com a Repórter Brasil