Em 2005, quando os atentados a bomba no metrô londrino chocaram o mundo, uma das imagens mais divulgadas pela imprensa britânica foi a tirada pela câmera de um celular de uma das vítimas minutos depois das explosões. Hoje, se um internauta curioso navegar pelas páginas do site da BBC, uma das maiores agências internacionais de notícia, também encontrará seções exclusivas a fotos enviadas por leitores. Na Coréia do Sul, há uma rede constituída com quatro mil “repórteres cidadãos” que têm produzido informações de qualidade e influenciado a grande mídia. O fenômeno tem crescido também no Japão e nos Estados Unidos, graças a uma democratização do acesso às tecnologias de informação e comunicação alcançada em alguns países. Isso tem estimulado, nesses locais, um maior diálogo entre as organizações de comunicação – aquilo que tradicionalmente entendemos como “mídia” – e seu público leitor, ouvinte e telespectador, que agora é, cada vez mais, também produtor de informação e de conteúdo.
Na opinião do americano Dan Gillmor, jornalista autor do livro “We The Media” e diretor do Center for Citizen Media, um projeto da Escola de Jornalismo da Universidade de Berkeley (Califórnia) e da Escola de Direito de Harvard, há uma revolução em andamento neste sentido. Numa conferência dada na última semana em São Paulo, durante o Colóquio Latino-Americano sobre Observação da Mídia, ele explicou como a internet e as novas tecnologias têm encorajado e contribuído para transformar consumidores em produtores de comunicação.
“No começo, a internet era somente um espaço de leitura. Agora, é um espaço de produção. Não só via os blogs, mas também via podcasts, divulgação de vídeos, de arquivos de áudio, etc. O mundo está conectado, e a idéia é que os cidadãos entrem em contato com os outros e contem a eles o que está acontecendo, como estão vendo os fatos”, explica Gillmor. “A natureza disso que chamamos de mídia cidadã vai mudar a natureza de como compreendemos os eventos. Alguns blogs, por exemplo, estão fazendo um trabalho melhor para explicar e traduzir o mundo do que a mídia tradicional. Para os jovens, que estão crescendo com isso, este é um processo natural. São eles que vão nos ajudar a descobrir como fazer jornalismo neste novo mundo”, acredita.
Daí a importância de estreitar laços entre a mídia tradicional e esta nova mídia cidadã. Na avaliação de Gillmor, mais e mais organizações de comunicação pelo mundo têm compreendido que isso é parte de um processo de registro da realidade e que podem construir sua agenda de cobertura com mais fontes de informação.
“Uma das principais regras dessa conversa é ouvir a audiência, algo que os jornalistas profissionais, apesar de ouvirem suas fontes, não fazem bem. É preciso que entendam que, se eles podem produzir informações, todos podem. Isso é diferente do jornalismo profissional, mas não pode ser descartado diante das possibilidades de democratização da comunicação que temos hoje”, acredita.
Debatendo com Gillmor durante o Colóquio sobre Observação da Mídia, o jornalista Alberto Dines ponderou a eficácia dessa estratégia, avaliando que a simples exposição da audiência a uma massa cada vez maior de informações não significa a democratização das comunicações.
“Neste processo, está faltando o editor, para ajudar a traduzir o relevante e o sentido dos fatos. Menos informações podem ser mais eficazes. Todo autor precisa de um editor. Isso ajuda a síntese, porque massa por si só não é suficiente. Uma pessoa saturada de informações não é necessariamente bem informada”, disse Dines.
O comentarista da TV Globo, William Waack, também debatedor do encontro, foi além, e admitiu que é baseado no que os jornalistas consideram ser as necessidades da audiência que se tomam as decisões editoriais da emissora. “Um grupo de pessoas, cada uma com uma arma na mão, não compõe um exército. O que compõe é uma organização, um foco, um objetivo. A formação na tradição do jornalismo é fundamental, porque é o domínio de uma técnica, do conhecimento específico. Se tivéssemos câmeras nos celulares quando JKF foi assassinado teríamos entendido o que aconteceu antes na Baía dos Porcos e no acirramento da guerra do Vietnã? Não. Quem é capaz de traduzir os conceitos? Conseguem esses cidadãos repórteres entender as tensões étnicas nos bairros de Londres que levam aos atentados a bomba nos metrôs?”, duvidou Waack.
Longe de pregar o fim do jornalismo tradicional e de desprezar o papel dos editores, a resposta de Dan Gillmor a esses questionamentos parte do princípios de que os jornalistas não são seres iluminados, capazes de tudo compreender diante da complexidade do mundo.
“Quero que a mídia tradicional sobreviva, mas parte dessa sobrevivência depende desse diálogo. Acho que precisamos pensar no futuro agindo como guias e não como oráculos. Não sabemos tudo. Não importa quão bem façamos o nosso trabalho, nós não sabemos tudo; e a audiência e nossos leitores podem nos ajudar. A audiência sabe coisas que talvez os jornalistas não saibam. Não acho que só os editores podem fazer este trabalho de tradução da realidade; podemos combinar o julgamento da comunidade com o nosso e assim entender o que está acontecendo no mundo”, acredita o americano.
O resultado da abertura a essa participação pode ser uma mídia mais crítica em relação à sua própria produção – o que parece hoje bastante distante da realidade –, já que não são poucos os exemplos de blogs e páginas na internet que fazem um trabalho de crítica da mídia que têm gerado impacto no que é feito pelos jornalistas profissionais. Ou seja, um público crítico tem contribuído para aumentar a credibilidade da mídia tradicional.
“E o fazer mídia cria um contexto que ajuda o público a compreendê-la. Por exemplo: se eu sou obrigado a selecionar fatos para o meu blog, começo a entender que os jornais e a TV também fazem isso. É um processo lento, mas que precisa acontecer”, afirma Gillmor.
Como desafio para este futuro que parece tão próximo, ele levanta duas questões principais. A primeira é a urgência em se democratizar o acesso a essas novas tecnologias e a distribuição destes novos conteúdos produzidos. No Brasil, pouco mais de 1.600 dos 5.662 municípios do país (segundo dados de setembro
de 2005) possuem acesso à banda larga. Uma pesquisa divulgada pelo IBGE na semana passada revelou que cerca de 80% da população não utiliza a rede mundial de computadores. Nos domicílios mais pobres, somente 3% têm acesso à rede. O segundo desafio, conseqüência do primeiro, é a necessidade de dar ferramentas de comunicação para que, de repórteres que ajudam a compreender o mundo, os cidadãos passem a ser também ativistas capazes de transformá-lo.
Bia Barbosa é membro da ONG Repórter Brasil.