Combate à impunidade

Juízes do trabalho querem decidir sobre crime de trabalho escravo

Em encontro de magistrados, grupo de juízes do trabalho reivindica para si a competência para julgar crimes relacionados à área. Trabalho escravo estaria entre esses delitos
Por Iberê Thenório
 28/09/2006

Brasília – Em debate promovido pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), em Brasília, nesta quarta-feira (27), um grupo de juízes defendeu a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, reivindicando o direito de poder julgar crimes relacionados à área, hoje sob a responsabilidade da justiça estadual ou federal. Entre os temas que os magistrados reclamam para si está a redução de pessoas à condição análoga à de escravo e o aliciamento de trabalhadores.

A discussão é resultado da emenda constitucional nº 45, promulgada no final de 2004, que promoveu a reforma do Judiciário. Nela, a Justiça do Trabalho ampliou sua atuação, ganhando competência para julgar não apenas relações de emprego, mas tudo o que estivesse relacionado à área trabalhista. Baseando-se nisso, uma parcela dos juízes do trabalho, e mesmo da justiça estadual e federal, começou a interpretar a reforma como uma brecha para começar a atuar também na área criminal, hoje fora da sua competência.

Para os que defendem a tese, a grande vantagem da mudança é a especialização para julgar casos ligados à área trabalhista. A ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Fátima Nancy Andrighi, presente na discussão promovida pela Anamatra, é uma das pessoas que advogam a favor da causa. "O juiz da justiça trabalhista é treinado para julgar esse tipo de relação. Hoje, pelo volume e pela rapidez com que as relações jurídicas andam no mundo, nós temos que cada dia mais especializar os juízes. Concentrando eles numa área de atuação, nós vamos ter melhores decisões."

De acordo com Guilherme Guimarães Feliciano, juiz do TRT da 15ª Região e um dos defensores da ampliação da competência, antes mesmo da reforma do Judiciário, já havia casos em que procuradores do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Trabalho assinavam ações criminais em conjunto, demonstrando que os órgãos que tratam da questão trabalhista necessitam atuar também na área criminal.

Outra vantagem apresentada pelos que sustentam a mudança é a rapidez da Justiça do Trabalho. Segundo Feliciano, muitos crimes que prescrevem na justiça federal poderiam ser julgados mais rapidamente. Ele conta que já há decisões de juízes do Trabalho na área penal. Contudo, ressalta que a ampliação das atribuições da Justiça do Trabalho depende essencialmente da atuação do Ministério Público do Trabalho. Caso o órgão não entre com ações criminais, de nada adiantará os juízes terem competência para isso.

Além do trabalho escravo e do aliciamento, poderiam ser julgados também  todos os delitos previstos no Código Penal como "crimes contra a organização do trabalho", como a frustração de direitos trabalhistas, ou mesmo outros crimes que estivessem intimamente ligados à relação do trabalho, como maus tratos do empregador contra o empregado.

Mudança polêmica
O aumento do alcance da competência não é consenso entre os magistrados presentes na reunião promovida pela Anamatra. De acordo com Friedmann Anderson Wendpap, juiz federal da Seção Judiciária de Curitiba, a mudança retiraria o foco de uma justiça altamente especializada. Para ele, a ampliação poderia significar o fim da Justiça do Trabalho. "Se for confirmada a ampliação da competência, não seria a hora de discutir se não é necessário criar uma única Justiça Federal?", questiona.

Francisco Rossal de Araújo, juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, vê com prudência a mudança. "Temos que dar um passo bem dado, consistente do ponto de vista teórico e doutrinário." De acordo com ele, a ampliação traria uma grande reviravolta, que deveria ser bem pensada. A presunção de inocência, por exemplo, seria um princípio que a Justiça do Trabalho teria que começar a adotar. Hoje, quando um empregado acusa um trabalhador de lhe negar direitos, é o acusado que tem que provar sua inocência. Na justiça estadual e federal, acontece o contrário. É o acusador que tem que provar a culpa do réu, que é inocente até que se prove o contrário.

Como reforma do Judiciário ainda é recente, a mudança ainda não criou jurisprudência suficiente para que a competência seja definida na prática. "O que nós temos de concreto é que a maioria das pessoas que se manifestaram sobre o tema dizem que a competência não é da Justiça do Trabalho ainda. Pode vir a ser, mas ainda não é", explica Reginaldo Melhado, Juiz do Trabalho da 9ª Região.

Indefinição e impunidade
Atualmente, tanto a justiça federal quanto as justiças estaduais reivindicam para si a competência para tratar do crime de trabalho escravo. A possibilidade de julgamento pela Justiça do Trabalho seria ainda uma terceira opção, que ainda não é considerada pelos tribunais superiores. Hoje há no Supremo Tribunal Federal (STF) um recurso que poderia dar à Justiça Federal a aptidão para julgar o crime.

Enquanto não se decide a quem cabe o papel, recursos judiciais de empregadores que utilizaram esse tipo de mão-de-obra se valem dessa indefinição para emperrar processos e evitar a punição criminal. "Esse é um dos grandes obstáculos para se combater o trabalho escravo", avalia o presidente da Anamatra, José Nilton Pandelot.

No final de junho, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região resolveu que o crime deveria ser julgado na esfera federal. A decisão, contudo, vale apenas para os 14 estados sob influência desse tribunal e pode ainda ser contestada no Superior Tribunal de Justiça (STJ) no STF.

Iberê Thenório viajou à Brasília a convite da Anamatra

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