Citricultura

Gigantes da laranja impõem baixos preços e prejudicam safristas

Quatro empresas exportadoras do suco da laranja definem o valor máximo que será oferecido aos produtores. Procurador do Trabalho vê formação de cartel e prejuízo aos trabalhadores na colheita da fruta
Por Beatriz Camargo
 04/10/2006

A exportação do suco de laranja está entre as dez maiores vendas do país, gerando divisas de quase R$ 2 bilhões só no primeiro semestre deste ano. Na outra ponta da cadeia produtiva, os colhedores da fruta recebem em média R$ 0,30 para encher uma caixa com 40,8 quilos de laranja. Como ganham por produção, o salário mensal desses trabalhadores rurais varia entre R$ 400,00 e R$ 600,00 por uma jornada de trabalho de nove horas diárias.

Quatro empresas definem no país o preço que será pago ao produtor rural e, conseqüentemente, também determinam qual será o salário dos colhedores de laranja. As brasileiras Cutrale e Citrovita e as estrangeiras Citrosuco e Coinbra-Frutesp são as empresas que processam e enviam o suco para o mercado externo.

"Há uma relação direta entre o salário do trabalhador e o preço da caixa da laranja. Como o preço da caixa é baixo, o valor pago aos trabalhadores também será baixo. Além disso, o cartel entre essas empresas é quem fixa o preço da caixa da laranja", afirma o procurador do Trabalho Ricardo Wagner Garcia, da 15a Procuradoria Regional do Trabalho (PRT), em Campinas. Ele estuda o setor há dez anos e explica que há formação de cartel quando essas empresas acertam entre si o valor que irão oferecer ao produtor rural pela matéria-prima. E fazem isso a partir do cálculo de quanto irão lucrar com a exportação do suco. "Essa relação invertida, que define o preço de cima para baixo, é a maior responsável pelas péssimas condições de trabalho enfrentadas pelo safrista da laranja", denuncia.

 
 Exportação da laranja rendeu R$ 2 bi no primeiro semestre. Foto: Chrissi Nerantzi / Stock Photos

A definição do preço "de cima para baixo" também prejudica os produtores de laranja. Segundo estimativa da Associação Brasileira de Citricultores (Associtrus), desde 1991 já foram expulsos do setor 15 mil produtores, que cederam o espaço de seus pomares a outras culturas. Vale lembrar que a vitória do açúcar brasileiro contra a União Européia na Organização Mundial do Comércio e o aumento do interesse internacional pelo álcool combustível tem espalhado o mar verde da cana-de-açúcar sobre áreas ocupadas pela laranja.

Nos últimos anos, a indústria exportadora também sofreu uma concentração: em 1994 havia 14 empresas, enquanto hoje só existem cinco. Uma delas, contudo, a Montecitrus, processa apenas as frutas de sua própria lavoura. No país, os laranjais estão concentrados em dois estados: São Paulo, com 322 municípios dedicados à citricultura, e Minas Gerais, com pelo menos 11 cidades.

Um citricultor de Bebedouro (SP) com 35 anos de experiência no setor – que preferiu não ter seu nome publicado por temer pressão das indústrias – confirma que a falta de concorrência entre as gigantes da laranja fixa o baixo valor pago aos produtores. "Em 15 minutos, uma empresa telefona pra outra e combina ‘não vamos pagar mais do que tanto'". Ele afirma também que os produtores não são beneficiados quando há alta do preço no mercado externo. "Fica tudo para eles. Dividem com a gente só o prejuízo, quando tem lucro eles não dividem", desabafa.

Já o presidente da associação das indústrias, Ademerval Garcia, afirma que o melhor caminho para equilibrar a relação entre o citricultor e a indústria é instituir a participação dos produtores na venda. "Isso é uma decisão dele, se ele estiver disposto a encarar o risco que é compartilhar lucros e prejuízos", diz.

A associação dos produtores calcula que, para ressarcir pelo menos o custo de produção do citricultor, a caixa da laranja deveria ser vendida à indústria por R$ 15,00, e não a R$ 7,50, como é a média atual. Isso porque a colheita e o transporte da carga até a indústria ficam por conta do produtor, a um custo de cerca de R$ 3,00 por caixa, que se somam aos custos com a lavoura e os funcionários fixos. Esses produtores receberão da indústria, porém, apenas ao final da safra, ou seja, um ano após a venda.

"O produtor, principalmente o pequeno, está se endividando. Ele não consegue reinvestir na produção e não tem condições de arcar com as exigências trabalhistas dos colhedores", expõe Flávio Viegas, citricultor e presidente da Associtrus. Já Ademerval Garcia, representante das indústrias exportadoras, acredita que o problema tem origem na falta de organização do setor produtivo, que poderia exigir medidas de apoio do governo. "Com um preço ideal, daria para pagar todas as etapas da cadeia e permitir reinvestimento na produção. Mas a realidade é diferente, pois depende de como o suco vende lá fora."

Responsáveis pela força de trabalho que impulsiona essa cadeia produtiva, os colhedores de laranja têm seus salários defasados em mais de 150%, calcula o diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itápolis (SP), maior município citrícola do estado, Avelino Antonio da Cunha. "Para ganhar alguma coisa e ter uma qualidade de vida, o colhedor precisaria ganhar 0,80 centavos pela caixa". Ele diz, no entanto, ser impossível negociar aumento de salários com os produtores porque eles estão "massacrados pela indústria". Segundo ele, a estratégia dos sindicatos da região é reivindicar o aumento diretamente com as indústrias, mas elas têm se recusado a negociar.

"Existe uma visão equívoca de que a indústria tem que resolver os problemas que deveriam ser resolvidos pelo governo", defende o representante das exportadoras.

Condições de trabalho
As ações de equipes de fiscalização do trabalho, quando encontram irregularidades nas lavouras têm responsabilizado também as indústrias, uma vez que a maioria dos produtores tem contratos de fornecimento exclusivo para essas empresas.

De acordo com o procurador Wagner Garcia, o trabalho nas plantações de laranja tem em geral condições degradantes, pois, além de ganharem mal, os trabalhadores estão sujeitos a péssimas condições de alojamento, alimentação e higiene.

Para o representante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jaboticabal, Lineu Nobukuni, a situação melhorou após a edição, em março de 2005, de uma norma que define a infra-estrutura a ser oferecida ao empregado rural. "Hoje já tem água fresca e potável, a comida é melhor. Mas tudo isso acaba saindo do bolso do trabalhador porque ele ganha menos."

Os si
ndicalistas consideram, no entanto, que mesmo com as melhorias o colhedor de laranja é mais pobre e tem menos qualidade de vida que o cortador de cana-de-açúcar porque a negociação dos salários é feita diretamente com as usinas sucroalcooleiras e a terceirização de mão-de-obra está quase eliminada. Em termos salariais, a situação também é outra: com mesmo número de horas de trabalho, o cortador de cana consegue ganhar em média entre R$ 800,00 e R$ 1.200,00.

Nobukini admite que o trabalho na laranja não é tão penoso quanto o corte da cana, mas também provoca seqüelas graves, como problemas ortopédicos. "Você carrega uma mochila no pescoço de 15 a 20 quilos e fica subindo e descendo a escada. Mas, se dá problema de coluna, por exemplo, aí fica impossibilitado de trabalhar."

Abaixo do preço
Os baixos salários dos trabalhadores rurais não se traduzem, contudo, em suco de laranja mais barato. Depois de venderem o produto final para as suas representantes nos outros países, as empresas redefinem o preço no exterior. Segundo o procurador Wagner Garcia, elas exportam o suco abaixo do valor de mercado porque, vendendo mais barato, pagam menos imposto de exportação do que deveriam. "A Cutrale brasileira vende a apenas US$ 800 a tonelada de suco para a Cutrale norte-americana", afirma. Enquanto isso, o preço médio do mercado é de US$ 2.600 para a mesma quantidade de suco.

Wagner Garcia ressalta que, com esse comportamento, toda a riqueza com a venda do suco é transferida para o exterior. "Isso já é o suficiente para que o governo brasileiro tenha interesse em investigar e eliminar o cartel da laranja", argumenta."Principalmente porque ele causa o empobrecimento de produtores e trabalhadores rurais."

Desde 1999, existe um processo no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), do governo federal, que investiga denúncias de formação de cartel pela indústria da laranja. O Conselho têm documentos das quatro grandes empresas que supostamente comprovariam a formação de cartel.

As indústrias propuseram um acordo ao Cade, que determina, entre outras medidas, o fim das investigações, com a devolução dos documentos apreendidos. Em troca, elas mudariam sua postura. O Cade ainda não tem uma posição sobre o fechamento ou não do acordo, que está sendo analisado pelo Ministério Público Federal.

"Se o Cade fizer o acordo, vai ter prejuízo para os trabalhadores: a indústria continua com o cartel, continua massacrando os produtores que continuam massacrando os trabalhadores. Alivia a situação da indústria e ela mantém a exploração como está", alerta o sindicalista Cunha, de Itápolis.

Na opinião do presidente da associação exportadora, entretanto, não existe cartel, mas "homogeneidade" no setor porque as empresas têm tecnologia semelhante, utilizam a mesma infra-estrutura e vendem para os mesmos clientes e, tem portanto, preço parecido. "É muito difícil as indústrias terem preços diferentes. É essa homogeneidade que permite a abertura de dizer que ‘é cartel porque é tudo igual', sugerindo que o preço é combinado", defende Ademerval Garcia.

O Ministério da Agricultura, em conjunto com a Secretaria de Direito Econômico, estuda mediar os conflitos entre as empresas e os produtores. O ministério não se pronunciou até o fechamento desta reportagem.

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